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Fotografia: Mariana Pires
Publicado a: 27/01/2021

Um colectivo que é mais importante do que nunca para um ecossistema musical português saudável.

Troublemaker Records e a urgência de resistir à normatividade

Fotografia: Mariana Pires
Publicado a: 27/01/2021

O fim de 2020 marcou o término de um ciclo e a aparição de uma réstia de esperança para todos nós. Não só foi um respirar de alívio após um ano marcado por desastres de todas as naturezas possíveis, como marcou também o fim de uma década na qual o progresso e o desenvolvimento das causas sociais deram grandes passos e permitiram a abertura de várias portas que antes pareciam não existir. Em Portugal, Lisboa viu nascer vários colectivos e comunidades que servem de apoio para uma expressão mais livre e aberta da identidade de cada um, sentindo-se cada vez menos o peso da normatividade em cima dos nossos ombros. Sentiu-se também um maior reconhecimento da luta contra a segregação institucionalizada de minorias raciais, que culminou com a maior manifestação anti-racista alguma vez feita neste país, reunindo mais de seis mil pessoas em Junho do ano passado em Lisboa.

A par deste boom de consciencialização política, vimos também o aparecimento de inúmeros colectivos artísticos independentes que se fizeram à vida e reacenderam uma nova chama na produção e consumo de arte nacional. Desde rock, à música de dança, do ambient à música experimental, a capital portuguesa parece ter em cada esquina um novo movimento que alimenta o seu nicho com cultura de uma forma que grandes editoras e corporações nunca conseguiram fazer, e criam plataformas para as mais variadas formas de expressão terem o seu palco, fornecendo o boost necessário para qualquer jovem aspirante a artista criar uma conta no SoundCloud e meter mãos à obra.

E foi entre essas duas facetas distintas do conceito de “emancipação” que nasceu a Troublemaker Records, um colectivo POC (people of colour), queer e independente sediado em Lisboa que tão bem define esse motto. Fundada oficialmente em 2018 — apesar do embrião da ideia existir desde 2016 — por PHOEBE, no seu quarto, ao qual se juntaram depois nëss, Killian e Herlander, o projecto começou enquanto uma editora em que poderiam divulgar a sua música, mas, com o passar do tempo, os seus membros foram-se apercebendo que poderiam fazer algo mais, não só por eles, como também pela sua comunidade.

Passemos às apresentações rápidas do trio que compõe o núcleo principal: Bruno Trigo Gonçalves, que assina como PHOEBE, é um músico leiriense que tem crescido não só enquanto produtor como também atrás dos decks, tendo já pisado palcos como a Musa, Musicbox, Arroz Estúdios e Village Underground e participado em eventos como o festival ano0 e o Boiler Room (juntamente com nëss). Lançou, em 2019, o álbum AFFECTION, contando depois com vários remixes e singles soltos, e contribuiu ainda para as compilações Labanta Braço, do Rimas e Batidas e Raptilário, e 001 RESISTANCE, da editora; Herlander Madureira nasceu na Arrentela e, após ter passado um período no Reino Unido, onde lançou 199, o EP que o deu a conhecer ao mundo, juntou-se à Troublemaker, com quem deu os primeiros passos nas performances ao vivo em Lisboa. Tornou-se recentemente um membro da promotora lisboeta Maternidade, e tem chegado aos ouvidos de cada vez mais pessoas através de singles como “quem diriaiaia”, “If You Give It To Me What’s Luv Got To Do With It?” e “don’t get their name out your mouth”; nëss cresceu na linha de Sintra e, após o lançamento de MESS, em 2019, produzido por PHOEBE, tem explorado o universo cantautor em sonoridades mais ligadas ao folk, tendo lançado recentemente o single “don’t ask, it’s rude”.

Enquanto colectivo, lançaram em Junho do ano passado, no segundo aniversário da editora, 001 RESISTANCE, constituída somente por artistas POC, uma compilação que consideram urgente por ser “a primeira compilação POC com pessoas queer envolvidas, num momento muito urgente, entre o que aconteceu a Floyd e a Bruno Candé”. Um projecto de sonho que já era ambicionado há muito mas só agora reuniu as condições para se realizar e que marca apenas o início de um leque de iniciativas , numa tentativa de criar uma plataforma que dinamize e amplifique projectos queer e POC.

