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Fotografia: Lawrence Agyei
Publicado a: 26/09/2022

Cada vez mais próxima daquilo que realmente é.

Yaya Bey: “Tenho crescido muito como pessoa, mas ainda estou à procura do meu lugar”

Fotografia: Lawrence Agyei
Publicado a: 26/09/2022

O que fazemos daquilo que fizeram connosco? Quais são os nossos demónios? E quem nos salva deles? Com a bússola apontada a Norte, na bagagem Yaya Bey traz consigo auto-retratos e um neo-soul emotivo e cru, um rap auto-consciente por vezes envolvido em ritmos africanos e uma vontade de encontrar respostas. Ela é artista visual, poetisa, educadora e, acima de tudo, dona de si. Em Remember Your North Star deixa um passado que são roupas nas quais já não cabe. Concede-as de empréstimo a quem delas se quiser servir. Não como guia, mas como ombro amigo que protege num mundo onde todo o cuidado é pouco. Sai de cena lado a lado com tudo aquilo que ainda não é – mas é possível vir a ser. O que deixa são somente as coisas que já não pode levar consigo.

Antes das duas actuações que tem marcadas em Portugal (no Mucho Flow, em Guimarães, e no Super Bock em Stock, em Lisboa), vem permitir-nos descobrir com ela aquilo que nem ela sabe ainda. 



Sei que estás ligada ao activismo também, como é ser uma pessoa negra na América contemporânea?

Sabes, eu não tenho a certeza… Sinto que precisaria de saber como é ser uma pessoa negra noutra parte do mundo qualquer para comparar. Pessoas negras americanas são hipervísiveis, mas raramente vistas ou ouvidas. Somos as bottom bitches do capitalismo, imperialismo e racismo — como num sistema de prostituição. O pimp tem a sua bottom bitch que é aquela que ele mete na linha da frente e da qual mais depende, contudo é aquela que ele trata pior. Negros americanos são a cara do capitalismo e consumismo americano, mas nós não temos a posse de nenhuma das coisas que criámos, nem do suor do nosso trabalho. Apenas sustentamos a espinha dorsal da máquina que está a destruir o mundo. Negros americanos são os únicos na diáspora cuja etnicidade é negra, a raça é negra, e mesmo assim temos de ouvir que não temos cultura. No sentido em que quando tu falavas com alguém nigeriano que mora em França, tu consegues saber quais são as suas origens – é nigeriano antes de ser francês. Os negros nascidos na América têm mais dificuldade nisso, dizem que não sabemos de onde viemos.

Há um apagamento colectivo sobre a vossa importância, portanto…

Exactamente… As pessoas dizem coisas destas enquanto ouvem hip hop e usam streetwear – tudo isto originado aqui. É uma experiência solitária ser negro e americano. No Twitter há aquelas guerras da diáspora e tenho visto muitos debates sobre a negritude e acho que nós não nos compreendemos totalmente uns aos outros. Há uma competitividade que me parece vir da tentativa de sobreviver num mundo do qual nós sabemos que em nada vamos ser beneficiados. Outras pessoas racializadas experienciam o racismo de modo diferente e nós entendemos que é uma hierarquia: pessoas não racializadas certificam-se de que estão acima de nós para não terem eles de ficar no fundo. Entre nós na diáspora é uma luta para perceber quem estará mais pra baixo dos que já estão em baixo, percebes? Penso muito nisto, principalmente em como estou a contribuir para isto e em que moldes quero ser ouvida e vista.

Como é que isto tem afectado a tua saúde mental agora que estás sujeita a um maior nível de exposição?

Varia. Estou num espaço de transição e tem tudo acontecido muito rápido. Às vezes encontro pessoas que entendem o que sinto, de onde venho. Tenho tido a possibilidade de falar com mais pessoas de diferentes partes do mundo, com uma frequência que eu nunca tinha tido oportunidade para fazê-lo. Isso dá-me mais perspectiva. Estou apta a mostrar a outras pessoas em que aspectos a perspetiva delas é limitada e, simultaneamente, a perceber em que aspectos é limitada a minha. Outras são interações completamente absurdas. Uma vez uma mulher alemã entrevistou-me e questionou-me sobre se a minha música era sobre a escravatura. Tinha ouvido falar sobre todo o racismo e violência policial na América e queria perceber melhor… Este episódio fez-me perceber que os europeus se chocam com o racismo norte-americano para não terem de lidar com o seu ou confrontá-lo. O que não faz sentido, estas pessoas são europeias… A América está como está porque os europeus vieram para cá.

