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Vários Artistas

TRAИƧA

Red Hot Organization / 2024

Texto de Filipe Costa

Publicado a: 02/12/2024

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É preciso recuar até 1990 para compreender a nobre e pioneira missão da Red Hot Organization no combate ao HIV/SIDA através da cultura pop. Red Hot + Blue, a primeira compilação da renomada organização sem fins lucrativos, reuniu versões de tributo ao famoso cantor, compositor e ícone gay Cole Porter, ajudando a reduzir o estigma em torno da epidemia. O álbum vendeu mais de um milhão de cópias em todo o mundo, reverteu milhares de dólares para o grupo ativista ACT UP — essencial no tratamento e defesa de pessoas seropositivas — e foi posteriormente adaptado para um especial de televisão transmitido em horário nobre pela ABC, com Richard Gere, Carrie Fisher e Kyle McLahan entre os ilustres apresentadores. Foi o pontapé de partida para uma justa campanha que se prolonga até aos dias de hoje, com mais de 20 compilações e cerca de 500 artistas envolvidos, de Madonna a D’Angelo e Jonathan Demme. Este ano, a instituição de John Carlin entregou o testemunho a músicos trans, não-binários e aliados, com o objetivo de celebrar a comunidade e reivindicar os seus direitos. O resultado foi TRAИƧA, um monólito de 46 músicas e mais de três horas de música expansiva que tem em “Young Lion”, o primeiro tema de Sade em 14 anos (em homenagem ao filho trans Izaak), a cereja no topo do bolo. Mas vamos por partes. 

O mais recente volume da coleção parte da tragédia. Em entrevista, o curador Dust Reid — responsável, juntamente com a música, modelo e ativista Massima Bell, pela ideação, montagem e produção da compilação — contava ao Guardian como a morte precoce da escocesa SOPHIE, em janeiro de 2021, acendeu a clareira de um desejo há muito ambicionado. A intenção, notava ao diário britânico, passava por construir uma obra que demonstrasse o “espírito unificador que conecta” a comunidade trans, recorrendo para isso à “força realmente poderosa” da música. Para tal, reuniu mais de 100 artistas numa ambiciosa coletânea que extravasa categorizações, de Adrianne Lenker a André 3000, passando por Beverly Glenn-Copeland, Cassandra Jenkins, Grouper, Kelela, L’Rain, Perfume Genius e Yaya Bey.

Dividido em oito actos, TRAИƧA coloca em diálogo músicos de diferentes gerações, convidando-os a interpretar temas dos artistas que mais admiram (Kate Bush, Prince, Jeff Buckley e Jayne County são alguns dos homenageados neste lançamento). Ao contrário do que acontece em volumes anteriores, TRAИƧA não está ligado por um chão comum. Outros lançamentos percorreram os sons da tropicália, da country e do afrobeat, recorrendo sempre às vozes que definem o zeitgeist. O mais recente volume da Red Hot, no entanto, é um céu aberto de jazz, ambientes líquidos e tratados de new age pacificadora em saudável conflito com novelos de folk pastoral, indie insular e alguma poesia de intervenção.

Caras familiares repetem-se ao longo do alinhamento, como a voz de Beverly Glenn-Copeland (reparadora a versão do original “Ever New”, aqui glorificada com o admirável alcance vocal de Sam Smith), as harpas de Mary Lattimore e os poemas de Marsha P. Johnson e Eileen Myles (é ela que fornece os versos proferidos pela atriz Hunter Schafer no tema “Under the Shadow of Another Moon (Dark Night)”, por cima de uma deliciosa tapeçaria de saxofones adulterados). Um caminho que se faz por linhas andrajosas que se cosem e descosem com frequência: L’Rain interpreta duas canções de ANHONI com o Trans Oral History Project; ANHONI canta com Moses Sumney uma versão de “Is It Cold in the Water”, de SOPHIE; Moses Sumney repete a dose e canta o clássico disco “You Make Me Feel (Mighty Real)”, do norte-americano Sylvester. Depois do voo rasteiro de Mary Lattimore, Laraaji, MIZU e Jamal Shakeri, na inaugural “Midnight Moon Pool (Womb of the Soul)”, segue-se mais um cruzamento pródigo, desta feita entre Devendra Banhart, Blake Mills e Beverly Glenn-Copeland, juntos para uma versão expansiva do clássico “You Don’t Know Me”, de Caetano Veloso (não inocentemente, retirada do disco de ‘72 que partilha o título desta compilação). Do alto dos 26 minutos de “Something Is Happening and I May Not Fully Understand But I’m Happy to Stand for the Understanding (Awakening)”, um épico de flautas e teclados vaporosos conjurado pelo ex-Outkast André 3000, encontramos a essência libertária que evade TRAИƧA: a sensação de abandono, a deriva espacial, a imposição de uma liberdade criativa. Um espaço seguro de afirmação e identidade, erguida a partir dos interstícios do luto, da sobrevivência e da aceitação — em direção à inevitável transformação.


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