Para entrarmos dentro das mentes de um dos colectivos emergentes mais urgentes em Portugal, o Rimas e Batidas reuniu-se com PHOEBE, nëss, e Herlander, que falaram sobre as suas experiências, sobre política e sobre as diferentes partes que constituem as suas vidas, explicando-nos a intersecção (e a realidade) de um artista queer e POC num contexto nacional. 



[Um espaço seguro]

Nós só contamos [a existência da Troublemaker] a partir de 2018. Foi a partir dessa altura que começámos a ter uma ideia mais certa do que nós queríamos fazer, e da importância que se calhar o nosso projecto tinha. Começou um bocado numa tentativa de criar um safe space para artistas que são queer e que são POC.” – PHOEBE 

“Foi uma cena natural, né? Nunca começou com esse intuito. O Bruno criou-a, e depois surgiu o Killian, que é queer e black, e depois surgi eu, que sou black e queer também, e o Bruno também é, e o Herlander depois também apareceu, e acho que foi uma coisa que depois se apercebeu, do tipo ‘ok, isto faz sentido, não é à toa que nos estamos a juntar todes’. Eu lembro-me que houve uma altura em que tivemos uma conversa do género, ‘let’s just only accept.. no straights’.” – nëss

“Sim, no straights, nunca. A partir de 2018 começámos a perceber que queríamos criar um ambiente seguro para nós mesmos. Eu não sei se me sentia tão confortável, ou a nëss, ou o Herlander, de criarmos ao lado de pessoas que não tinham o mesmo pensamento que nós, ou que não percebiam algumas das nossas brincadeiras.” – PHOEBE

Porque nós estávamos sempre juntos, a nossa cena sempre foi estarmos na mesma casa, a casa do Bruno, e nós tínhamos todos os ensaios lá e queríamos que as pessoas que entrassem na label estivessem à vontade e percebessem todas as piadas e aquilo que íamos falar.” – nëss

“À partida ia ser bué diferente se tivéssemos white straight people na label, ia ser uma disforia grande… do nosso mundo para o mundo deles, percebes? Acho que foi esse o ponto de partida, tentar criar mesmo aquele ambiente, algo mais familiar.” – PHOEBE

Esta necessidade de criarem um espaço confortável, e no qual se sentiam aceites por serem quem são, denunciava a ausência de uma comunidade que apoiasse artistas que fossem queer e POC. A Trouble nasce dessa falta de inclusividade e representatividade, não só como uma necessidade destes artistas criarem a sua própria zona de conforto, como também para futuras gerações poderem finalmente sentir que há pessoas como elas. 

“Foi um bocado tentar ser esse ponto para esses artistas, que como nós, começarem a olhar e a perceber, ‘okay, há espaço para nós, há espaço para nós podermos criar, há colectivos que nos vão apoiar, há pessoas que são like minded a nós’, e acho que isso também foi muito importante, criar algo que as pessoas pudessem olhar e pensar que se nós conseguimos, eles conseguem também.” – PHOEBE

A Rádio Quântica abriu portas ao colectivo para poderem dar também eles vozes a outros. Com o aparecimento do TBMKR SHOW, programa mensal na rádio online, artistas POC são chamados para serem entrevistados e falarem dos seus trabalhos, aumentando assim a divulgação desses artistas e criando pontes entre eles. 

“Reconhecemos que somos uma label POC mas somos light skinned, e uma coisa que vemos pouco aqui em Portugal é queer artists de pele mais escura. São sempre um nicho, porque normalmente associas black people a hip hop e trap, e estamos a tentar utilizar os recursos que temos para poder trazer essas pessoas à tona. As pessoas existem, existem muitos artistas queer e POC, mas começámos a reparar que estão todos afastados. À medida que nos começámos a dar com Naára [Kahumbi] e com a Chima Hiro, percebemos que há muita gente como nós aqui em Portugal que estão a tentar fazer coisas, mas que não tem tanto focos neles como em artistas brancos. E já estamos a chegar à conclusão que com este show da Quântica queremos tentar abranger pessoas de pele mais escura que nós, queremos que seja algo mais relevante.” – nëss

No último par de anos, mais e mais artistas têm vindo ao encontro da editora, que os recebe de braços abertos e constrói uma família que vai para além da arte. A importância de colectivos como a Troublemaker não se fica pelo meio artístico, mas também pelas ligações que cria entre pessoas que partilham as mesma lutas e dificuldades, os mesmos interesses, e as mesmas ambições, e que, na maioria das vezes, não encontram alguém com quem se identificassem assim até esse momento. Para além de potencializar a arte de cada uma das pessoas, cria também um lugar confortável para poderem ser quem são, livres de olhares preconceituosos.

