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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Culture Burguer
Publicado a: 11/12/2020

Surpresa!

Valas: “Animália acaba por ser uma crítica ao comportamento humano”

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Culture Burguer
Publicado a: 11/12/2020

Animália está à solta. Depois do Check-In na Universal Music Portugal, o seu primeiro álbum pela editora em 2018, Valas volta aos longos projectos com uma lista assinalável de nomes nos créditos de produção. Boss ACLhast, Haze, SuaveyouknowNzhinga, Alfaccino, Fumaxa e APS integram essa preenchida lista em que ainda existe espaço para as vozes de Alice Martin, D.Beat e Brazza (estes dois últimos seus conterrâneos). 

O artista de Évora fecha agora um capítulo na sua carreira, enquanto outro se abre na sua vida, e o título “paternidade” desvenda as próximas páginas ainda por escrever. Num disco marcado pelo confronto do ser com o pensar, do instinto com a racionalidade, é a liberdade criativa quem leva a melhor, sem Sementes ou Raízes De Pedra a pesar nos bolsos. Hoje, presos. Amanhã, livres. E Animália é banda sonora desse futuro libertador que nos foi prometido. 



Já tive oportunidade de ouvir este teu novo álbum, e a primeira impressão que tive foi a distância que existe, principalmente, para os teus primeiros projectos, em termos de registos e caminhos. 

Acho que o álbum é um passo por ir à aventura de outros estilos, outros métodos de escrever música. Eu disse numa entrevista há uns tempos que, para mim, era um álbum mais arriscado do que qualquer outra coisa que tenha feito, exactamente por isso. Estou a ir para campos que não me eram tão- 

Confortáveis? 

Onde não costumava estar, exacto. Mas fiquei contente com o projecto final, o sítio onde cheguei. Acho que em termos de colectividade das músicas, ficaram bem juntas, com uma linha de montagem que faz sentido, o seguimento de umas para as outras. Vamos ver o que a malta acha.  

Como é que te estás a sentir em relação a este lançamento-surpresa? Ansioso ou tranquilo? 

Estou tranquilo. Acho que o momento que estamos a passar tira-nos um bocado o peso de outras coisas que se calhar noutra altura nos iriam estar a preocupar. Este álbum, ou apresentar este projecto agora, era necessário, porque há algum tempo que não faço nada. É, sem dúvida, um luxo poder estar a lançar um disco nesta altura. Para mim, foi espetacular poder deixar esta fase feita, porque a minha vida tem-se transformado bastante nos últimos tempos: fui pai em Agosto, fora aquilo que estamos a viver todos enquanto humanidade com a pandemia. Houve algumas alterações na minha vida, principalmente essa de ter sido pai. E queria deixar essa fase da minha vida, passando por aquela que é a temática das músicas, aquela luta interior e a necessidade de mudar hábitos; queria deixar isso feito o mais depressa possível.  

É brutal poder lançar isto ainda este ano, poder deixar esse projecto cá fora, que é naturalmente representativo dos meus últimos anos de vida e de música. E a minha intenção era essa, que marcasse em termos cronológicos o final de uma vida e o começo de outra; não sendo tão deep, mas a realidade acaba por ser essa. Acho que a vida mudou para muita gente, e a minha mudou 180 graus. É deixar uma página escrita que faz parte do meu passado, e abrir essa porta para o futuro. 

Sei que estás a desenvolver este álbum há algum tempo. Há quanto tempo estás a gravá-lo e como foi esse processo gradual? 

O álbum, a ideia, a primeira vez que tirei o nome para o disco, quando comecei mais ou menos a fazer um projecto novo, foi há cerca de dois anos e tal. Há músicas no disco que têm esse tempo, e se calhar alguns rascunhos até antecedem a esse tempo.  

No princípio queria ter feito um disco bem maior em termos de tempo, mas também quis começar a fazê-lo dessa forma para ter mais espaço de manobra quando estivesse a selecionar as músicas que eu achava que faziam parte juntas. Então, gravei muita coisa à volta deste disco, muitas maquetes, muitas coisinhas, muitas experimentações, e fui fazendo a selecção das coisas ao longo destes dois anos e tal, uma selecção quase natural das músicas – aquelas que me agradavam mais e que achava que podiam fazer sentido (ou mais sentido) entrar no disco. E foi feito assim. Fui fazendo, tirando, fazendo, tirando; mexendo em algo que já tinha feito; adaptando com a ideia que tinha em geral do disco, em termos de tema e de musicalidade, ao ponto de fazerem sentido todas juntas, porque acho que há altos e baixos no disco, tanto no instrumental como em termos poéticos. Há partes bastante felizes, em que estou quase numa de celebração da vida, e há outras onde estou a dar o tiro no pé, a criticar-me. Então, passou por tentar juntar o máximo possível de músicas, mas que fizessem sentido, e acabou por ficar reduzido a 10 músicas. 

Como foi trabalhar com tantos produtores diferentes para chegar a um álbum com linhas e ideias bem definidas? 

