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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/02/2023

Com a ambição de crescer ainda mais.

Wet Bed Gang: “Nós também estamos a levantar essa bandeira da música livre”

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/02/2023

Recebidos em estúdio no dia em que, para assinalar o aniversário de João Rossi — co-fundador e mentor do colectivo Wet Bed Gang, falecido em 2014 —, o quarteto da Vialonga desvendou Gorilleyez, sentámo-nos, inicialmente, com Kroa para testemunhar em directo as primeiras impressões da estreia do segundo álbum de estúdio do grupo. À conversa juntaram-se, ainda, Zizzy Jr. e Gson a seu tempo, eles que vieram reforçar a ideia de que, na visão dos próprios criadores, Gorilleyez é mais um projecto do que propriamente um álbum. Apresentam-no como uma mudança de pele, um reset na máquina que está mais que oleada e que já provou, sistematicamente, funcionar com uma eficiência incomparável.

Numa fase em que o foco está, sobretudo, em robustecer a estrutura, os WBG fazem-se valer da imagem do gorila para, mais uma vez, mostrarem a força da união perante a comunidade. O sucessor de Ngana Zambi chega-nos, assim, nas vésperas do arranque da The Gorilleyez Tour — com duas grandes datas já marcadas para 25 de Fevereiro, em Lisboa, no Campo Pequeno, e 4 de Março, no Porto, na Super Bock Arena —, um espectáculo de consagração que vai muito para lá deste novo disco, numa “viagem nostálgica” (como caracteriza Gerson Costa) em que, nas palavras de Pedro Osório, se vai fazer a “festa no quintal de casa” destes quatro fenómenos do hip hop nacional.



Como têm sido estas primeiras horas já com o álbum cá fora?

[Kroa] Para nós ainda não está bem cá fora… Mas, acima de tudo, estamos gratos por termos conseguido fazer, pelo people todo que nos tem dado aquele apoio, por toda a gente à volta que está envolvida no trabalho, estamos mesmo realizados com isso. Antes de perceber as opiniões das pessoas de fora, estamos bué gratos por toda a gente que esteve envolvida no trabalho. 

Eu estive há coisa de duas semanas no vosso estúdio de Paço D’Arcos a ouvir o álbum pela primeira vez e, pelo que sei, vocês ainda fizeram algumas alterações entretanto. Esses pormenores foram afinados até quando?

[Kroa] Até agora… [Risos] Estamos a tratar das coisas ainda. É aquele processo: estás a fechar e percebes que ainda falta este toque. A nível musical já não tanto, mas a nível visual temos trabalhado até ao último segundo.

E se não lançassem talvez não parassem de mexer…

[Kroa] Sim, sim… [Risos] Tanto que o próprio projecto tem sido assim. A construção do projecto tem músicas desde lá [atrás], que até há pouco tempo estivemos a editar, a fazer, a mexer, vozes, trocar rimas… até sair. 

Nesse dia em que estive com o Gson, o Zizzy e o Zara G em estúdio, eles diziam-me que o álbum, no fundo, já estava feito há muito tempo, e que têm muitos outros projectos mais ou menos já feitos. Quando é que este começou a ser um dos projectos que era mesmo para sair?

[Kroa] Nós lançámos o álbum Ngana Zambi e tentámos dar espaço ao people para ouvir, para entender as músicas, porque é um álbum com muita música, e uma colectânea desse tamanho nunca é fácil de digerir tudo rápido. Então, acima de tudo, deixámos o público respirar, perceber as músicas, tentar entender o álbum, tentar entender o que nós tentamos transmitir o máximo possível. E, quando achámos que o people já tinha absorvido o que tinha a absorver, estava na hora de preparar uma cena nova, mas numa nova linguagem. Então, depois de termos gravado a música “Gorillaz”, em parceria com o L7NNON, começámos a olhar do género: “Devíamos bazar para uma vibe mais savage”. Começámos a olhar para as músicas que tínhamos, a escolher as que achávamos que eram bangers e… O que tiver de ser feito faz-se, o que não houver em músicas boas recria-se, para se tornar aquilo que nós queríamos, e daí para a frente foi começar a bombar: começar a pensar em videoclipes, reorganizar a equipa, perceber o que é que falhou no álbum anterior a nível de imagem, trabalhar nesse aspecto… E esse processo todo é tipo isso: um novo mood.

