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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 27/10/2021

Com novo álbum cá fora.

Vanishing Twin: “Somos parte dessa evolução pop que se deu a partir do jazz”

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 27/10/2021

O concerto que os Vanishing Twin da cantora e multi-instrumentista Cathy Lucas, da baterista Valentina Magaletti, do baixista Susumu Mukai e do teclista e guitarrista Phil M.F.U. assinaram aquele que foi muito provavelmente o melhor concerto do Tremor, festival que decorreu no passado mês de Setembro em São Miguel, nos Açores.

O autor destas linhas, a serviço do jornal Expresso, prestou total atenção à apresentação do grupo que, tendo membros de várias nacionalidades, tem residência fixa em Londres:

“A música que os Vanishing Twin fazem parece saída de uma qualquer dimensão alternativa em que o tempo possa ter parado em meados da década de 1970: cruzam jazz modal e espiritual, cadências de bossa nova, electrónica inspirada na Library Music, bandas sonoras de obscuros filmes italianos e aquele tom meio blasé que se desprendia da música dos Stereolab ou Broadcast. O resultado, diga-se, é entusiasmante: ‘O nosso processo é mais intuitivo e, vá lá, mágico, do que laboratorial. Nasce do improviso, não de uma vontade consciente de combinar todas essas referências’, garante Cathy.

No concerto há, além de Lucas em guitarra e sintetizador, a incrível Valentina Magaletti, aqui num registo bastante diferente daquele em que se apresentou enquanto parte do duo CZN que tem com o baterista português João Pais Filipe, mais exuberante e fluída, de tonalidade jazzy e bastante sofisticada, o elegante baixista Susumu Mukai, e o veterano Phil MFU, igualmente em evocativa electrónica, e ainda um flautista convidado. Juntos, os Vanishing Twin criam uma densa música de difusa proveniência, mas de clara eficácia na forma como nos transporta para um outro tempo e lugar. ‘A música”, explicava-nos Cathy Lucas, ‘também serve para viajar. Nós todos adoramos visitar lojas de discos nos sítios onde tocamos, gostamos de encontrar discos invulgares e de os escutar como forma de viajar até outro tempo, explorando outras práticas e ideias que usamos como inspiração’.

E é dessas viagens – as que se fazem entre lugares, entre continentes e ilhas, mas também entre experiências, estéticas e sonoridades – que se fazem as entusiasmantes rotas de um Tremor que aponta para o melhor dos sítios: o futuro.”

O disco que os Vanishing Twin ante-estrearam no Tremor acaba agora de ser lançado: Ookii Gekkou (“Grande Luar”, em japonês) sucede a The Age of Immunology e é uma das belíssimas surpresas do ano, um trabalho que se apresenta entre géneros e eras, impondo a sua própria noção de tempo, mas que se faz de uma sofisticada rede de ideias, partindo do improviso, como impulso criativo, para um aturado desenho sónico alcançado na mistura. Combinação de magia e ciência ou de ritual e protocolo.

A conversa com Cathy Lucas aconteceu no átrio do hotel que servia de base aos convidados do Tremor, horas antes da sua memorável apresentação no Coliseu Micaelense.



Deixa-me dizer-te que adorei ler as notas do vosso último disco. Parecem riscar cada uma das caixinhas que compõem o meu gosto pessoal — do Sun Ra à Alice Coltrane, do Martin Denny ao Ennio Morricone… Como é que vocês chegaram a este lugar onde moram todas estas referências?

Acho que foi um processo muito natural para nós. Nós somos fãs de discos e adoramos ir às compras quando andamos em digressão por diferentes cidades. Essa é uma das formas através das quais partilhamos os nossos gostos. E em Londres também. Existem algumas lojas às quais todos nós vamos recorrentemente, por terem coisas de que nós gostamos, mais dentro do nosso mundo. É isso que nos permite entrosar-nos melhor uns com os outros, essa partilha de diferentes sabores musicais. Até porque nós viemos todos de contextos diferentes — de países diferentes, com histórias diferentes e também temos idades diferentes. De algum modo, encontrámos este ponto em comum.

Lembro-me de ler sobre library music italiana e os discos eram de tal forma caros que eu achei que nunca os iria conseguir ouvir. No entanto, nos últimos anos têm acontecido carradas de reedições e eu finalmente consegui mergulhar em discos do Bruno Nicolai, por exemplo, entre outros. Quando dizes que vocês são coleccionadores, é no sentido de irem à caça dos originais?

Isso depende da pessoa em questão. O nosso teclista Phil, por exemplo, compra uma data de álbuns de library music originais. Ele praticamente só compra library music. Ele tem muita coisa do Canadá, cenas inglesas, muitas coisas da KPM… Library music italiana nem por isso. A Valentina sim, tem uma grande colecção de todos os tipos de música que possas imaginar e tem sido uma referência para mim já há muito tempo. Ela tem coisas italianas. Obviamente que ela ama originais [risos]. E ela até já esteve com alguém da CAM ou algo assim. Digamos que ela é capaz de se colocar em situações dessas por vezes [risos]. Ao mesmo tempo, nenhum de nós está naquele patamar de gastar vários milhares de libras para conseguir um certo disco. Estamos ali no meio.

