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Fotografia: Fernando Marques
Publicado a: 12/07/2021

Por esta ria acima.

Um dia na estrada com Pedro Mafama

Fotografia: Fernando Marques
Publicado a: 12/07/2021

“Que estilo é que é?” A pergunta vinha de alguém que se aproximava da escadaria do Atlas Aveiro e que queria perceber quem seria o protagonista daquele aparato todo — isto depois do nome Pedro Mafama não chegar para se concluir por ali a conversa. A questão foi mais complicada de se responder do que possa parecer à primeira vista. Para quem mergulha todos os dias naquilo que se vai fazendo nos círculos mais populares mas também nos menos comerciais, há alguns códigos que se detectam e que ajudam a localizar a sua música, mas não é fácil explicá-lo a quem não está habituado a lidar com estas linguagens, ainda para mais quando lidamos com alguém que quer explicações rápidas. Um “pode ser estranho à primeira mas vale a pena se deres uma oportunidade” foi a solução mais prática. Adiante. 

Ainda mal tínhamos sentido os ares de Aveiro e esta primeira interacção funcionava como uma forma de percebermos o interesse dos locais na primeira apresentação de Por Este Rio Abaixo, álbum de estreia de Pedro Simões, uma amálgama dos sons de uma Lisboa orgulhosamente multicultural — pelo menos na visão do seu criador. Sem ter explodido para o grande público, mas a construir uma sólida base de fãs desde o lançamento do seu EP Má Fama, em 2017, Mafama encontra-se neste momento num animador processo de se dar a conhecer aos mais resistentes àquilo que não é comum: este primeiro disco mereceu atenção em quase todos os meios de comunicação, o trabalho com Ana Moura e a nomeação para Artista Revelação na última edição dos PLAY – Prémios da Música Portuguesa estão, definitivamente, a prepará-lo para um novo patamar de mediatismo. 

No seu mais ambicioso projecto até aqui, a exigência aumentou e as expectativas em relação a si também, porém, isso não aparenta ser um problema para o próprio: desde o encontro matinal frente aos escritórios da Arruada na manhã de 1 de Julho até à despedida na Rua Conselheiro Emídio Navarro na tarde de 2 de Julho, o músico emanou uma tranquilidade e serenidade de quem sabe onde está e para onde quer ir, não deixando passar qualquer insegurança sua para fora — e aqui é importante mencionar o trabalho normalmente invisível, mas que é particularmente importante para isto, de Rita Queiroz (produção) e Pedro Gerardo (técnico de som), duas pessoas que, para além de serem bastante profissionais no que fazem, ainda ajudam a criar um ambiente bem-humorado. Estes pormenores nestas coisas importam — e muito.

Na viagem pré-concerto, a conversa passou por afinações de última hora com Progressivu, que substitui Kami nesta nova fase em que Mafama surge aliado à major Sony Music Portugal e à agência Arruada, duas forças que, juntas, já conseguiram, por exemplo, dar a base para que Dino D’Santiago se tornasse um dos grandes símbolos de uma geração que está a arrombar a porta do edifício pop com os argumentos certos. Nessa troca de ideias com Mário Costa, houve ainda espaço para falar do bom trabalho de David Bruno e Mike El Nite (ambos fizeram parte da audiência do concerto junto à ria) para trazer alguns jeitos da música ligeira/pimba para um imaginário mais moderno e menos associado a algo sem validade artística. Palavras Cruzadas e Por Este Rio Abaixo entrarão, muito provavelmente, em muitas das listas de melhores de 2021, mas, mesmo que isso não acontecesse, não seria improvável que daqui a uns anos fossem recordados como dois importantes pontos de viragem para um certo som associado a um Portugal que todos vivemos mas que poucos assumem como parte válida e interessante daquilo que somos. 

Na carrinha para Aveiro seguiam ainda Gadé, a terceira “peça” do novo formato em palco, um baterista que se fez sentir através de um minimalista (mas suficiente) kit electrónico, e Fernando Marques, o fotógrafo que, ao lado do realizador André Caniços, ficou responsável por muito do imaginário visual deste longa-duração de estreia de Mafama. Enquanto os músicos afinavam as máquinas no soundcheck, o último desvendava-nos que Artur Pastor, um dos grandes nomes da fotografia portuguesa do século XX, tinha sido importante para esse complemento da música — e é evidente a preocupação de Mafama em ligar da melhor forma a parte visual com o som e em encontrar referências (Michel Giacometti é uma delas) que capturaram Portugal através de uma lente muito própria.