“Nós somos todos de sítios diferentes. Quando começámos a ser melhores amigos, eu percebi que, tendo nascido na linha de Sintra, nunca tinha encontrado pessoas queer como eu e com quem eu sentisse que pudesse ser eu própria.” – nëss

Mas isto vai até cenas básicas, como por exemplo a música que ouvimos. Eu e a nëss, quando nos conhecemos, começámos a perceber que tínhamos bué coisas que ouvíamos em comum, e do nada percebemos que ouvíamos literalmente a mesma música.” – PHOEBE

E tínhamos experiências de vida bué parecidas também.” – nëss

Isso torna muito mais fácil criar música com alguém, ou uma relação de amizade, porque tens os gostos em comum. Durante anos, sinto que estive à procura ‘sem querer’ de amigos que fossem mesmo amigos, e que partilhássemos os mesmos gostos e houvesse oportunidade para poder mostrar coisas e as pessoas estarem interessadas no que estás a mostrar. Eu nunca tive isso, e nunca foi possível mostrar muitas das minhas experiências. Os meus amigos de Leiria não sabem nada da minha vida nem do que se passa na minha casa com a minha família porque nunca tive vontade de lhes falar disso, porque sei que a maioria deles são — não é racistas — mas que me julgariam.” – PHOEBE

“Racistas [risos].” – nëss

Pessoas discriminatórias, não queria chegar à palavra R. Mas não podia explicar certas coisas que se passavam em minha casa porque sei que se calhar para eles iam achar algo do tipo ‘black people are all the same, ghetto’, nunca me senti à vontade para ser eu próprio, então quando conheci a nëss, o Killian, e o Herlander, saiu-me um peso enorme de cima por agora conhecer pessoas que vão perceber o que estou a dizer e partilhar as mesmas experiências que eu.” – PHOEBE

“Eu não conhecia até este ano tanta gente que fosse queer e black, por isso acho que só agora é que está a haver uma ‘reunião’ de todos. Tal como dissemos, toda a gente estava separada, ninguém sabia da existência de ninguém. Às vezes quando vou estar com amigos que conheci no ano passado pergunto-me só: onde estiveram todos? Eu não sabia da existência deles! Eu acho que isso também está a acontecer pelo facto de nós termos criado isto.”- Herlander

Ya, acho que foi um bocado isso, e as pessoas começaram a seguir-nos no Instagram e a falar connosco, a comentar a histórias. Acho que advém disso, a Internet é mesmo importante.” – nëss

E também porque Lisboa também se tornou uma cidade bué… não é queer friendly, mas, devido a tantos colectivos queer e tanta cena queer como a mina e coisas desse género, começou a haver uma maior enchente de pessoas queer e uma sensação de liberdade.” – PHOEBE

Mas ainda não chega.” – nëss

Não, claro que não! Isto é algo que está em constante crescimento, toda a gente está a crescer e as pessoas vão aparecer eventualmente, mas sinto que estamos no início da corrida, e as coisas vão crescer aos poucos como aconteceu este ano. À medida que os anos vão passando, a comunidade vai-se tornando maior e maior, há cinco anos não tinhas quase ninguém abertamente queer até se calhar começarem as festas da Rabbit Hole e assim. O mundo queer começou a abrir e mais gente começou a perceber que isto existe. Acredito que muitas pessoas em Portugal, quando viram o Boiler Room da mina, perceberam que há mais gente queer que está interessada nas mesmas coisas que elas, e acho que isso impulsionou um bocado o boom da comunidade queer aqui. E nós estamos a tentar fazer uma comunidade para artistas POC e, à medida que o tempo vai passando, vamo-nos expondo mais, mais pessoas vão olhar para nós e perceber que isto existe, e vão querer fazer coisas.” – PHOEBE

Houve definitivamente um boom da comunidade queer, e há definitivamente um espaço mais acentuado para pessoas brancas LGBT. Agora está na altura das pessoas POC LGBT acentuarem o seu.” – Herlander

Sim, porque tanto temos de batalhar a queerness entre pessoas brancas e negras, como também temos de batalhar o racismo de pessoas brancas na comunidade queer, que há muito.” – nëss



[Racismo queer e homofobia negra]