É uma excelente pergunta. Porque foi um dos desafios – que acho que vai ser a última vez que vou fazer um projecto com tanto produtor, sabes? Porque independentemente da confiança que tenhas com os produtores e da possibilidade de trabalhar juntos ou não, foi mais difícil tentar encontrar essa musicalidade e esse fio condutor tendo tantas peças à minha volta. Acho que este álbum me abriu um bocado os olhos nisso.  

Estou feliz por ter feito assim, houve produtores que adorava que tivessem entrado, e trabalhei ainda em maquetes que acabaram por não entrar. Tenho pena disso, de coisas que ao longo da construção do álbum deixaram de fazer sentido entrar, e foi um bocadinho complicado, a certa altura, fazer essa selecção. Acho que o próximo projecto que fizer vai ser um produtor e pronto, para ficar tudo no mesmo sítio… [risos] Não é só a questão de facilitar. Este projecto sendo uma mistura de estilos até, fez sentido essa junção de produtores diferentes, mas acho que vou deixar, para já, esse tipo de trabalhos ou de organização, e não vou voltar da mesma forma, parece-me. 

Acredito que trabalhar com o Boss AC tenha sido um ponto alto nesse processo. Como surgiu essa colaboração e o que retiraste dela além da música em si? 

Sim, sem dúvida. Convém dizer que o AC foi dos rappers que mais me influenciou e que eu mais estudei, e, sem dúvida, em termos pessoais é o ponto alto do meu disco, a possibilidade de ter trabalhado com ele. Eu convidei-o porque gostaria de fazer algo com ele, e é complicado quando entramos pela primeira vez num estúdio e que estamos a conhecer a pessoa com que vamos trabalhar logo nessa sessão. 

Ainda por cima um ídolo… 

É mais complicado do que parece. Às vezes é precisa uma certa intimidade para as coisas fluírem. Com o Boss, felizmente, correu tudo muito bem; foi muito fácil a relação. Conhecemo-nos, trocámos ideias, chegámos a consensos rapidamente. Não havia logo a ideia de ele ter que entrar no disco a rimar ou apenas como produtor, mas foi um caminho que organicamente foi surgindo – a produção dele num tema, e quem sabe amanhã não se faz outra coisa diferente. Gostámos muito da ideia, quase uma junção de um produtor, para mim, vou-lhe chamar “clássico” – mas não quero dizer clássico, porque ele é bem mais que um produtor limitado a um género; é uma pessoa com muita capacidade em estúdio, tanto de instrumental como de rima, com muita história, muita experiência –, mas eu quis, e acho que foi engraçado, pegar num Boss AC e fazer um dos temas, para mim, mais modernos do disco. Foi, sem dúvida, um caminho interessante que acabou por surgir organicamente, e é a primeira faixa do Animália



Queres falar um pouco sobre o conceito Animália? O que representa? 

Animália acaba por ser uma crítica ao comportamento humano, inspirada na minha vida, na minha experiência. É a irracionalidade das nossas atitudes, ou neste caso das minhas, e tentar aceitar isso como as coisas são. Há coisas que não conseguimos alterar na nossa personalidade, apenas podemos tentar melhorar, mas há coisas bem difíceis de alterar na nossa personalidade e no nosso ser. E passa um bocadinho por isso, por essa guerra interna, digamos assim, mas depois também tem o outro lado – há os dois lados da moeda – que é o da celebração e da liberdade. Há espaço para as duas coisas. O álbum passa por isso. 

Olhando para trás, desde a tua entrada para a Universal, tens vindo a explorar uma linha mais cantada, digamos, e neste álbum sente-se uma liberdade criativa assinalável e que te permitiste a navegar por registos menos óbvios ou expectáveis. Esta entrega mais profunda tornou a feitura do disco mais fácil ou difícil? 

Sem dúvida. Mas acho que há uma cena muito interessante que é, para muita gente, ou pelo menos para as pessoas que seguem a minha música a partir de certa altura, acham que é através da Universal que eu entro nesse campo mais cantado, ou a tentar fazer algo mais do que rimar, rap tradicional. E a verdade é que isso começou antes da Universal. Começou em Nébula, que para mim foi o projecto mais fora da caixa e do rap que fiz, ou seja, quem me acompanharia na minha carreira acho que já devia estar à espera que eu a partir daquela altura já entrasse numa mistura de estilos até. Portanto, a Universal vem nessa altura, é verdade, e eu depois também faço umas coisas a entrar nesse campo, mas não é, de todo, uma ideia de major, percebes? Foi orgânico da minha parte, estar em estúdio… as coisas vão saindo como estamos a sentir, e eu acabei por entrar nesse campo mais a partir de certa altura da minha vida. 

Neste caso, e é um bom pormenor teres dito isso, vê-se que estou a tentar, pelo menos, encontrar mais de mim, em mais estilos, mais coisinhas. Este álbum mostra um bocadinho disso, também acho que sim. Fico feliz que tenhas reparado nisso porque foi, sem dúvida, uma intenção minha. 

