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Fotografia: Renato Miranda Chorão
Publicado a: 23/03/2022

Uma visão fresca e afrofuturista (filtrada pelos synths).

XEXA: “Só comecei a entender a minha música com o Calendário Sonoro

Fotografia: Renato Miranda Chorão
Publicado a: 23/03/2022

Em Dezembro, assinalando o seu 10º aniversário, a Príncipe Discos celebrava na NTS com uma emissão de seis horas divididas por 12 mixes de diferentes artistas do seu elenco. De DJ Marfox a Nídia, passando por DJ Nigga Fox, DJ Lycox ou DJ Firmeza, todos os escolhidos já tinham editado pelo selo lisboeta, excepto uma nova cara que aparecia sem aviso prévio e com uma proposta particularmente diferente dos seus companheiros.

XEXA, o nome artístico da jovem produtora que actualmente divide o seu tempo entre Portugal e Inglaterra, era a wild card nessa celebração, trazendo uma abordagem completamente diferente daquilo que conhecemos da editora — dificilmente encontrarão algo semelhante a este seu afrofuturismo que, até aqui, se aproxima mais do ambient do que das musculadas e cerebrais batidas dos seus colegas. Neste caso, Tristany, Ariyouk e Suzana Francês (que conhece dos tempos do ensino secundário), e aquilo que têm construído juntos no projecto do primeiro, estarão bem mais perto em termos de frequências musicais.

Antes de uma apresentação na Galeria Zé dos Bois — e estivemos por lá — e uma estreia na passerelle da Moda Lisboa (desfilou e fez a banda sonora — disponibilizada esta terça-feira no Bandcamp — para a nova colecção de Ivan Hunga Garcia), a artista sentou-se connosco nas DAMAS para uma conversa em que abordou praticamente tudo o que foi relevante para chegar a este momento da sua ainda imberbe carreira. Na mesma sala onde falávamos, cartazes com a frase “Os Cânones Existem Para Serem Libertados” não poderiam ser mais adequados — fiquem com isso na mente para o que se segue.



[As origens e a formação inicial]

“Nasci em Lisboa, mas cresci na Quinta do Mocho. Fiquei lá até aos 9/10 anos e depois fui para Alhandra. Os meus pais são santomenses, eles emigraram nos anos 90 e ficámos lá no Mocho, em casas sociais, durante uns 10 anos e depois, como quiseram ter uma deles, foram para Vila Franca de Xira. 

Fiz piano no Conservatório Regional Silva Marques, em Alhandra. Foi dos 9 aos 15 anos. Fiz o básico. Só não fiz o profissional porque não curto muito… gosto de música clássica mas fazer isso a vida toda não. A música clássica ainda tem muitas normas que foram estabelecidas há anos e que se perpetuam e em que mudam apenas os compositores. Mas a forma de tocar música clássica é pretty much the same. Desenvolves a tua qualidade como instrumentista, mas não estás a criar outra coisa nova. Não é muito criativo, pelo contrário. Jazz é muito mais criativo que música clássica e mesmo assim não é muito. 

Quando cheguei aos 15 e estava em Alhandra, tinha vontade de começar uma cena nova, já tinha feito a música e estava encravada –e aqui em Portugal só te perguntam o que queres fazer com 15 anos. 

Depois fui para a [Escola Artística] Antóno Arroio. Apeteceu-me fazer uma coisa nova, então fui para lá. Estudei Ourivesaria. Fiquei lá três anos a estudar. Quando nós vamos para o 10º ano é tipo misto, experimentas tudo e depois escolhes uma no 11º e eu escolhi Ourivesaria. Eu gosto da cena dos details e de todo o esforço que tu pões para uma cena tão pequena. Acho que é das artes mais físicas, de certa forma, no entanto é uma coisa super pequena. Eu ficava horas a trabalhar em peças que depois olhava e era uma peça de joalharia mínima. 