A comunidade queer conquistou na última década um maior território em Lisboa, muito graças ao mundo artístico e cultural, que criou espaço para as pessoas se sentirem livres. Festas como a mina, Rabbit Hole, Thug Unicorn e Kit Ket nasceram, cresceram, e conquistaram as raves não só em Portugal como na Europa, criando-se safe spaces para se libertarem. Mas nem toda a gente se sente segura nesses espaços ainda: corpos negros continuam a sentir, até mesmo neste lugares, racismo e preconceito vindo de pessoas que esperavam serem suas aliadas, mas que aos invés disso as usam como um token

“Quando começámos a aparecer nas festas underground de Lisboa, as pessoas ficavam-se a questionar quem éramos, e não era só por sermos pessoas novas, era de forma julgadora, porque nós sabemos quando é um olhar racista.” – nëss

Este aumento na adesão das manifestações e causas sociais, à primeira vista, deu a conhecer a mais pessoas a discriminação de comunidades segregadas, mas os temas acabam por ficar a boiar numa estranha camada de superficialidade, onde se vai navegando de causa em causa como quem scrolla no seu feed de Instagram sem nunca nenhum dos temas ser aprofundado, como se de uma mera trend passageira se tratasse, acabando por ignorar que as lutas vão continuar a ser vividas na pele das pessoas mesmo quando o assunto se apaga da internet.

“Há um problema com as pessoas da comunidade queer branca, que é fazerem as coisas pelo clout. ‘Okay, deixa-me cá pôr o meu quadradinho preto na história e no perfil’.” – PHOEBE

“A manifestação do Bruno Candé não tinha quase ninguém! Uma pessoa negra morreu aqui em Portugal! Na do George Floyd foram seis mil pessoas. Foi a maior de sempre.” – nëss

“É o mesmo problema de sempre, pessoas brancas não querem ouvir vozes negras. Quando viram tantas pessoas brancas e americanas, que são quem eles querem aspirar ser culturalmente, eles sentiram que estava na hora de fazer alguma coisa. Quando é algo como o Bruno Candé, em Portugal, em que não vêem americanos nem tantas pessoas brancas a falar sobre isso, não importa. É sensacionalismo. Ser queer não te torna anti-racista, nem te torna mais informado.” – Herlander

Mas devia, porque são lutas, devias perceber as lutas das outras pessoas porque tu também tens as tuas. Pessoas queer racistas fazem-me imensa confusão, da mesma forma que me faz ver pessoas negras homofóbicas. Fico mesmo fodido. São lutas! É hipócrita. Andam juntos a maioria das vezes. Portanto, um miúdo queer ser racista é burrice! São pessoas que se calhar nem merecem que percas o teu tempo a explicar-lhes, porque, caralho, tu também tens dificuldades. É preciso andar a fazer piadas sobre pessoas negras? Epá, cresçam.” – PHOEBE

“Se gritas ‘direitos LGBT’, também tens de gritar por todas as lutas que envolvem minorias.” – Herlander

“E nem sequer estamos a abordar vidas negras trans, porque se há pessoas que são as mais oprimidas são essas. Mulheres negras trans, especialmente, morrem todos os dias.” – nëss

É o fundo do barril.” – PHOEBE

É o fundo do fundo do fundo.” – Herlander

“Acho que a conclusão disto tudo é que há tantos problemas dentro destas duas comunidades que a nossa existência é uma urgência, a meu ver.” – PHOEBE

Segundo a Troublemaker, o silêncio já não é opção, e a época do “comer e calar” acabou. Querem impor-se sem medo de confrontos e ganhar espaço na esfera pública para discutirem os problemas estruturais que afectam diariamente as vidas de uma grande parte da comunidade portuguesa. 

“Vamos ter de ser abertos em relação a isso e falar sobre o assunto, resolver os problemas que gerações passadas criaram. Ou, pelo menos, tentar fazer um ambiente melhor para miúdes negres queer o conseguirem.” – PHOEBE

E é também por causa disso que cada vez mais pessoas se têm aproximado do colectivo, onde sentem que alguém luta pelos seus direitos e lhes dá uma voz. Mas como é ser alguém POC e queer em território português? Como é que as lutas que cada um destes grupos exige se entrelaçam dentro de uma pessoa, e qual é a relação que ela tem com eles na forma como se vê e como se exprime? Apesar de serem inerentes à sua identidade, a forma como são percepcionados acaba por ser diferente e, com isso, a conexão com cada parte de si também sofre efeitos.