A vossa forma de chegar aos projectos finais sempre foi essa? 

[Kroa] Nós fazemos só música, ‘tás a ver? Depois, quando decidimos que o projecto está escolhido, conseguimos escolher, imagina, de mil músicas, dez. Ou seja, desde o Ngana Zambi já andávamos a gravar. Fomos ouvir músicas que nem nos lembrávamos que tínhamos…

Qual é a mais antiga deste álbum?

[Kroa] Talvez o “Zona Mista”.

Tem quanto tempo?

[Kroa] O “Zona Mista” é de antes do Ngana Zambi — é do ano do “Devia Ir”.

E entretanto sofreu alterações?

[Kroa] Sim, o Zara [G] trocou umas sete barras; eu tentei mudar uma cena, mas depois voltei a meter a antiga…

Por acaso, quando ouvi o álbum pela primeira vez em estúdio, perguntaram-me qual tinha sido a minha preferida e eu disse essa. 

[Kroa] Ai é? Agora pensa, é a mais antiga… [risos]

E a tua entrada nessa faixa faz-me lembrar um rapper que é o Fínix MG.

[Kroa] Por acaso, eu e ele somos bué amigos, sabes? 

Ou seja, não é descabido ter sentido isso?

[Kroa] Não, não, é mesmo influência! Na altura, ainda por cima, andava a ouvir bué o gajo, então é normal… Grande ouvido!

Tanto no “Zona Mista” como no “Sotaques”, a mensagem parece ser a de mostrar a riqueza cultural do vosso bairro, que se reflecte na música que sai da Vialonga. Isso não começa logo a partir de dentro do grupo? Porque cada um de vocês tem raízes de países africanos diferentes: se não me engano, tu e o Gson têm raízes angolanas, o Zizzy moçambicanas, e o Zara G cabo-verdianas. 

[Kroa] Imagina, não só nós, o grupo, mas os ciganos, os próprios portugueses que têm uma cultura bairrista de Alfama… ali há tudo: pretos, brancos, ciganos, tudo. Então, é por aí: nós queremos falar, “não há cá separações, segregações, estamos mesmo todos juntos a lutar por uma causa”. É difícil dizer que fizemos exclusivamente nesse sentido — é mais abrangente do que nós conseguimos explicar.

Voltando ao conceito de Gorilleyez, vocês já falaram do conceito de o “Gorila” tanto na perspectiva de ser alguém protector da sua comunidade como, também, de representar a imagem do racismo. Que outras camadas estão por trás deste conceito de Gorilleyez?

[Kroa] Acima de tudo, o gorila é um animal possante, mas ele é respeitador se não invadires o espaço dele — ou, pelo menos, caso invadas, que chegues bem, de forma respeitosa, e ele acolhe-te na família. E é um animal muito observador. Há bué macacos, mas o gorila é o gorila. É por aí: nós fazemos a nossa cena, gostamos de estar na nossa, com os nossos princípios e, acima de tudo, viver em boa comunidade. E tens a linha vermelha que não se passa, do género: “Vem ou fica aí”.

Isso em concreto vale para fãs, para a sociedade, para a indústria…?

[Kroa] Para tudo. 

E na produção do disco também se aplica? Só vemos quatro nomes associados à produção do projecto [SUAVEYOUKNOW, Charlie Beats, Holly e Paris Opera].

[Kroa] Não, nós tivemos muita gente envolvida a enviar instrumentais. Nós estamos bué gratos pelos producers todos que fizeram parte deste projecto. O SUAVE fez tipo uma co-produção: escolheu beats, falou com people, apresentou-nos e nós íamos ouvindo. E talvez haja montes de producers que fazem parte do álbum e um gajo nem tem acesso, porque nós trabalhamos directamente com o SUAVE — é muito mais prático. Mas, não me querendo perder, um grande agradecimento a toda a produção envolvida no projecto.

Tinha ficado com a percepção, talvez errada, de que à medida que vocês iam crescendo, o vosso núcleo de produção também se ia fechando com produtores muito específicos.

[Kroa] Não, não. A ideia de teres produtores novos é para a tua musicalidade mudar. É como em tudo… Um producer que já te conhece molda-te, ficas ali num quadrado.

Numa zona de conforto?