Há a beleza e a cena do valor. O facto de ancestralmente a peça de joalharia passar de família para família, todo o valor sentimental que tu consegues ter numa coisa tão pequenina.

Eu estava farta de arte visual. Eu saí da conservatório porque estava rodeada de música e queria algo mais. Fui para a António Arroio e estava rodeada de artes visuais. Depois a ver as pessoas do meu grupo a fazerem cenas de música. Por exemplo, o Tristany ia para a minha escola, o Ari[youok] estudava na minha escola. E ouvi-los a fazerem rap battles dava-me vontade de jump in, só que não sabia como. A Suzana Francês também. Ela não andava lá mas tínhamos muitos amigos em comum. Parecia que andava lá.

Mais tarde, o MEIA RIBA KALXA deu-me muita paz para fazer também a minha cena. Não tentes descobrir logo. Eu tinha uma pressão de saber o que queria logo produzir.”

[A sorte que se constrói na hora de escolher o que iria fazer depois da António Arroio] 

“Atirei a moeda ao ar. Literalmente. Cara para Portugal, Coroa para Inglaterra. E nem era Inglaterra. Eu pesquisei na net onde era as melhores escolas de música na Europa. No kidding. E apareceu a escola em que eu estou, a Guildhall [School of Music & Drama], e depois apareceu outra na Holanda. Eu queria algo que me ensinasse o máximo de cenas possível num curto espaço de tempo, e não uma escola para o qual fosse e que seria focada em pop music ou em certos géneros. Eu queria aprender música, e não um género de música. Ainda sinto que [isso] é uma limitação e eu sentia que ia condicionar-me. Que eu ia fazer aquilo porque estudei aquilo. 

Então, atirei a moeda ao ar. Nem me lembro muito bem o que é que calhou, mas acho que não calhou o que eu queria. É assim que eu sei que é a outra. Não tens a obrigatoriedade de seguir a cena da moeda. Pensas sempre que estás na dúvidas, mas na verdade tens sempre um que é 51% e outro é 49%. Quando eu tirei fiquei decepcionada, então fui para a Guildhall. Fiz a audição. É um conservatório de música. Quatro anos. Tens o departamento de música clássica, jazz e música electrónica. Eu estou a fazer Sonic Arts, estou no terceiro ano — e são quatro. O primeiro ano tens mais aulas clássicas mas também é para te encontrares no padrão de música electrónica. E quando eu te digo música electrónica não é o género de música electrónica. Música electrónica é tudo o que é feito agora. 

Eu fiz um gap year para ganhar dinheiro antes de ir para Inglaterra. Foi tudo independent, zero support. Quer dizer, a Ok Estudante. Quando eu me manquei que queria ir para essa escola, tinha tipo duas semanas para fazer tudo. Então apliquei-me por eles, mas fiz tudo sozinha. E fazia música há um ano.”

[A entrada na produção musical, a definição daquilo que cria e a importância da escola]

“Produção comecei a fazer no FL [Studio]. No final da Arroio, durante o gap, fiz um bocadinho de música. Era mesmo sintetizadores. É parecido com o que eu faço agora… não é parecido, mas tem a ver. Entendo aquilo que eu faço agora porque quando comecei era uma coisa muita estranha. Só comecei a entender as minhas tracks com o Calendário Sonoro. Não estou a gozar. Foi final de 2018, entrei na escola em 2019. Comecei a experimentar com coisas mas tracks muito pequenas e sempre nada rítmico, só comecei a usar ritmo no ano passado. Só sintetizadores, digital synths

Só que eu não sentia que ambient identificava. Só no Verão do ano passado é que eu vi que era afrofuturismo. Faz sentido. Pelo menos a pesquisa que eu estou a fazer agora tem toda a cena da cultura africana, da revolução colonial dos anos 50, 60, 70 e de nós à procura de algo mais… da nossa voz e identidade. Sem os estigmas, mas com a cultura. 