“Eu, pessoalmente, sempre me vi como uma pessoa negra antes de me ver enquanto uma pessoa queer. Sempre. Os obstáculos são muito diferentes, e nunca podes comparar a discriminação de como as pessoas olham para ti enquanto um negro e como olham para ti enquanto uma pessoa queer. Não há tanta discirminação no trabalho, por exemplo, e há muito privilégio também envolvido, tanto que vês muitas pessoas LGBT em Portugal a serem completamente ignorantes e racistas.” – Herlander

Mas isso é a cultura gay. A partir do momento em que és uma pessoa queer e começas a ser mais ‘gender bender’, as coisas começam a transformar-se.”- PHOEBE

Não só as pessoas brancas como também as negras. Isso é uma coisa que, enquanto black e queer, há um problema muito grande na comunidade negra de não aceitarem…” – nëss

Oh, you went there.” – PHOEBE

Mas temos de ir aí, porque é um facto. Há um problema na comunidade negra de muita homofobia. Aliás, estávamos a falar disso a caminho daqui, que a homofobia não existia em África, foi algo que veio com o colonialismo, quando os portugueses foram para lá e apresentaram a religião católica, e isso vem daí. Na cultura africana, havia pessoas que não se identificavam com género, eram gender fluid, eram uma comunidade em que toda a gente amava toda a gente, e com o colonialismo e o homem branco ir lá e apresentar — apresentar não — impor e obrigar as pessoas a seguirem a religião católica, porque essa religião tem uma fonte de homofobia e queerfobia, heteronormativa, esses ideiais ficaram super enraizados na comunidade africana.” – nëss

A cena católica está bué enraizada em minorias porque, quando tens pobreza extrema, uma das poucas coisas para as quais podes olhar e ver esperança é Deus, entendes? A religião é uma coisa que está muito lá.” – PHOEBE

E o povo africano é muito espiritual, e quando a religião do homem branco lhes foi apresentada, houve alguma confusão, porque as pessoas começaram a adorar algo que não sabiam se era certo ou errado. Não eram os deuses deles, mas era a necessidade de acreditar em algo maior.” – Herlander

Há muitas coisas que ficaram esquecidas em termos de espiritualidade e assim, porque essas coisas não existiam na comunidade africana antes do colonialismo. E, para nós, já é um struggle ser black, então ser queer também… a discriminação queer vem de ambos os lados, de pessoas brancas e negras, porque existe uma homofobia internalizada mesmo grande na comunidade black e isso é um problema. Eu tenho quase a certeza que num bairro devem haver tantos miúdos queer que têm medo e vergonha de serem quem são, e que não vão expor isso porque é tudo o que sabem e vivem. Não saem dali, e não têm chances de ver mais, porque quando estás na cidade ainda consegues ver mais a comunidade queer. Então, ser uma pessoa black e trans é tão pior, há tantas pessoas assim a morrer todos os dias. O Brasil, por exemplo, é o país onde se consome mais pornografia trans e é onde mais pessoas trans morrem.” – nëss

“[Ser queer e POC] são double fights. Daí a importância de grupos como o nosso terem que existir. É uma resistência à normatividade que sofremos, tanto da comunidade branca como da negra. São duas lutas que estamos a tentar travar.” – PHOEBE

A nossa geração tem de apoiar as mais novas porque nós não tivemos isso, só tínhamos boomers a queixarem-se dos millenials e não sei quê. A geração dos nossos pais não aprendeu muito, infelizmente. Falando por exemplo do meu pai, que é um homem africano, há certos assuntos sobre racismo que eu não consigo falar com ele porque ele não percebe. É como o Herlander disse, eles, como vieram para Portugal, estão agradecidos porque Portugal ofereceu-lhes bué cenas, e é assim que eles vêem a situação. Existe racismo, sim, mas…” – nëss

Mas eles ajudaram-nos tanto e abriram-nos as portas. Claro, eles foderam o teu país, claro que tinham de abrir as portas. Isto é culpa deles.” – PHOEBE

É por isso que a Internet é tão útil, porque podíamos também ter seguido o caminho deles e não estar a par destas coisas se não tivéssemos a Internet para nos informar. É um trigger. Na geração dos nossos pais, eles não sabiam quando uma pessoa negra morria na rua, ninguém sabia, não havia cobertura dos media, ninguém falava disso.” – Herlander

E ainda não falam.” – nëss

“Exacto. Nós estaríamos iguais aos boomers se não tivéssemos Internet.” – Herlander



[Internet, um instrumento de justiça histórica e da procura por um equilíbrio]

