Pontos-de-Vista

Pedro João Santos

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Um festival tempestivo, alicerçado na paridade, sensível aos sons que verdadeiramente estamos a ouvir, capaz de acomodar mulheres e gente queer, incinerando caixas e preconceitos pelo caminho.

O Divino Feminino

Testava-se o fervor da antecipação num dos concertos principais do NOS Primavera Sound, quando prorrompeu um grito familiar, de uma justiceira de si mesma. “A ningún hombre consiento”, pronunciava uma estrela cadente e irredutível, abocanhando a frase a passos cada vez mais largos, abastecendo-se do oxigénio libertador, “que dite mi sentencia”. A nenhum homem Rosalía cede primazia — e se houver ameaça disso, basta pensar nos sons de “Maldición”, talvez de Mortal Kombat, de grunhidos e espadas a atingir uma e outra víscera. E em momento algum se pensa num senhor que se adequasse a esta noite. Ou às duas que a antecederam.

Em 2019, o fim-de-semana em que o NOS Primavera Sound se erigiu sobre o Parque da Cidade teve outro perfume — não floral ou delicado, mas versátil e assoberbante. Foi fácil perceber quem levou a parte de leão do bolo para casa, bastando para tal ouvir as conversas mais passageiras, ou activar a memória do que ficou de cada dia. Não, não foram os Interpol. Foi o despotismo da liga feminina em campo, sem tempo para brincadeiras. As mulheres, as mesmas que um senhor caduco dos GRAMMYs dizia terem de apressar o passo, levaram-nos ao parque, alimentaram a curiosidade, deram-nos vida. O que não é para dizer que os homens ficaram totalmente aquém, e basta lembrar Sons of Kemet XL, JPEGMAFIA e Jorge Ben Jor.

O irmão mais novo do pródigo evento em Barcelona teve uma curadoria tempestiva, alicerçada na paridade, sensível aos sons que verdadeiramente estamos a ouvir, capaz de acomodar mulheres e gente queer, incinerando caixas e preconceitos pelo caminho. Dá-se destaque às identidades não-binárias: o importantíssimo Mykki Blanco terminou o seu concerto para fazer uma discoteca com dançarinos das festas Mina, e a certo ponto correu para as árvores para desagrado dos seguranças.



Recordam-se dos abalos sísmicos do anúncio de um cartaz vidrado num “novo normal“? Os protestos em surdina, engalfinhados nos espaços de comentários do Facebook, da cloaca que vê o indie rock a perder terreno (há uma para cada festival, com ajustes, e começa a deixar de fazer sentido dar-lhes resposta) — coisa que nunca chega a acontecer: continua lá, rejuvenescido, como o minimalismo da orgânica Christina Rosenvinge e a prestável Lucy Dacus, que rapidamente nos unem as costas à relva, debaixo do sol. A Miss Universe, diga-se Nilüfer Yanya, é a corporização do pôr-do-sol com as melodias em staccato, pulsáveis nas suas frequências mornas, cáusticas.

Ainda assim, existe esse pedantismo incendiário sobre a violação de uma alegada identidade do festival — forjada na hora. O que fazer quando deparados com uma panorâmica do globo sonoro que nivela o mais cutting edge ao lado das sensações mais caloríficas do momento? É realmente um infortúnio tirar algum espaço no pedestal às guitarradas brancas do alternativo (de que também se gosta, e que não desapareceram). Manifesta-se em ataques velados, também entre suspiros de quem vê nomes no feminino, que espelham coisas mais graves do que o mero descontentamento com ter de ouvir “Mi Gente” num palco que já recebeu Bon Iver — e, sim, tivemos J Balvin a literalmente fixar a palavra “reggaeton” abaixo do letreiro do festival no seu maior palco; se isso não é uma declaração de poder, não sei o que seja.