Eu ainda só consegui ouvir um dos temas do álbum, o “Phase One Million”. O videoclipe dessa faixa foi feito com plasticina, certo?

Sim, foi isso.

A sonoridade dessa música aponta para várias coisas das quais eu gosto. Uma dessas coisas é esta ideia de explorar uma certa impressão do passado, algo que já foi rotulado como hauntology. Como é que vocês se relacionam com este conceito? Vejo-te a sorrir de uma forma estranha [risos]…

Sim, porque eu li um texto que falava sobre isso e que baralhava ali algumas coisas… Eu diria que, para nós, isso não é um processo intelectualizado. De todo. É muito instintivo, muito livre. É do tipo, “nós gostamos? Se sim, boa. Se não, ok…”

Mais ritualístico e menos laboratorial?

Eu diria que sim. Mas, de certa forma, o laboratório às vezes está repleto de rituais [risos]. Mas é certamente algo não premeditado.

Mais magia e menos ciência.

Mais magia, definitivamente. As bases de cada tema são, por norma, improvisações. É dessa forma que estamos a trabalhar. A direcção que a coisa acaba por tomar, acaba por ser também um processo muito livre. Nós ouvimos as coisas, de olhos fechados, e pensamos “ok, qual será o próximo passo?” Acho que a razão pela qual tende a soar a essas referências, de discos antigos, é porque os nossos ouvidos estão meio que afinados dessa forma. É uma cena estranha de se explicar. Mas eu acho que quando tu levas a vida a escutar diferentes estilos musicais, o teu gosto vai-se alterando com isso. Parece mesmo que a audição se molda, que escutas as coisas de forma diferente. Neste momento, eu ouço as coisas de uma maneira diferente do que aquela com que ouvia há uns anos. É isso que dá forma à nossa música. É um certo gosto interno que se vai desenvolvendo dentro de nós.

Fala-me sobre a criação do álbum. Ele foi feito durante o confinamento?

Tal como te disse, a improvisação esteve na base de cada canção. E nós fizemos diferentes sessões — uns dias aqui, outros dias ali. Tivemos sessões que aconteceram durante uma residência na PRAH, em Margate, que é um projecto de um tipo da Moshi Moshi Records, em que ele convida músicos para lá ficarem alojados e utilizarem o estúdio. Estivemos lá. Também alugámos o Cafe OTO por uma semana, por volta de Setembro. As coisas estavam mais ou menos abertas, mas sim, foi durante esse período [do confinamento]. Mas também tínhamos material de sessões antigas. Eu diria que o álbum começa a ser equacionado quando encontrámos o nosso novo espaço, que é um estúdio que inaugurámos em Dezembro, em Londres. Foi aí que as coisas começaram realmente a ganhar contornos. As sessões das quais gostávamos, pegava-mos nelas e construíamos canções a partir dali. Há muitas gravações vindas de sítios diferentes mas foi tudo desenvolvido a partir do nosso tal novo estúdio.

Se me falas na aquisição de um novo espaço no final de 2020, deduzo que parte do desenvolvimento desse disco tenha acontecido também durante este ano.

Fomos para esse estúdio em Dezembro. Diria que a criação do álbum aconteceu entre Janeiro e Abril. Foi um período muito intensivo, durante o qual, entretanto, se meteu também o Natal… Eu não sei se tens ideia disto, mas o Boris Johnson cancelou o Natal com três dias de antecedência [risos]. Fomos impedidos de viajar. Por isso, esse foi um Natal muito calmo e muito estranho para todos nós. Os meses que vieram depois foram ainda mais intensivos do que os do primeiro confinamento. Foram tempos muitos tristes e estranhos. Aproveitámos para nos dedicar a isto. Eu vivo com um dos meus colegas de banda e, dessa forma, também acabas por te dedicar ainda mais ao trabalho.

Esse clima estranho de que me falas, sentes que é algo que também passou para o disco?

Sem dúvida. Todas as letras foram escritas mais ou menos durante esse tempo. Elas reflectem mesmo essas coisas diferentes pelas quais eu estava a passar. E do Phil também, porque ele ajudou a escrever duas das canções.

Dirias que este disco é uma continuação lógica daquilo que vocês já vinham a fazer ou há aqui uma certa ruptura com o vosso passado?

Sente-se que é um álbum diferente. Nós trabalhamos de forma semelhante à do nosso último álbum em várias maneiras diferentes. Existiram processos similares. Mas creio que, em termos de fundir improvisações e torná-las em canções dentro de um espaço tão curto e tão intensivo, os resultados foram bastante diferentes. As temáticas são diferentes. É um álbum mais emocional e menos político do que o anterior. Nesse trabalho eu estava mesmo a querer dizer algo em específico relativamente às políticas que tinham vindo a ser adoptadas no Reino Unido, na altura. Este novo disco é mais instintivo e reage às coisas que estão a acontecer no presente. Tem algumas cenas, cenas extraídas da realidade, cenas de ficção científica… Há uma faixa que se intitula “In Cucina”, porque eu naquela altura estava a cozinhar imenso [risos]. Tentei evocar esse sentimento de se estar extremamente ocupado dentro de uma cozinha, a atirar panelas pelo ar. A “The Organism” tem esse tal lado da ficção científica. Parte da ideia de te manteres positivo enquanto organismo num planeta estranho. Acho que isso se aproximou bastante daquilo que estamos a experienciar de momento. É interessante [risos].