A World Wide Web abriu portas para que a música independente começasse a proliferar como nunca. Hoje em dia, é tão simples fazer música e partilhá-la com o mundo — está praticamente ao alcance de qualquer pessoa com acesso a um computador. Com isto, o poder deixou de estar tanto nas mãos de grandes editoras, que outrora decidiam o rumo da cultura, e passou para o lado do consumidor que, com um vasto leque de plataformas e formatos disponíveis, escolhem os artistas que mais gostam e democratizam o consumo dos mais variados tipos de géneros. Olhando para o rap crioulo, por exemplo, que só recentemente chegou com real força às rádios e às grandes editoras através da voz de artistas como Julinho KSD, Drenaz e Rafa G, podemos ver o impacto que a Internet teve em culturas inteiras. Estes rappers, tal como muitos artistas racializados, têm de provar muito mais o seu talento para que lhes sejam dadas as mesmas oportunidades que as dadas a artistas brancos (o rapper de Mem Martins contava já com milhões de streams e milhares de seguidores nas redes sociais antes de ser abordado pela Sony). Isso acaba por dar  maior exposição à música negra aos consumidores portugueses, que, a passos lentos, cada vez mais se familiarizam com ela.

“As coisas estão a mudar. Acho que é importante a mudança que está a haver em Portugal no consumo de música, e acho que também vamos beneficiar um bocado disso, da mudança de consumidor. Também vamos abrir portas para outros artistas blacks fazerem folk ou o que quer que o Herlander faça [risos]. Acho mesmo importante o que está a acontecer agora cá, todas estas manifestações estão a influenciar como a música é consumida também. As pessoas estão-se a interessar mais pelo movimento Black Lives Matter e se calhar pessoas brancas vão tentar perceber o que se está a passar e explorar mais a cultura. Está a haver uma evidente mudança. É uma mudança lenta, e houve muitos artistas que ficaram prejudicados estes anos todos, que se calhar queriam fazer rap crioulo e nunca o puderam fazer, ou fizeram mas nunca tiveram tanta atenção, como o Rafa G ou a Mynda Guevara que fazem rap crioulo há anos e nunca tiveram a devida atenção, e só agora, por causa de tudo o que está a acontecer nos Estados Unidos e também em Portugal, estão a começar a serem mais ouvidos. É o upside da downfall, não sei se isso é uma expressão. As pessoas estão um bocado mais a aceitar música black hoje em dia. Aqui em Lisboa é muito porque se começou a falar da cena do ‘Sound Of Lisbon’.” – PHOEBE

“Isto foi algo que veio com muitos aspetos negativos, perdemos muita gente e continuamos a perder, ainda este ano o Bruno Candé, mas acho que, para haver um reset, as pessoas precisam de perceber que isto está mesmo a acontecer, que o racismo ainda é real hoje em dia. As pessoas ficam a falar como se racismo já tivesse acabado. Até 2019, as pessoas pensavam que racismo já não era uma cena, e acho que isso veio paralelamente com as pessoas agora quererem consumir e apoiar artistas negres, perceberam que ainda estão a lutar e querem tentar ajudar” – Herlander

O som de Lisboa do qual PHOEBE fala não se refere ao icónico duo de Rui da Silva com DJ Vibe, mas sim de um movimento mais actual que nasceu nesta última década através das mãos de artistas negres que deram à cidade de Lisboa a reputação de um epicentro cultural. Este breakthrough deu-se com a explosão de Buraka Som Sistema, que levaram os sons de Angola fundidos com a música eletrónica de dança actual aos quatro cantos do mundo, e tem sido principalmente carregada às costas por uma das editoras mais interessantes a aparecerem em solo português nos últimos tempos, a Príncipe Discos, cujos artistas tocam  por todo o lado e recebem constante atenção de media internacional como a Pitchfork. À editora juntam-se artistas como Mynda Guevara, Dino D’Santiago, Apollo G e Rafa G, que carregam as raízes de uma cultura que se está a libertar progressivamente da ostracização através da aprovação de fora de portas que tem recebido. Como Bruno aponta, são cada vez mais es artistas negres presentes nas playlists de Spotify de música portuguesa. Mas ainda não chega.