Pelo menos o que eu sei do afrofuturismo dos anos 60, 70, do Sun Ra, tinha também muito a ver com o cerne e as bases fundamentais da libertação da cultura africana. Ele via-nos no futuro. Durante séculos, principalmente nos Estados Unidos [da América], a comunidade africana não tinha futuro. Portanto, eu acho que entendo essa cena do afrofuturismo por parte dele.

Afrofuturismo para mim, agora, tem mais a ver com… o afro tem a parte da cultura, o tradicional, e o que é que eu oiço para transformar e depois o futuro é a tecnologia que nós temos e como é que nós fazemos desenvolver a cultura africana [com isso]. A música africana é… o que nós conhecemos tradicional, folclore, é 80% wood percussion. Tu tens aquela ideia do que é que é a música africana como algo que está fixo. Eu acho que estamos a desenvolver isso. Antigamente não tínhamos as tools. Por exemplo, tu vais para Inglaterra e tens muitos registos de música inglesa dos anos 20, 30, 40, 50, porque eles tinham tools para fazer isto. E não tens tanto registo da cultura africana… por exemplo, São Tomé só ganhou a independência na década 70. Os meus pais nasceram ainda colonizados. Sou a primeira da minha família que nasceu com liberdade. É super recente.

Eu digo que sou afrofuturismo porque sinto que este género se relaciona mais comigo do que o ambient. E afrofuturismo ainda é um umbrella muito grande. Já me perguntaram qual era o nome do meu género. Entendo que seja eu a baptizá-lo, mas também curtia que baptizassem, que a percepção das pessoas chegasse porque ainda é super subjectivo para mim. Eu digo agora que é som da XEXA. É o som da XEXA porque eu lembro-me que quando eu comecei a produzir o motivo para eu querer ser produtora é que eu queria fazer um som que as pessoas ouvissem e dissessem: é a XEXA. É tipo Ferrero Rocher. Tu sabes porque tem aquela receita.

Tanto o motivo e as técnicas que eu uso de produção tem de ser o mais minha possível e não tradicional. Eu misturo a minha música de uma forma muito… não vou dizer orgânica, mas a pensar sempre nos elementos todos como pensava em ourivesaria. Penso muito nos detalhes, por isso é que gosto de sound design. Dá para teres um controlo sonoro da matéria-prima e da onda sonora. Por exemplo, aprendemos a fazer som com o vento na Guildhall. Era um audio file do vento e consegui fazer um drumkit através do shape da onda sonora. Nós temos o privilégio de termos a tecnologia para desenvolver a música de formas que antes não conseguias.

As pessoas perguntam-me se vale a pena estudar música. Se me perguntam se vale a pena, não estudem. No momento em que estás à procura dos contras para não avançares, quer dizer que vais chegar lá… vais chegar numa escola, estás rodeada de pessoas que querem fazer música para a vida, vais-te sentir intimidado, desmotivado ou vais sentir que não vale a pena. O motivo para eu ter ido para a academy a nível de música é porque é o único sítio onde não só aprendes muito em pouco espaço de tempo, se quiseres, como atiram-te cenas de que tu não estás à espera. A cena de ser auto-didacta para mim é que depois eu… e eu notei muito isso quando fui para a Arroio. Eu antes de entrar na Arroio fiquei o Verão a experimentar com tintas. E depois usava guache, o tubo é pequenino. Usava guache, pintava e os desenhos partiam-se. Secavam e partiam. Cheguei na escola e a stora disse que o guache usa-se com água. É bom estares à procura por ti mesmo, e na universidade atiram-te cenas, mas tu é que tens de procurar. No primeiro ano eu fiz programming pré-sonoro e aí introduziram-me deep listening. Pauline Oliveros, Éliane Radigue. E eu gostei muito e mudou a forma como ouço música. A produção foi algo que fui desenvolvendo, a forma como oiço a música e o que é que eu procuro numa track [é que mudou].