Em “Nobody Knows” parece-me que estás a referir-te ao capitalismo como algo que mata silenciosamente.

Tentar sobreviver em Nova Iorque com os preços altos das rendas é bastante solitário. Principalmente no Inverno, que aqui é bastante rigoroso, muita gente fica deprimida. Para piorar há esta cultura de “cada um por si”. Por isso, se te sentes sozinho, essa sensação só aumenta. Estás a trabalhar imenso, mau tempo, a relação em que estás não resulta… Esta é uma das minhas músicas favoritas, senão a favorita mesmo porque caracterizou bem esses tempos para mim.

Divórcio, romances, empoderamento feminino e amor próprio — a tua música acompanhou-te sempre em momentos-chave da tua vida em que sentias não ter o controlo dela. Como conseguiste livrar-te dessa amarra e encontrar o teu lugar?

Varia muito. Tenho crescido muito como pessoa, mas ainda estou à procura do meu lugar. As pessoas quando ouvem a minha música têm a sua própria percepção e podem identificar-se com o que escrevo tendo em conta as suas próprias experiências. Para mim é um chegar cada vez mais perto de mim mesma. Sei que ainda não lá cheguei, mas com cada projecto vou ficando mais próxima. É uma jornada e nem estou certa do destino.



Como olhas para os teus álbuns e EPs passados nesta jornada?

Estou orgulhosa do que fiz até agora, de como processei essas relações. Foram um esforço muito honesto para a época em que surgiram. Olho para trás e para o presente e sinto que mostra como estou aqui para me suportar a mim mesma e que tenho feito o trabalho necessário para isso.

E quais são as inspirações que te ajudam no processo?

Sem dúvida que são várias e nem todas são propriamente musicais. A Billie Holliday, Frankie Beverly & Maze, The Clark Sisters, journalling, meditação, fotos de família.

Sinto que Remember Your North Star é, em simultâneo, um tributo à tua jornada como um conselho para quem possa ter passado pelas mesmas situações que tu. Qual é, exactamente, a tua north star?

Eu gostava de ser a versão de mim que é mais amorosa consigo, em todos os aspectos da minha vida, desde o modo como trato os outros como a mim. Se conseguir gerir os meus medos, inseguranças, senti-los e validá-los — e não ignorá-los. É um voltar a uma fase mais compreensiva comigo e com o mundo à minha volta, ciente de que nem sempre vou ser bem-sucedida. É essa a minha north star: no fundo, [sou] eu própria.

Em “reprise’” há uma parte, “there’s a window in time/ When my daddy loved my mama/ And for that I’m alive/ And for that I’m a gem/ I’m the only place that keeps a certain version of them”, que é bastante pessoal. Usaste a música como cura?

Eu acho que ainda estou a processar o meu histórico familiar. É uma jornada que me vai demorar algum tempo. Sempre que escrevo sobre isso, mesmo que não meta cá fora, sou eu a tentar arranjar maneiras de incorporar isso na minha arte, de digerir. Dá-me permissão para ir mais fundo, para me libertar e perdoar.

Mulheres negras têm, frequentemente, estereótipos associados a si como, por exemplo, de que não podem nem são frágeis. A tua música expõe-te a isso. Alguma vez tiveste medo de ser vulnerável?

Sim, até na minha vida pessoal eu reconheço que não é seguro para mim ser vulnerável em todo o lado. Inclusive muitas vezes tenho receio de ser metida numa caixa por ser alguém que fala sobre os obstáculos de se ser uma mulher negra, receio que pensem que só falarei disso – que de algum modo eu não tenha o direito de ser multidimensional. Principalmente porque tento sempre que o meu trabalho seja honesto sobre o lugar em que me encontro naquele momento e, às vezes, é um lugar de felicidade e outras vezes não – e tenho de honrar isso.


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