[Kroa] Sim, e a ideia é fazer cenas novas, porque senão não evoluis a nível de skill, de música. Não te traz musicalidade nova, as pessoas que estão habituadas a ouvir enjoam-se. E isso até é bom para os nossos producers de casa mesmo: eles perceberem, “OK, eles estão nesta vibe”. Então, eles começam também a fazer cenas novas fora da nossa zona de conforto, porque nós trabalhamos todos juntos. Mas olha aí, cuidado, estamos a dar os nossos segredos, daqui a nada aparece uma Wet para aí… [risos]

Como é que é estar agora numa fase de consolidação, e não tanto de ascensão?

[Kroa] Vou falar mesmo sobre mim dentro da Wet: no meu primeiro projecto, por exemplo, eu tinha 14 anos, mas já recebia bué props e elogios a nível de skills e tudo mais. E chegou uma altura em que já não conseguia fazer nada de novo — flows, rimas novas, punchlines, não conseguia. E começar a trabalhar com a Wet ajudou-me a…

Ter estímulos novos?

[Kroa] Sim, a desenvolver-me outra vez. E a partir daí foi mais perceber como é que é e manter-me aí. Acho que é isso que a Wet está a fazer agora. 

Já fizeram tudo o que tinham para fazer de novo…

[Kroa] Sim, inclusive já quebrámos muitas barreiras. Acho que agora o que estamos a fazer é manter numa linha para subir outra vez, mas para um level à frente. E isso tudo prepara-se. E acho que isso reflecte-se neste projecto Gorilleyez. Estamo-nos a consolidar, não a nível musical, mas numa outra maneira de organização, estruturalmente.

Sentem que, musicalmente, é cada vez mais difícil superarem-se a vocês próprios?

[Kroa] Criativamente, é muito difícil. Nós temos mesmo grandes sons… [Risos] Por isso é que a nossa superação vai partir sempre da estrutra, e não da música — porque, musicalmente, we made it, e nós sabemos mesmo fazer a cena. Agora, nós precisamos das ferramentas para fazer a música chegar ali quando não está a chegar. É quase deixar de ser o grupo das “quatro da manhã” — e ser a Wet, mesmo. 

Com base nessa estrutura melhorada, e a partir das aproximações que já fizeram aos mercados brasileiro e angolano, como é que estão a pensar expandir para esses mercados da língua portuguesa?

[Kroa] Acho que só chegando lá [entra Zizzy no estúdio], a música tem de se fazer ouvir. Desde o momento em que nós consigamos fazer a música ouvir-se… Nós acreditamos bué no nosso projecto. Então, quando isso acontecer, sabemos que vamos chegar às pessoas e que as pessoas vão gostar. Enquanto isso não acontece, nós não sabemos. Então, temos de fazer essa tal estrutura, de fazer chegar lá, para depois nos abraçarem. É como passar o rio: se não consegues ir a nadar, tens de ir de barco. 

Mas interessa-vos mais chegarem lá com a vossa fórmula, ou experimentar o que se faz por lá, mas com o vosso flavour? Ou seja, misturar a vossa essência com a cultura de fora, ou chegar lá com o vosso carimbo?

[Kroa] A segunda opção, óbvio. Claro que tu preferes mil vezes chegar com o teu produto à NIKE — como o Drake fez, por exemplo — e dizeres, “Tenho a NOCTA” [entra Gson no estúdio]. E vendes a NOCTA pela NIKE, mas não é a NIKE em si, é uma cena tua, do que chegares lá e fazeres uma parceria. É muito diferente, sabes que a tua ideia está a ser consumida lá.

Mas até diria do ponto-de-vista criativo, de vos estimular a fazer outras coisas.

[Kroa] Ah, isso claro que sim. Olha, por exemplo, o Gson já fez o som com o Teto [Mizzy Miles – “EUROPA” feat. Deejay Telio, Teto & Gson], e são artistas que nós bebemos do skill deles. Então, é óbvio que nós temos essa vontade de chegar ao estúdio, em breve, e percebermos como é que vai ser essa mistura. E falei deste caso, mas há muitos mais artistas de fora que curtimos bué. 

No próprio Ngana Zambi já há muitos temas que vão beber de outras sonoridades não tão habituais no registo da Wet Bed Gang.

[Kroa] Mesmo no Gorilleyez, a primeira música que saiu foi a “Praça Onze”. Não há uma música desse género no nosso reportório, tirando, se calhar, o… 

[Zizzy Jr.] O “Pagode”?