Eu lembro-me de ter lido um livro no início da faculdade, e eu fui contra essa definição, que a música move duas cenas: o teu corpo ou a tua memória. E que a música africana (ou de POC) tem muita tendência para mover o o teu corpo e há certas músicas mais calmas que te identificas mentalmente que mexem mais com as tuas emoções e trazem mais memórias. E eu sinto muito que sou uma junção dessas. É o que eu tento fazer com a minha música, que mexa com as duas coisas, que mexa com a tua memória, com a tua emoção e com o teu estado de espírito, mas que também mexa com o teu corpo.”



[A criação de Calendário Sonoro 2021, a sua primeira mixtape]

“O Calendário Sonoro fiz tudo sozinha, ninguém misturou por mim nem produziu nem nada. Foi tudo eu. Queria mesmo ter um corpo de trabalho todo meu em que fosse tudo feito por mim. E que eu pudesse mudá-lo. Não é uma coisa fixa. E ter essa obrigatoriedade de produzir… Eu produzo mas o tempo que eu tenho tido lá em Londres tenho produzido muito mais para outros artistas, para outros projectos, filme… essas coisas. E eu queria, para além do trabalho da escola e todas essas comissions que eu estou a ter, ter tempo para fazer a minha música. Então, fiz o Calendário Sonoro, 12 tracks, 12 meses, 12 luas. Como é menos de um mês, e as fases de luas cheias, nem dá para falhar. Dá para falhar, mas mesmo quando eu me esquecia que eu tinha de fazer a track do próximo mês dava por mim a olhar para o céu e já vejo que a lua está tipo a metade. Dá aquele push. E eu queria brincar com a criatividade também. Outras formas de abrir o software. Acabo sempre por ter o conceito que é o mês, que é a experiência, é o que eu vivo, e é o que se está a passar à minha volta naqueles mês.

A ideia do Calendário Sonoro apareceu mesmo no dia 1 de Janeiro de 2021. Estávamos a ter um gathering, estava com umas amigas minhas a celebrar o ano novo, grupo pequeno, e estivemos a cantar e uma amiga minha é que na altura disse-me que seria minha manager se eu lançasse música. Ela disse, ‘tens de fazer mais releases‘. E eu fiquei, ‘releases?’. E ela, ‘sim, tens de lançar mais músicas e depois eu sou tua manager‘. E como ela disse ‘release‘, não sei se é por já estar em Inglaterra há algum tempo, em vez de entender release tracks, tipo partilhá-las, soou a letting go. E eu fiquei a pensar, ‘estou a produzir há dois anos, e estou no segundo ano da escola, e estou a fazer uma carrada de tracks que estão só a ocupar espaço no PC’. Não é preconceito, mas tens todos esses conceitos de qualidade de som, o proper mix, as frequencies, levels e não sei quê, e se não for interessante para ti não é boa música. Enquanto a arte [visual] pode ser boa ou má para ti, mas ainda ganha por si só e pelo esboço. [No entanto] tu desqualificas logo a música. E eu fiquei, ‘pá, não vou deixar ficar com preconceitos de outras pessoas, então vou só lançar’.

Então, o conceito de produção era literalmente analisar as emoções que eu vivi no último mês e tentar apresentar isso de forma sonora. Tentei sempre que cada música fosse um bocado diferente. No início pensava quem iam ser todas diferentes, mas o Calendário Sonoro ajudou-me a poder entender o meu estilo porque, depois de quatro tracks, olhei e fiquei, ‘há uma coisa em comum’. Há muito synth, e a forma como eu toco os synths, o sustain.

A track de Janeiro estava em quarentena em casa porque foi na altura em que havia muito COVID na tuga; a track de Fevereiro eu fi-la em memória ao meu primo que faleceu e o ‘Nha Dêde’ significa ‘minha querida’ em crioulo santomense e digo isso a track para ver se ele ouve; a track de Março foi o meu amigo André Andrade (o Lisboeta Italiano), então fi-la em homenagem a ele e acho que a track ajudou-me a healing. É um mindspace que é muito específico. É ir tocando e ir apanhando a vibe. Se bem que difere. 