Na verdade, sei. Voltemos a Rosalía, por exemplo. A coreografia maquinal, o drama clássico, a sequência impecável, os palmeros e as vozes de apoio: a catalã rodeou-se da artilharia de um sofisticado espectáculo pop — alguma contenção, como obriga um festival — e deu uma lição aos seus pares de transcender, a ponto de dissolver a expectativa, muitas vezes bastando-lhe a sua voz e um fundo escuro para arrepiar.



Um banquete sensorial que sete horas antes já merecia reservas na grade, e que à toada da última palma, despertou o maratonista em mim para atender ao chamamento de Neneh Cherry. Monte acima, acedemos à contundente purificação da autora de Broken Politics que não se esquece da MC de Raw Like Sushi. Longe de platitudes e diagnósticos à superfície, Cherry continua a ter o mundo para si, brincando com a sua caixa de velocidades, mas não nos deixando esquecer da premência de sermos humanos. O adágio “No money man can win my love” ecoou pela noite dentro. Na primeira noite, víamos um concerto de mudar uma vida, pelas mãos de Solange e a sua instalação artística ao vivo, o twerk radical e a negritude resplandecente, o improviso em espiral.

Monte abaixo, outra corrida — até Erykah Badu. O atraso de meia hora foi um avanço para uma liturgia digna do bom nome de Soulquarian, um espetáculo tão consistente quanto humanamente possível — lançou-nos numa dimensão cósmica com uma dose alienígena de soul (acreditam que ouvimos “Kiss Me on My Neck” no Porto?), e da qual custou a descolar. “Bag Lady”, esse segmento de profunda catarse, foi subcutânea, a desenrolar-se aos nossos olhos: depois de quase duas deliciosas horas envolvida na sua idiossincrasia, veio até nós, seduziu o operador de câmara (com um minuto hilariante em que se revelou incapaz de dominar uma câmara instantânea). Não há concerto que Badu dê que seja igual ao anterior: enquanto entertainer, compõe-se de várias modalidades e é uma nova a cada momento, mas explicita o desejo de ser una com o público, de transcender cor e sexualidade.

Este era o último de 12 concertos no maior palco do festival, um dos seis (a exacta metade) levados a cabo por mulheres — tomem nota.



SOPHIE, cuja aparição espectral perdura desde a madrugada prévia, é, bem, SOPHIE. Monolítica. Obscurecida. Estamos habituados a que nos queiram conquistar, dar um crescente mais, mas ela olha-nos impávida sob o véu de fumo — e reciprocá-lo já implica um olhar furtivo à sua feição, quando a tirana iluminação nos dá um segundo. Era seguro apostar que pouco se preocupa com o divertimento destes mortais que ouvem “Ponyboy” e “Whole New World” no conforto do seu lar. É aqui que verdadeiramente se experimenta, com as frequências de fundo amplificadas até à quase-dor, saturadas e repetidas já depois da satisfação que poderíamos ter imaginado descartável; não, vamos seguir as pistas dela, e ser o joguete nas suas mãos. Admirável o quanto se remove do que queremos, e o quanto ainda caímos mais sob o seu jugo.

As mulheres no Primavera Sound estão num compromisso inquebrável com a sua própria agenda. É sua a gestão do ouvinte, a idealização de um espectáculo tecnicolor ou descarnado. É seu todo o aparelho, independentemente de onde as procurem, do mais remoto e verdejante palco — faltando ainda mencionar a épica dupla Let’s Eat Grandma, o r&b fragmentado de Tirzah, o jazz prazenteiro de Nubya Garcia… — e do espaço de electrónica onde singraram Yaeji e Nina Kraviz, até ao massivo palco onde vimos as cabeças-de-cartaz.

Melhor: faz-nos não ter de procurar. Em todo o espectro de sons, cores, personalidades, modos, estéticas, idades, o Primavera Sound abraça a feminilidade sem definição sufocante. Conseguimos cartografar aqui o som e as palavras no feminino — todas as suas partes e espaços, manifestações e linhas. É assim que se faz.


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