[Kroa] “Pagode”, ya! Se calhar, é o único. É muito diferente. E dentro desse projecto, do Gorilleyez, tu tens outras músicas que vais perceber — por exemplo, o “Merecido” tem uma instrumentalização completamente diferente de muitas coisas que nós fizemos antes; tens o “circunferência” [“Ca Vá Bien”], também. São musicalidades novas que nós fomos procurar. Mas não com esse intuito, até. Foi mesmo por sentirmos que precisávamos, para a música ganhar uma vida diferente. Acontece de uma forma muito natural.

Pegando na deixa da “circunferência” — e assinalando o verso do Gson, “Zizzy, se eles hoje estão no mesmo círculo, fazem parte da mesma circunstância, não da circunferência” —, nos primeiros anos do vosso sucesso a uma escala maior, passaram por uma fase de deslumbramento?

[Zizzy] Acho que houve um deslumbramento, mas, se calhar, foi da parte das outras pessoas para connosco…

[Kroa] Sim, era o que eu ia dizer. Nós somos pessoas simples. Nem percebemos que isso aconteceu. Nós gostamos de estar com as nossas pessoas, principalmente, fazer a nossa música, saber que as coisas estão certas, saber que estamos a viver do nosso trabalho… Não olhamos para, “Esse gajo está-se a aproveitar, aquela miúda está a chegar” — não olhamos dessa forma. Mas, se há pessoas que pensam dessa maneira, nós estamos a ver. Mas a maldade está na pessoa que está a pensar nisso, e não em nós.

Mas no início não há uma visão mais ingénua nesse aspecto?

[Kroa] Nós estamos a viver um sonho. Tu num sonho nunca tens percepção do que está a ser real. Só depois de errares é que vais perceber, mas na altura é muito intenso — é um sonho. Imagina, nós acordámos hoje, viemos para o estúdio, estamos a lançar um álbum que vai ter buzz, e eu acabei de sair da minha sala e vi a [placa de] platina do álbum anterior. Estou a viver um sonho, vou-te dizer o quê, vais-me dizer o quê? Não sei, estou a viver, estou a experienciar. Depois, se calhar, vou conseguir aconselhar alguém. Agora não consigo aconselhar, estou a viver. 

E, depois de tudo o que já atingiram, que novos sonhos aparecem agora?

[Kroa] Eu acho que ainda falta o que nós merecemos. Falta o prémio do “Devia Ir”, do “Bairro”, do “Não Sinto” — o verdadeiro prémio dado pela indústria, que não quer dar. O que nós queremos agora é o que nós merecemos, o verdadeiro reconhecimento das coisas verdadeiras. E há coisas verdadeiras feitas pela Wet Bed Gang que não são reconhecidas a nível da indústria. Essa é a nossa próxima batalha, não temos mais nada a batalhar.

[Zizzy] O dinheiro é uma consequência boa, e eu quero bué ser milionário — mas quero que isso seja a consequência. A verdade é que nós já atingimos muitas coisas, mas num nicho muito pequeno, porque Portugal — pelo menos na minha visão, e não sei se isto é bom de se dizer — não conta para a estatística.

[Kroa] Somos 10 milhões de pessoas…

[Zizzy] Sim, somos 10 milhões, e se eu canto em português e há tanta coisa em português que abrange milhões e milhões de pessoas…

Seria ambicionar pouco ficar só por aqui?

[Zizzy] Sim, eu não curtia de ficar por aqui. Claro que Portugal vai ser sempre a nossa casa, a nossa base, mas olhando para artistas brasileiros, por exemplo, vês que há a oportunidade de mudares mesmo a vida da tua família. Tu aqui consegues mudar um bocadinho a realidade da tua família, mas não podes tirar a tua mãe do trabalho, não consegues dar uma casa à tua mãe assim [estala os dedos] amanhã. No dia em que conseguirmos alcançar esse tipo de coisas estamos a alcançar coisas grandes. Mudar vidas é outra coisa, não é só comprar uma máquina de lavar para a tua mãe. E as coisas boas, para mim, é internacional a cena, porque acho que Portugal já… Não é “já foi”, porque vai ser sempre a nossa casa, mas eles sabem quem é a Wet Bed Gang, já temos aqui o segundo álbum fora…