Eu edito mais os synths before. Eu acho que é muito importante teres um synth com atitude no momento em que estás a tocá-lo e não uma cena que tu transformas a seguir. Então, no sound design, eu tento que os meus synths falem por mim, ou que já tenham aquela emoção que eu quero ter sem ter que pôr reverbs. 

A de Maio tentei fazer uma cena completamente diferente. Eu não conseguia fazer aquela track de novo se me pedissem. Não pára. É só sintetizadores e ritmo e um 808 ali a dançarem. E sinto que a partir de metade do ano comecei a desenvolver. A track já não é uma cena que eu estou a sentir e faço. Cheguei ali a Julho e fiz a track em duas horas, literalmente, porque tinha-me esquecido [risos], tinha outras comissions na altura, estava com muitos projectos, então cheguei e era lua cheia no dia seguinte e eu lembro-me: meia-noite e tal comecei a fazer, três horas já estava a exportar. Quando eu pus a track na net, [só] dois dias depois [é que] reparei que o synth parou a meio. No final ela não tem mais synth, é só ritmo. Dá uma vibe nice. Não tinha reparado. Estava cansada, depois do trabalho fiz aquilo. E parou bem, mas não repeti o segmento e é por isso que ela parece mais vazia. Na boa [risos]. 

As de Agosto e de Setembro tentei fazer um take de algum género que já existia. A de Agosto tentei que o sintetizador dançasse mesmo, que fosse mesmo… disseram-me que parece um tarraxo estranho, não é um tarraxo, mas é uma cena que dá para dançar. E depois a ‘Quantized Feelings’ tentei fazer um bocadinho com a vibe do dancehall no sintetizador.”



[A Príncipe Discos e a Filho Único entram no chat: o convite, o primeiro concerto e o encaixe na equipa]

“Eu estou com eles desde Outubro. O convite foi feito pela net. A net é fantástica. O Nelson [Gomes] falou comigo em Outubro, quando eu vim para a Fashion Week. Estava na praia, estava nublado, era só eu e uma amiga minha, mais ninguém quis vir porque estava frio. E eu, ‘desculpem, vim de Inglaterra para isto?’ Eu tinha acabado de fazer a Fashion Week da outra season, Spring Summer, fazer a música para o Sangue Novo, e estava na praia e o Nelson enviou-me mensagem a dizer que tinha visto a minha música e queria falar comigo. E aparentemente ele já tinha ouvido a minha música há meses. Alguém da Filho Único enviou, ele viu, estava a acompanhar e depois só deu-me o toque. 

Eu conhecia todos os artistas da Príncipe, não conhecia a editora. Não todos, mas os que estiveram na NTS, por exemplo, [já conhecia]. Porque uns são do Mocho e lá tocam muito essa música. A minha infância… eu tenho 21 anos. As músicas que eu me lembro de memória de ouvir… eu lembro-me que foi a partir dos 9 anos que eu comecei a ter memórias de músicas, que era o meu irmão a ouvir Tupac… era 2009, estava em casa e dava o ‘Single Ladies’ da Beyoncé. Foi aí que eu comecei a guardar música. 

Eu conheço muito dos artistas da Príncipe e da música deles, e estou sempre a ouvi-la, já estava antes de estar com eles. É ganda inspiração, pelo menos para o que eu faço, como abordo certas músicas em que eu quero fazer uma variação africana, tipo tarraxo com sintetizadores. Oiço muita música africana e esses ritmos africanos para poder ter a energia do ritmo, tentar encontrar o padrão da energia para poder tipo fazer a wave no sound design

Eu tive que ver o que é que é Príncipe na net e depois fiquei oh my god. Eu conhecia a Nídia. Eu conhecia os artistas, mas eu lembro-me de ter conhecido a Nídia no início do ano passado e eu fiquei, ‘uau, eu pensava mesmo que não havia artistas femininas produtoras a produzir esse género de música super’. Deu-me ganda inspiração. É uma raridade. O Nelson disse-me que na Príncipe era ela só. Agora somos nós as duas. É muito importante. A sociedade reage muito ao que vê. Venham mais. 