Aposto que vamos ouvir algum desse material no concerto.

Estamos a tocar algumas dessas faixas, sim. Essa que tu ouviste e, pelo menos, mais outras duas. Talvez três.

Contas-me que a música parte das improvisações e que depois voltas ao painel de controlo, por assim dizer, para aceder a diferentes sessões de gravações, misturá-las e finalizá-las na perspectiva daquilo que é o álbum. Mas depois, tens ainda de as repensar no contexto de um concerto. É assim?

Isso é outra das tarefas que temos de fazer, completamente. Demora o seu tempo preparar as canções para tocar ao vivo. É porque nós nem sequer pensamos nisso enquanto estamos a construir o álbum, de todo. É deliberado. Lá está, é por ser um processo tão livre. Nós, depois, é que temos de o reinterpretar. É sempre uma coisa muito interessante de se fazer. Acabas frequentemente em algo que até soa um bocado melhor que o original [risos].

Podes sempre gravar um espectáculo e editá-lo.

Já o fizemos no final do ano passado. Fizemos um filme-concerto do espectáculo que levámos em digressão. Não foi uma só filmagem do início ao fim. Foi algo que levou ainda algumas gravações e bastante produção. Foi uma forma muito divertida de mostrar às pessoas como é que a banda soa ao vivo, mas também de criar um certo mundo à volta daquilo que estávamos a tocar.

Além das referências que vocês têm nas notas do disco, eu não deixo também de sentir um certo jazz na forma como vocês trabalham — e tu tens estado a falar-me da importância da improvisação, por exemplo. Isso é algo que aprenderam a escutar discos de jazz ou estamos aqui a falar de um outro tipo de improvisação?

Deixa-me ver…

Também posso ser mais directo e perguntar: que papel desempenha o jazz na forma como vocês compõem?

Na minha cabeça — e com isto quero dizer que não tem de existir necessariamente na realidade [risos] — existem dois caminhos que a música pop percorreu ao longo da sua evolução. Um tem bases no rock e o outro é muito mais influenciado pelo jazz. Para mim, nós somos parte dessa evolução pop que se deu a partir do jazz. Essa evolução começa… Bem, para nós, começa nos anos 60. Tens uma data de música interessante dessa altura que não era jazz, mas vinha desse mundo. A música psicadélica, bandas sonoras, a library music, onde tinhas músicos de jazz a tocarem qualquer coisa que não jazz, mas influenciado pelo jazz, e a levá-la para uma outra dimensão. Acho que é essa a música que nos influencia. Portanto, com muitos passos pelo meio, sim, nós somos influenciados pelo jazz. Só não tem de ser obrigatoriamente de forma directa. Por exemplo: nós adoramos a música do Don Cherry, mas se calhar estivemos mais interessados no Organic Music Society do que no percurso dele com o Ornette Coleman. São esses tais passos que nos separam de ser directamente influenciados pelo jazz.

Já leste o livro Organic Music Society?

Já, sim. Tenho-o lá em cima [risos]. É tão lindo. É maravilhoso. Muito inspirador em termos filosóficos, na forma como eles saltaram do circuito comercial. Faz-te questionar sobre como poderias ter feito algumas coisas de maneira diferente.

Sabias que o David Ornette Cherry vai lançar um álbum? Ele soltou um single há umas semanas. Acho que o espírito continua por aí, algures e de alguma forma.

É engraçado porque a nossa colega de casa já andou em digressão com alguns deles. Não sei se não tocou já com o David pela Europa. Mas tocou de certeza com a Naima Karlsson, que é filha da Neneh Cherry, e por sua vez é enteada do Don Cherry.

Engraçado. Tenho só mais uma questão para te colocar. Este vai ser o vosso primeiro espectáculo fora do Reino Unido?

Sim. Nós tocámos ao vivo três vezes no Reino Unido e esta é a nossa primeira vez num avião em muito tempo.

Nós temos lido imenso na imprensa sobre como o Brexit está a tornar muito difícil a vida dos músicos britânicos que vão dar concertos fora do país. Tiveram de lidar com algum tipo de nova papelada ou algo do género?

A combinação entre o COVID-19 e o Brexit é realmente um grande desafio. Tem uma data de regras. Nós não podemos usar o nosso passaporte de vacinação e cenas assim. Uma seca. Não é de todo ideal. O Brexit destroçou-me o coração a uma escala muito grande. Eu já não posso simplesmente ir só a qualquer lado tocar.

E o que é que vem a seguir?

A digressão. Estamos por Inglaterra durante a segunda metade de Outubro e depois, em Novembro, andamos pela Europa. Em Março do próximo ano, se tudo correr bem, vamos aos Estados Unidos.


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