É aquilo que eu estava a falar aqui ontem com os nossos tropas: o Ngana Zambi, para mim, é um grande álbum porque é uma masterpiece do início ao fim. E o Gorilleyez é tipo, quando estás a lutar, se deres só um soco, o gajo vai ficar abananado, mas não vai cair. Tens de meter outro gancho, bem metido. E o Gorilleyez, eu sinto que é isso: a confirmação; dizer, “Olha, somos os putos que fizemos isto em 2020, e passados três anos estamos a lançar mais um álbum” — que, para mim, está bué consistente. Tem temas pesados, temas conscientes, tem sonoridades que nunca se ouviram aqui — uma ou duas, pelo menos, nunca ouvi em Portugal. Mesmo em termos visuais vamos ter uma imagem que nunca vi aqui, a abordagem aos videoclipes, até as produções mais simples… 

Ou seja, eu quero alcançar o apogeu da cena toda, que é: “Já faço dinheiro que muda vidas, continuo a fazer a arte que quero e gosto”. No dia em que eu conseguir fazer isso tudo, estou no bom caminho.



Isso vai ao encontro do refrão do Gson na “Zona Mista”, quando ele diz repetidamente “Ainda falta…”. Em relação ao reconhecimento da parte da indústria, acham que, actualmente, o vosso nome já é considerado entre as principais referências da música portuguesa que se faz agora?

[Zizzy] Eu acho que nos corredores vamos ser sempre falados. Se calhar, na sala, não. Mas nos corredores, com certeza — absoluta. Quando for a parte de ir dizer os nomes ao microfone, não acredito muito. Mas também acho que pode ser um trabalho nosso, porque a minha mãe sempre me disse desde que eu era puto: “Filho, tu és preto. Tens de fazer duas vezes melhor para ficares no mesmo nível”.

[Gson] Há cenas importantes a dizer: nós somos os artistas que a indústria quer não gostar, por isso é que a melhor coisa que a indústria diz de nós é os números e as visualizações. Quando eu digo indústria, é a palavra geral, a opinião pública e a opinião da imprensa. Falam bué dos números porque é a única coisa com que não conseguem combater. Mas a verdade é que a verdadeira valorização da Wet Bed Gang está em muito mais do que isso. No fim do dia é essa cena: a indústria quer ter um motivo para não gostar, e isso ressente-se, desde o início — sempre se ressentiu. Então, a nossa fé e foco  está mesmo nos fãs.

Não faltarão mais casos como a Wet Bed Gang para haver essa aceitação?

[Gson] É muito difícil… É bem mais difícil aceitares um grupo. É mais fácil, se calhar, aceitar quando chega um artista; é mais digerível. Quando chega, por exemplo, uma NENNY: “OK, é uma preta do bairro, mas é só uma artista…”. De repente, quando vêem quatro gorilas — nós não escolhemos o nome do álbum à toa —, e vêm em bruto… Porque nós não viemos com a lapidação que a indústria pede, que a elite pede. E, quando vêem quatro por lapidar, acho que fica mais difícil teres outros casos como a Wet Bed Gang em Portugal. Daí compreender que também é mais difícil digerir. 

Mas, se calhar, faltam precisamente mais sucessos espontâneos como o vosso.

[Gson] Tu teres uma Wet Bed Gang que se obriga a digerir, depois tens outros artistas que vêm em consequência dessa cena. É muito mais fácil eu aparecer a fazer quase o que quiser depois de Wet Bed Gang, porque eu sei que eles batiam a fazer o que queriam. Eu acho que nós também estamos a levantar essa bandeira da música livre. 

[Zizzy] Da mesma forma que abriram para nós.

[Gson] Agora é sobre nós, não é?

[Zizzy] Sim, sim, mas também somos consequência de qualquer coisa.

[Gson] Somos ascendentes e descendentes, mas é muito mais fácil tu chegares agora e cantares sobre o que quiseres, porque já houve este background com tanto impacto, de quem não se seguia pelas regras, de quem fazia o que queria e teve, realmente, relevância a fazer o que quer. Ninguém nos deu caminho.

Essa necessidade de validação — que todos temos, seja por quem for — nunca desaparece, mesmo estando onde já estão?