[Como é que me encaixo nisso] é uma pergunta que eu ainda faço. Eu acho a cena que eu tenho em comum com as pessoas da Príncipe, para além de fazermos todos música africana, é que estamos todos a desenvolver música africana. Não africana de África, mas somos todos pessoas que estão a desenvolver géneros africanos de música. [Essa é] a única coisa que eu sinto que temos em comum. A nível de melodia… também usam muitos sintetizadores. Eu pensava que não, mas agora tive a ouvir e também usam muitos sintetizadores… e a forma criativa de usar harmonia como ritmo. 

Felizmente estou com a Filho Único-Príncipe, e eles são muito fixes. Quando convidaram para ir para a Príncipe, eles convidaram também para tocar na SMUP. Foi o meu primeiro concerto ao vivo. O pessoal gostou. Sei tocar ao vivo piano clássico, mas a cena toda de cantar, tocar e backing track by myself era outra coisa. Tenho tipo DJ set, depois tenho três mics, agora estou a usar um interface que tem tipo mais pads e tenho percussão. Canto, toco a percussão e depois tenho as tracks sem certos elementos que faço ao vivo.

Eu quero fazer o meu primeiro álbum da XEXA. Mas antes tenho muitas músicas, então estamos a ver as que tenho de 2021 e estamos a trabalhá-las para sair este ano ainda. Quando eles mandaram-me o e-mail, ‘olha, temos aqui esta mix com a NTS, meia hora cada um’. E eu fiquei, ‘das 12 pessoas, eu sou uma delas?’ Quando eles mandaram o e-mail eu estava com eles há um mês, então foi muito fresh, e eu gosto desse entusiasmo.

Eu sabia que ia fazer essa cena da música, com ou sem label. Como artista é muito difícil as pessoas verem o teu valor. Ou o valor da tua arte como tu vês. Então, tu bates à porta e tu dizes que é fantástico e eles vão dizer ‘não para nós. Tenta amanhã. Tenta mais tarde’. Em tudo, música, acting, etc. Eu tenho essa cena de, eventualmente, sozinha ou acompanhada, se eu desenvolver-me ao ponto de me tornar um dragão, alguém vai reparar. Chega a um momento em que tens tanta luz que as pessoas vão ver. ‘De onde é que esta luz está a vir?’

Ainda estou a acabar a escola. Tenho de acabar a escola. E não é este ano, ainda falta mais um. Se me tivessem dito que quando eu comecei a fazer a cena de música na escola — e eles projectam muito para essas coisas de labels depois da faculdade. Não nos preparam para quando é a meio da escola.” 

[O que a inspira actualmente e os serviços de streaming] 

“Procuro espaços mentais diferentes, então a nível de inspirações é a música africana, música brasileira também. Gosto de ver o que é que as pessoas estão a fazer — e agora estamos num neo-tradicionalismo muito forte. Sons of Kemet, BaianaSystem, Samuel Organ, Dinamarca. Eu gosto de música latina. Gosto do beat e da forma como eles produzem o dancehall e o reggaeton. Não vou dizer o reggaeton comercial, mas reggaeton mais trashy. Adoro. Sem muitos efeitos, adoro. Arca também. SOPHIEDeep Listening, o álbum da Pauline Oliveros, Stuart Dempster. As tracks de uma hora da Éliane Radigue. Também gosto muito do Arthur Russell. Essa vibe assim. Toda a parte que eu me identifico mais com a minha cultura é mais a minha pesquisa.

