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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 30/01/2021

A escocesa deixa um legado dividido entre os redutos underground da electrónica e os palanques da pop mundial.

SOPHIE: a arquitecta da pop da última década

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 30/01/2021

A notícia veio súbita, tal como a emergência de Sophie Xeon no mundo pop. Faleceu aos 34 anos a produtora, cantora, compositora e DJ escocesa, como confirmado pelas suas editoras Transgressive e Future Classic. Uma queda fatal, após ter subido para ver a lua cheia, marca o ponto final de uma vida dedicada a esculpir uma electrónica vivaz e viscosa, requisitada por artistas desde Madonna até Vince Staples.

Artistas, pares e amigos de SOPHIE, como Shygirl, Sarah Bonito ou Flying Lotus, têm deixado as suas condolências no Twitter. “SOPHIE é a razão pela qual a música pop actual soa como soa hoje”, proferiu a artista não-binária Evil. “Não são muitas as pessoas que podem reclamar tamanho impacto. Mas a SOPHIE fê-lo. Intocável, [ela] mudou o mundo.”

Editou um único álbum de originais, Oil of Every Pearl’s Un-Insides, em 2018: símbolo da sua afirmação definitiva enquanto autora conceptual, não apenas ao serviço de outrem ou de singles avulsos. O disco mereceu-lhe uma nomeação para o Grammy de melhor disco electrónico; foi na digressão subsequente que veio ao NOS Primavera Sound, na cidade do Porto. Foi também quando se assumiu mulher transgénero e ícone visual, através da balada “It’s Okay to Cry”, talvez a canção mais gutural e luminosa da artista, numa carreira cheia delas e respetivo vídeo.

A voz e a imagem física de SOPHIE eram, no início, partes omissas da sua obra, a título de uma presença vaga (por vezes até substituída em palco) mas rapidamente endémica. Tudo começou com o maxi plástico e luminescente de “Nothing More to Say” e “Eeehhhh”, seguido do escorregadio “BIPP” de 2013, que lhe mereceu o culto. “Dá a ligeira sugestão de um drop cobiçado, mas a verdade é que esta faixa está a operar noutro plano”, escreveu Jazz Monroe na Pitchfork, já a aferir uma mudança de paradigma. Aquela para a qual a escocesa reuniu a artilharia desde cedo.

Nasceu em 1986, na cidade de Glasgow. O pai, fã de música rave, inculcou-lhe uma correspondência natural entre o som e o futuro. Aos nove anos, como contou à publicação Lenny, SOPHIE quis sair da escola para se tornar produtora de música eletrónica. Sem o desejo concretizado, mergulhou nas suas cassetes de rave e dedicou-se ao seu teclado, movida pelo desejo de fazer um álbum; nos tempos livres, era DJ em casamentos. No final dos anos 2000, fez parte da banda Motherland, da qual não sobrevivem detalhes para além de uma demo (já com indícios da sincopação e da potência que viriam a caracterizar SOPHIE a solo).

É na década seguinte que se impõe como criadora, com “BIPP” e os seguintes singles, compilados em 2015 sob o título Product, que foi comercializado como um aparente dildo de silicone. (“Unisil”, faixa-bónus, foi editada no passado dia 14 de janeiro, como lado B da remistura de “BIPP” pelos ingleses Autechre.) “Lemonade”, um teste do quão aditivo pode ser um pedaço de eletrónica abrasiva, foi o raro caso em que a revolução foi televisionada, como parte de um anúncio da McDonald’s. 

SOPHIE fez do som uma marca: de reconhecimento instantâneo, de emancipação e de colaboração. A jornalista Sasha Geffen, que traçou um dos mais reveladores perfis de SOPHIE, atribuiu o seu estilo à tradição sonora da produtora Wendy Carlos, outra mulher trans na indústria. “É um mundo sonoro visceral, táctil”, feito a partir de ondas de som manipuladas e vozes febris. Uma plataforma orgásmica quando não delirante; um mundo surpreendentemente tenro, para dentro de minutos voltar a amordaçar. 



“Porque haveria algum músico de querer limitar-se a si próprio? Tens de trabalhar com as ferramentas mais poderosas que tens ao teu dispor”, declarava SOPHIE ao canal francês Arte. “No passado, isso poderia ter sido um piano ou uma guitarra. Mas agora, creio eu, o poder dos sintetizadores de software é algo que todos os músicos deveriam querer refinar.” 

O seu último crédito de produção é dividido com a amiga e colega Arca, em “La Chiqui”, faixa do álbum KiCk i.

Embora SOPHIE nunca tenha feito parte da editora PC Music, é tida como nome vital no colectivo, a par dos produtores A.G. Cook e Danny L Harle. Foi nesta dinâmica que se cruzou com Charli XCX, com a qual moldou o EP de culto Vroom Vroom. “Há poucos artistas que me fazem sentir algo no meu cerne [ao ponto de] querer chorar”, disse XCX à Vogue. Participou também em faixas de Cashmere Cat, Gaika, Let’s Eat Grandma, Liz, MØ, ou o grupo de K-pop ITZY.

Contudo, a pegada de SOPHIE na música pop não se ficou pelos nichos. Deveu um dos seus primeiros créditos de produção a Madonna: em 2014, produziu “Bitch I’m Madonna”. Um ano depois, compôs e produziu uma faixa no derradeiro álbum de Namie Amuro, a grande diva da pop japonesa. 

O impacto na cultura popular não se ficou pela definição tradicional: o hip hop, sendo também pop, foi outro território de SOPHIE. Não só produziu canções de rappers como Le1f ou Quay Dash, ajudou a enformar a massa sintética, trepidante de Big Fish Theory, álbum de Vince Staples — um som que, como nota o crítico Craig Jenkins, se disseminou por inteiro no hip hop actual. 

“A coisa mais entusiasmante para mim é entrar no ambiente de alguém e sair com um resultado que nunca poderia ter imaginado [antes]”, frase dita por SOPHIE a Sasha Geffen em 2018, ajuda a perceber o estado do seu catálogo, onde proliferam trabalhos em conjunto e remisturas encomendadas. Várias frases poderiam constar num monumento a SOPHIE; esse monumento é, na verdade, todas as possibilidades que deixa como matriz para a música pop. 

Uma área que rejeitou satirizar ou ver como uma piada — e que, defendeu à Rolling Stone em 2015, “deveria ser sobre quem consegue fazer a coisa mais brilhante e com mais volume”. O futuro sempre foi o tempo em que SOPHIE se conjugou: um futuro plástico, agressivo, progressivo. Pop por redefinição: trans, transdisciplinar, transindividual e transgressiva.


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