[Kroa] Eu acho que a parte boa disso é o facto de nós termos crescido juntos, e estarmos sempre habituados a criticarmo-nos e a sermos bons para nós. Seja, “Mano, ‘tás a fazer merda”. Isto é bom. E, se calhar, essa validação já existe aqui dentro. Eu sei que eu não posso falhar com o gajo [aponta para Zizzy], sei que ele não pode falhar comigo, e ele vai-lhe dizer a ele [aponta para Gson]. Então, desde aí, nós próprios já saímos de casa confortáveis para o mundo. Agora, só temos de entregar as coisas aos nosso fãs — o que eles estão habituados a consumir —, e ter aquele nível de preocupação da qualidade, e não da quantidade. Essa validação existe já desde aqui de dentro.

[Zizzy] Eu acho que, musicalmente falando — que acho que é onde queres ir buscar —, temos de agradar… Não é que “temos”, mas o ponto, no fim do dia, é agradar os fãs, que eles é que movimentam isto tudo. Mas a verdade é que, no Ngana Zambi, o som que menos aprovaram foi, talvez, o “Balenciaga”, que é o som que eu mais gosto. Ou seja, tenho de me agradar a mim. E, para mim, é muito mais fixe e saudável, mesmo em termos de cabeça, eu sentir-me melhor comigo próprio. Eu faço os sons que gosto, como gosto. Se eles sentirem, primeiro passo. Mas a validação, para mim, não é do João, da Manuela… É o Johnny, o “Paizinho”, o Brizzy, são os nossos pares de dentro. Se eu sentir que os meus de dentro também curtiram, que se foda o mundo…

[Kroa] Sim, quando disse nós os quatro, não nos fechei a nós, mas a todos. O people que vais ver a chegar são as nossas validações.

[Zizzy] Mas eu entendo o que estás a dizer. Claro que é gratificante saberes que as pessoas gostaram da tua música. Mas eu, enquanto ser humano — nem é enquanto artista —, prefiro muito mais sentir-me bem com a minha arte. Sei que os meus pares de dentro se orgulham disso, então, está bom. 

[Kroa] Mas não é tão bonito quanto parece… Eles, quando está uma merda, dizem [risos]. Esses foram os nossos primeiros fãs…

[Zizzy] A mim, é muito mais importante uma opinião deles do que qualquer pessoa de fora que eu não conheça — mil vezes. Porque eles…

[Kroa] Conhecem-nos!

[Zizzy] Há coisas dentro da nossa música que são muito pessoais, coisas muito nossas que são de bairro, muito Vialonga, palavras, slang… Então, se eles sentirem, está bom.

[Gson] E quanto mais proximidade eu tiver de ti, menos me impressionas e mais começas a ser previsível. Já sei os teus maneirismos; já acho que sei como é que o Kroa vai entrar nesta faixa, já acho que sei qual vai ser o refrão do Zizzy. Mas se tu tiveres esse estímulo de estar constantemente a tentar surpreender, isso para mim é que é a grande beleza da dinâmica de grupo. Nós estamos constantemente nessa competição construtiva uns com os outros. E essa competição, tão saudável e assente, entra em tantas camadas de inception, que às vezes há sons em que só nós é que nos estamos a compreender. Como, por exemplo, o “Balenciaga” — não sei se é o meu favorito, mas é um som com bué knowledge e caiu numa cena meio superficial, porque eu acho que é isso: há aí tantas camadas de inception, de dentro do nosso código de comunicação, que, se calhar, não passou. E este álbum tem um ou dois sons que acho que também estão aí.

[Zizzy] Mas isso para mim é bué fixe: não termos medo. É isto que nós somos. Não vamos fazer nada para agradar ninguém.

[Gson] Atenção, há aqui um ponto muito importante — não vamos ser hipócritas. Quando eu estou a caminho do estúdio, vou para o estúdio para fazer livremente música. Mas quando saímos do estúdio, e depois deste processo de construção de álbum, claro que há faixas que olhamos para elas e tentamos perceber, também, o que é que resulta ou não melhor. Mas todas elas são construídas dentro dessa liberdade.

A filtragem é feita a partir disso.

[Gson] A filtragem é feita depois disso, exactamente. Existem estas duas vertentes: a do “faço o que quiser”, e depois o lado de “sou o melhor juiz de mim próprio”.

Já em relação ao vosso regresso à estrada, queria começar pelo Rolling Loud 2023. O que é que significa para vocês actuar nesse festival?

[Zizzy] O que é que significa o Rolling Loud?

[Gson] [Risos] Queres…?

[Zizzy] Vou ser sincero: para mim, é mais um festival; é mais uma data que a gente vai ter.

Mas não vão para lá com a vontade de mostrar que cá faz-se tão bem ou melhor do que lá fora?