Tem muito a ver também com o algoritmo da Internet. Agora que tenho o Spotify consigo ver mais artistas. Se bem que só agora há uns dois meses é que arranjei Spotify porque nunca fui muito de streaming. Como o Calendário Sonoro é todo no SoundCloud e no Bandcamp, só pus no Spotify no final porque me pediram. Só que eu gosto de ter no Bandcamp e no SoundCloud. Sinto que o Bandcamp dá mais valor à arte toda que eu fiz do que o Spotify. Gosto mais da estética do Bandcamp. Eu tenho sinestesia, por isso a cover de cada música tem muito a ver com o que eu vejo e com o que eu quero que as pessoas sintam. A imagem visual no mundo real que faz a ligação entre os três: eu, a música e a pessoa.” 

[As dificuldades que ainda existem para uma mulher enquanto produtora se afirmar num ambiente de estúdio]

“Eu só venho para Portugal trabalhar. Eu venho cá com os dias sempre contados. O pessoal tenta fazer cenas comigo, já fui muitas vezes a estúdio e eu queria ter o som que eu queria e o produtor não conseguia. Agora sou eu que produzo. Ou então ainda há muito aquele estigma da produtora feminina não produz, ela está no estúdio [por isso] vai cantar, vai dançar ou é dama de alguém e não nos dão a validade ou duvidam da capacidade das mulheres produtoras. 

Acontece mais aqui do que lá fora. Já tive conversas com artistas ingleses que me disseram, ‘o que é que fazes?’, e eu digo, ‘sou produtora e cantora’. ‘Então cantas’. E eu, ‘cantora e produtora’. ‘Então vais cantar essa música para nós’. ‘Desculpa? Não’. Ele não estava a querer acreditar que eu tinha qualidade. Os meus amigos disseram a mesma coisa, mas como eram homens já produziam. E eu não.

E aqui também… tive com uma pessoa que estava a duvidar que eu produzia. Virou-se para mim na semana passada e disse, ‘então diz-me o que é uma master?’, e eu disse, ‘vai ao Google’. E depois no dia seguinte pediu desculpa. Ainda há muito essa cena aqui. Querem que vás no estúdio e depois não se focam na música, focam-se noutras cenas. E eu, ‘então vou embora, estou aqui para trabalhar’. E essa é das maiores drives para eu estar lá a fazer música.

Aposto que há muitas raparigas que tentaram fazer música e que desistiram devido mesmo a obstáculos que te fazem duvidar. Porque eu duvidei de mim mesma. Quando o gajo disse, ‘então ela é cantora’. E eu quase lhe disse, ‘mano, as minhas ondas sonoras davam-te porrada’. Mas não vou dizer isso. Eu tenho um mindset quando eu produzo e eu quero produzir para pessoas. E vou. Já estou a produzir em Londres, mas sei que quando eu acabar a escola e voltar [para Portugal] quero produzir para pessoal. E quero que as pessoas levem a sério. Que quando estamos no estúdio é para produzir e não é para tu levares [para outro lado] porque é uma rapariga que é bonita ou porque cai no estereótipo de beleza de 2022. Foca-te na música. Isso é um motivo para muitas mulheres não produzirem: não querem estar nesses ambientes de estúdio.”

[Metamorfa]

“[A banda sonora] é o reflexo do conceito do desfile dele [Ivan Hunga Garcia], que é o desenvolvimento da espécie humana e transforma-se de algo mais orgânico para algo mais sintético. Não vou dizer que é a minha favorita, mas gostei muito de produzir esta track. Depois do Calendário Sonoro estou a desenvolver para outra coisa. Não vou dizer tracks mais longas, mas tive umas vibes de fazer tracks mais longas em Janeiro, de 8/10 minutos para ver o que é que cresce. É tipo field recording mas é para criar um soundscape. Não é como as músicas do Calendário Sonoro que acontecem. Tu ouves a música e já está a acontecer. 

Anteriormente a fazê-la tive a pesquisar: antes de fazer certas tracks que eu sinto que quero que sejam algo mais, faço sempre umas três ou quatro tracks de pesquisa, então antes dessa track tenho outras três tracks de 10 minutos. Para perceber o mindset que eu estou à procura na track, e o que fica bem também, porque eu não tenho um BPM nas minhas músicas.” 


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