“Há uns anos não era possível, tinhas muitos poucos artistas black a terem sucesso em Portugal. Tinhas o Valete, e se calhar pouco mais. O hip hop era muito mais branco, aliás, ainda hoje é. O hip hop em Portugal é bué branco. E é melhor nem falar no trap.” – PHOEBE

“Não podemos falar pela viagem de cada um, não podemos nem queremos mandar as dificuldades de ninguém a baixo, mas há pessoas no bairro a fazer trap há tanto tempo, e fazem bops. Eu sigo algumas pessoas do meu bairro ou do Barreiro que fazem bops de trap em português. Música tão boa, com qualidade, zero consumida. E depois vês essas músicas trap de artistas brancos a mimicar tudo o que tem sido dito nas outras músicas que está a ser mesmo muito consumida.” – Herlander

“A cena do lean, drogas, o bairro, confusões, gangues, eles vivem isso. E depois vês artistas brancos que dizem que ‘querem criar uma personagem’. Eu conheço pessoas que conhecem artistas brancos que dizem literalmente que querem criar uma personagem, e eles não vivem isso, lucram com isso e as pessoas glorificam-nos, mas é uma coisa de fantochada. Quando vês artistas negros a viverem o que fazem vão para o estereótipo de serem hoodish. Estão a cantar as mesmas coisas! Porque é que glorificam o artista branco que não viveu nada do que diz? É uma personagem.” – nëss

O acesso rápido a quantidades enciclopédicas de informação que a Internet permite trouxe ao nosso quotidiano justiça histórica à comunidade negra. Através de um par de cliques conseguimos saber que a origem da maioria da música — senão toda — que consumimos diariamente tem origens negras que foram whitewashed. Desde o rock e folk à música eletrónica de dança, houve sempre uma era em que artistas brancos tomaram as rédeas do género e passaram a ser eles os cabeças de cartaz da música que tocam, desde Elvis Presley a Bob Dylan, acabando por empurrar a comunidade a restringir-se apenas ao hip hop, r&b e outros estereótipos, o que acabou por moldar, também, a forma como jovens artistas POC produzem a sua arte. Esta categorização a priori prende os músicos a estruturas e sonoridades que por vezes acabam por não serem as que desejam, e reprimem aquilo que lhes parece alheio à sua identidade enquanto membros da sua comunidade.

“Falando por mim, eu sempre tive um complexo com fazer música folk porque achava que era um estilo branco, tu não vês black people a fazer folk.” – nëss

Mas não! Eu mandei-te no outro dia um álbum de um black folk artist dos anos 60.” – PHOEBE

Sim, acho que me lembro disso, mas, pronto, isto não é uma coisa de agora, já sinto isto há bué anos, porque no início eu era uma cena folkish e agora estou a tentar voltar a essa cena. No outro dia ouvi uma artista negra que Naara me tinha enviado que estava a cantar uma música folk e da forma como eu gosto de cantar, e mandei ao Herlander, que me relembrou que folk vem de black people. É uma coisa que às vezes nos esquecemos. Tal como nos anos 80 o rock and roll era algo muito branco, eram aquelas músicas tipo Joy Division, Scorpions, e é um género que vem de black people.” – nëss

“A Internet também nos ajuda agora a perceber de onde é que as coisas vêm e evitam um bocado o genre whitewash. Se não tivéssemos Internet como agora e o hip hop fosse a cena que é, o trap podia muito facilmente ser whitewashed e as pessoas pensarem todas que trap vem de pessoas brancas.” – Herlander

“Sem dúvida, mas, como é recente, as pessoas já têm acesso à história e ao que se está a passar. Tu tiveste casos como a ‘Hound Dog’ do Elvis, que foi gravada originalmente por uma mulher negra. Mas ela morreu cedo e ele começou a tocá-la, transformando-se no grande hit dele. O grande hit do Elvis foi interpretado em primeiro lugar por uma black artist. Começou tão cedo, e também aconteceu no folk, o Bob Dylan tomou controle e a partir daí tornou-se branco, mas claramente não é. Nenhum dos géneros que ouvimos hoje são brancos, e, infelizmente ou felizmente, temos a história para o provar.” – PHOEBE

É por isso que ser a cara de um género também é perigoso, porque, tal como estavas a dizer, o Bob Dylan tornou-se a cara do folk, então TODO o folk é branco. É por isso que tentarem, como aqui em Portugal, pôr um artista branco como a cabeça do trap e do hip hop tuga, da ‘Nova Lisboa’…” – Herlander

“Nova Lisboa é o Branko! [Risos]” – PHOEBE

“Mas não são só as pessoas brancas que acham isso! Black people também acha. Era uma coisa que eu pensava muito: eu fazer música folk ia-me tornar menos black, estás a ver? E black people ia olhar para mim e pensar, ‘oh isso é white music‘. Eu ficava muito com isso na cabeça, e muito complexada, porque não queria ser vista como menos black.” – nëss