[Zizzy] Em 2018, fomos tocar ao Sumol Summer Fest, e o alinhamento éramos nós e depois o French Montana. O dono do festival, o [Luís] Montez, deu uma entrevista na Mega Hits, e ele é que disse isto… Nós fomos lá com o cachet que a gente tinha na altura, o French Montana foi com o cachet do French Montana. Nós chegámos lá, rebentámos aquele palco, partimos o palco ao meio, virámos o palco, emporcalhámos, sujámos, fizemos tudo e mais alguma coisa… O French Montana fez lá uma cena e foi para Londres. Ele, se calhar, deu o cachet de várias casas ao French Montana, e nós é que fizemos a festa. Por isso é que eu digo: o respeito que um gajo dá a esses americanos do Rolling Loud pelo facto de estarem noutra realidade, terem outro tipo de ferramentas, bom para eles. Por exemplo, agora os Migos acabaram. Mas, para mim — podem-me crucificar, mas vamos falar de música, de rap, sem falar de dinheiro —, se calhar não iam aguentar… Se fôssemos a fazer o balanço de verdade, som a som, repertório…

[Gson] Show, também…

[Zizzy] Se calhar, não nos iam aguentar… E isto não é ser arrogante, é a pura da realidade. Se formos a falar de música e de performance fica muito complicado para todos os americanos que estão aí, sem contar com o Travis [Scott]. Agora, o resto não me assusta — nenhum deles.

[Gson] Só para responder à tua cena anterior; tinhas perguntado se, para nós, era importante ir ao Rolling Loud. Não acredito que eles reconheçam propriamente…

[Zizzy] Eles precisam de ti!

[Gson] … quem são os artistas daqui, mas eles querem mais público, querem “colonizar” o país onde têm o festival. Então, pelas contas que eles fizeram o ano passado, se calhar, era estranho fazer o Rolling Loud em Portugal e 10 por cento do público são portugueses. “Então, ok: ‘bora ter mais público daqui, que é para podermos ter mais portugueses nos próximos anos” — acho que esta está a ser a lógica deles. Então, não acredito que eles, genuinamente, reconheçam o nosso trabalho; eles precisam dos artistas com mais números e com mais nome. Mas é sempre uma oportunidade. E, mais uma vez, neste Rolling Loud vamos entregar aos fãs que, directa ou indirectamente, nos fizeram estar lá. Não é propriamente pelo festival. Eu, pessoalmente, prefiro o FATACIL [Feira de Artesanato, Turismo, Agricultura, Comércio e Indústria de Lagoa], em que tens 90 ou 100 por cento do público que conhece Wet Bed Gang — e pagam-te melhor e valorizam-te como artista português cabeça-de-cartaz. 

[Zizzy] Também te digo, nós só actuamos em sítios que faça sentido para nós. Se chegarmos lá e virmos que não faz sentido, eu não actuo — não sou palhaço.

E sobre os vossos próximos dois grandes concertos, quais são as vossas expectativas e que tipo de espectáculo vão levar?

[Gson] É uma viagem bué nostálgica, porque isto aqui era para acontecer em 2020, ou seja, isto era um show de tudo o que aconteceu de Wet Bed Gang até 2019. Em vez disso, somámos tudo o que aconteceu até 2019, mais 2020, mais 2021, mais 2022 — anos de COVID-19 —, e agora está a acontecer tudo em 2023. Este era o nosso ano do Altice [Arena]! 2020 ia ser o ano do Campo Pequeno, para este ser o ano do Altice a sério. Então, para te responder, eu acho que esse show responde à vida toda que aconteceu, mesmo neste retrocesso… [Entra Zara G no estúdio] E olha esse americano aí [risos].

[Zizzy] Agora eu vou ter medo do Playboi Carti… [risos] E deixa-me só rematar com isto tudo que ele disse: hoje [21 de Fevereiro] o [João] Rossi faria mais um ano de vida, e eu já pensei bué nisso — o que é que vai ser aquele concerto até para mim. “O que é que vai ser para ti, Pedro?” E, além disso tudo, a única maneira de nós celebrarmos a vida… E neste momento nem digo só a do Rossi, digo a vida da Wet. Eu quero dar um grande show, obviamente, mas aquilo, para mim, é o quintal de nossa casa e é a maneira de fazermos a festa de anos do nosso irmão que já não está cá.


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