Parte das Novas Quintas, sessões pensadas e programadas pelo Teatro Aveirense, a passagem de Mafama por ali é resultado de uma contínua aposta daquele pólo cultural da cidade naquilo que nem sempre é óbvio. José Pina, o director do TA, fala desta programação como um colmatar de “uma lacuna naquilo que era a oferta sistemática e coerente da nova vaga de músicos” de tendências mais urbanas, afirmando que existe um público “que consome este tipo de projectos” que esgota grande parte das vezes as salas, “mesmo nos projectos mais alternativos, mais difíceis e de risco”. 

Sobre a escolha em concreto deste poeta dos desfados, Pina afirma: “Quando pensámos na programação, nós não nos focámos só naquilo que é mais popular. A nossa aposta foi sempre nos novos valores e não se focar na questão de gosto. O Pedro Mafama foi daqueles que, numa primeira abordagem, poderia não ser muito evidente, mas à medida que fomos pensando e fazendo o nosso trabalho de avaliação começámos a perceber que tem um perfil, um toque e um cruzamento no trabalho dele que é distintivo. Por um lado, não é muito usual e o Teatro Aveirense não tem medo de arriscar. E nessa procura do risco e de possibilitar a descoberta, ele traz, de facto, esse lado mais novo, fresco e com qualidade.”

Depois de um dia em que aproveitou para dar entrevistas mas também para fazer algumas sessões fotográficas, o “pirata do mar” entrou em acção já de noite, pouco depois das 22 horas. À sua frente, um auditório onde se via uma clara divisão entre pessoas que aproveitaram um evento de entrada gratuita para ir à descoberta e um outro grupo de pessoas que vibrava (e conhecia) tudo o que saía disparado do sistema de som. 

Quando falamos numa nova fase na carreira de Mafama, não dizemos isto de uma maneira leviana e é em palco que se sente com maior ênfase isso. O trabalho de luzes (a cargo de Fred Rompante e Diogo Mendes) e o formato trio dão uma carga mais séria (em contraste com a forma descontraída — mas charmosa, diga-se — com que se apresentava com a Kamila) e exponenciam a teatralidade que existe nos seus trejeitos e o dramatismo que a sua utilização do auto-tune carrega. Nunca o tínhamos visto explorar de maneira tão corajosa os limites do palco — com direito a plataforma que deu, por exemplo, para se deitar a certo momento — e a ferramenta que transporta a sua voz para um outro plano. 

Com espaço para as habituais falhas de primeira noite — Progressivu não conseguiu ser o hype man que era suposto por culpa de um problema com o seu microfone –, o espectáculo foi cativando uns e afastando outros, dividindo-se entre músicas de Por Este Rio Abaixo (“Barca”, “Leva”, “Estaleiro”, “Cidade Branca”, “Algo Para a Dor”, “Mar Morto”, “Borboletas da Noite” e “Contra a Maré”) e temas como “Jazigo”, “Não Saio”, “Terra Treme” (a sua participação no álbum Da Linha) e “Lacrau”, num alinhamento que não apresenta grandes discrepâncias entre faixas — há momentos para tudo, desde a acalmia até à explosão, é uma viagem como o álbum. De todas as canções, a segunda do novo disco entra directamente para a lista de favoritos, tanto pela interpretação como pela reacção das pessoas presentes.

Não voltámos a encontrar o transeunte que nos interpelou na nossa chegada a Aveiro, mas esperemos que tenha dado uma oportunidade: para muitos, a máxima no primeiro encontro com Mafama é mesmo “primeira estranha-se, depois entranha-se” — que o diga uma rapariga que, um bom tempo depois do concerto ter terminado, saltou de um carro para vir tirar uma fotografia com ele. Por aqui, há muito que nos deslumbrámos com esta nova canção de Lisboa que encontrou um boémio à altura de cantar as encruzilhadas que se encontram por essas ruas. E se antes soava a puro delírio bairrista, agora encontramo-lo mais maduro a pensar a tradição com um ângulo único que tem tanto de fado como de trap com floreados magrebinos. 

“É uma pessoa com uma coragem enorme de ser ele mesmo, que quer fazer as coisas para elas chegarem às pessoas, quer fazer as coisas tocarem nas massas e, mesmo assim, fazer de forma diferente. E isso é uma coisa que eu respeito muito porque sei que é muito difícil de fazer: tu tocares numa grande quantidade de gente e, mesmo assim, conseguires dar uma proposta diferente”, dizia-nos sobre ProfJam em Maio passado. Sem sabê-lo, Pedro Mafama também se está a descrever a si mesmo. Em Aveiro vimos que existe uma maturidade recém-adquirida que é bastante promissora — resta-nos ver para onde irá depois de “esticar os limites do corpo” e “mergulhar nas águas do Mar Morto”.


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