Para responder à tua pergunta, eu acho que quanto mais orgânico é feito, seja um álbum, uma música, ou o que for, mais fácil se torna, porque estás a fazer as coisas sem o overthinking tradicional; estás a fazer o que estás a sentir. Claro que vais estar sempre a ouvir opiniões, seja do produtor, da tua namorada, ou de quem quer que seja a pessoa que encontras ali numa discussão sobre as tuas músicas. E, neste caso, acho que passou por aí, sim. 

Acredito que a faixa “Papá” seja talvez a mais especial para ti. Um acontecimento tão marcante na tua vida teve certamente impacto mesmo no disco. Sentes que mudou alguma coisa a nível criativo depois disso? 

Não, não. Neste disco não acho que haja sequer o clichê de ser pai, porque até esse tema é para a Mariana, a minha namorada, e não para a minha filha. É uma conversa com ela, e o refrão é uma conversa dela comigo. E foi antes de termos sido pais. Eu não quis ir ao clichê óbvio de estarem à espera de eu fazer uma música para a minha filha, ou algo do género. Aliás, eu até tentei ser rápido a fechar o disco este ano, nestes últimos meses, por não querer que me afectasse nem a situação de ser pai, nem a pandemia, ou seja, não vou entrar nessa temática. Esse tema fala sobre vir a ser pai, não sobre ser pai, mas acaba por ser uma conversa romântica entre duas pessoas e não mais do que isso.  

A participação do Fumaxa foi uma das que me surpreendeu. Como surgiu e quem definiu a base do tema? Já tinhas uma ideia e querias um instrumental de uma certa forma, ou foi o Fumaxa que apresentou um beat que te conquistou? 

Já tínhamos o tema feito há algum tempo; é das músicas mais antigas do disco, acho eu. Foi logo das primeiras a ser feita. E há relativamente pouco tempo, nas últimas alterações que o disco levou a nível de instrumental, o Fumaxa deu-lhe um update que na cabeça dele seria mais necessário do que na minha – eu gostava muito da original. Dei-lhe o poder de fazer algo diferente, que poderia agradar-me também, e ele acaba por fazer um tema que ainda gostei mais do que o que seria o nosso original. Portanto, ele no final dá ali um brilho novo à música, e dá um toque no instrumental que não existia, mas que me agradou bastante e que colocou a música noutro sítio. 

A última faixa do disco, “Até 1 Dia (poema)”, tem uma letra difícil de decifrar, apesar de ser o tema em que pareces estar mais a nu. Queres desvendar um pouco o que está por baixo deste poema, ou já o fizeste para ser entendido apenas por quem tem de o entender? 

Eu chamei-lhe poema porque não foi a minha intenção fazer uma música dali. Queria fazer algo que mexesse um bocadinho com os ouvidos de quem gosta de poesia, e desse género mais raw, que é o que eu acho que passa nesse tema, com aquele instrumental mais minimal. E a minha intenção era dizer “até um dia” como se a minha luta continuasse, mas que eventualmente vou voltar a mim e a tomar controlo das coisas. É aquela melancolia que eu penso que quem me conhece, ou quem conhece a minha música, já me viu a falar sobre ela. Passa também por essa luta interior, da mudança, de assumir as merdas que somos e que fazemos, e tentar melhorar e recuperar a nossa integridade, aquilo que consideramos ser a parte forte da nossa personalidade. É a luta interior, o desejar e lutar para que as coisas mudem. E o “Até 1 Dia” acaba por ser o tema que é um “hei-de voltar a mim no final desta fase”. É um bocado por aí. Não sei se continua abstracto para ti, porque acaba também por ser um bocadinho abstracta essa música, ou essa temática, mas acho que esclareci alguma coisa… 

Sim, e compreendo que não seja possível explicar de uma forma mais concreta, até porque são coisas que se pensam e se sentem… 

Sim, exacto, exacto! Não é que sejam assim tão complexas, mas são nossas, e às vezes é difícil adjectivá-las de uma forma clara e simples. 

E, por fim, calculo que mesmo com uma label de peso por trás as coisas não estejam fáceis em termos de concertos. Quais são as tuas perspectivas para este trabalho, além do consumo pelas plataformas digitais habituais? 

Eu acho que estou no mesmo sítio que estão todos os meus companheiros da música e da cultura. Estamos à espera. É uma altura que não dá para fazer grandes planos. As coisas podem estar a mudar em Março como em Setembro do próximo ano, portanto não sabemos. Agora, é certo que eu tinha de deixar este disco feito nesta altura, independentemente do que possa fazer à pala dele no futuro, passando por concertos, etc. Não pensei muito nisso, e acredito que a minha editora também não pensou muito nisso, no sentido de estarmos todos no mesmo barco, e sabermos que amanhã não vamos ter concertos. Se calhar, depois de amanhã vamos. Portanto, é esperar pelo melhor.


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