You do what you gotta do, period.” – PHOEBE

“Ya! Acho que a nossa label começou a puxar por nós nisso, apesar de acharem pelo estigma que…” – nëss

“Que somos r&b. Nós somos zero r&b, a cena é essa! Toda a gente nos cataloga como r&b.” – PHOEBE

“Ai, adorava quando me comparavam com a Jorja Smith, que não tem nada a ver.” – nëss

“Já ouviram alguma música da nëss? Tipo… Tem tranças, pronto, é a Jorja Smith.” – PHOEBE

É algo que tentam sempre fazer, meter black people nos seus estereótipos. Há tantos géneros que black people faz.” – nëss

Música é, literalmente, negra e as pessoas tentam categorizar black people em r&b, trap, hip hop. É do tipo, ‘estes são os vossos géneros, o resto é tudo branco’, mas não é assim. É algo da media também, que faz as pessoas pensarem assim.” – Herlander

Media americana, principalmente.” – PHOEBE

“Porque todo o mundo enaltece estupidamente a cultura americana, é ridículo. Torna-se um bocado exaustivo para quem está a tentar fazer algo diferente porque, por muito que ela [nëss] faça música electrónica ou por muito que ele [Herlander] faça… também música eletrónica [risos], as pessoas vão sempre pôr-te na categoria urban porque és black, e torna-se um bocado contraproducente. Primeiro, estares a pôr as coisas em géneros já é fucked up por si só, porque, por exemplo, a música do Herlander não tem género, cada música é uma cena, o mesmo com as músicas da nëss. Cada música é algo diferente, não faz sentido logo à partida teres de categorizar música num género.” – PHOEBE

“E começam a ser já muitas influências de muitos géneros. Quando me perguntam que tipo de música faço, eu não sei o que responder.” – nëss

“Eu digo sempre electrónica porque é mais geral [risos]” – PHOEBE



[Arte negra como instrumento colectivo de emancipação]

Existe um sentido de emancipação e revolta inerente à arte de artistas racializados. Olhando para exemplos de movimentos como o afrofuturismo, comunidades negras espalhadas pelo mundo têm tentado utilizar a arte para comunicar ideais de união e de entreajuda, acabando por encontrar um meio de comunicação entre as várias diásporas e países do continente africano. Mas, mesmo quando os temas de foco dos autores não são de foro político ou social, parece continuar a existir um sentimento de resistência nas suas formas de expressão. 

“Quando comecei a fazer música, não estava a pensar tanto em mim próprio como uma pessoa negra quando estava a criar, porque senti que a minha manifestação de arte ia ser sempre política, porque a minha existência é política. O facto de eu, sendo black, estar a criar coisas, não interessa se estou a falar sobre blackness, amor, ou Gisela com o pai dela, vai ser político porque estando numa posição em que estou a criar algo, a minha existência e a minha pele estarem lá vai ser sempre política no sentido em que estou a lutar contra um sistema que não me quer em posições de poder. Foi sempre uma relação que já estava implementada, nunca foi ‘vou fazer algo pela cultura’, mas vai interligar como as coisas são feitas e desenroladas, e a arte entra porque começas a escrever sobre certas coisas, e a experienciar certas coisas e obviamente que, onde quer que estejas, não interessa o quão woke as pessoas são, vão sempre olhar para ti e saber que és POC. Por isso, mesmo que te queiram ajudar, vai ser sempre diferente. Isso [o lado político inerente à arte] já está bastante entranhado nas tuas raízes, vem das tuas experiências, como cresces. No meu caso, ouvia o que o meu pai me passava, e tu vais sempre querer ver-te representado na media, por isso se tu és uma black person e vês alguém black que sabe fazer algo que tu gostas bué, vais-te sentir empowered, mesmo que a pessoa nem esteja a falar de blackness. Sentes, ‘okay isto é a minha cultura’, porque a pessoa parece-se contigo e está a fazer algo incrível, por isso tem bué a ver com tudo o que fazes, com as tuas influências de trás e como te vais manifestar artisticamente.” – Herlander

O caso recente do filme de animação Soul tornou claro que a maioria das pessoas brancas não conseguem perceber a importância da representatividade, provavelmente por nunca terem sentido a falta dela. E, por mais que pessoas POC falem repetidamente sobre a importância de verem alguém parecido consigo representado nos media, coisa ainda rara nos dias de hoje, os ouvidos brancos parecem incapazes de absorver essa informação. Para entender, é preciso querer ouvir, ter a mente aberta a novas ideias, mesmo que essas por vezes colidam com a nossa visão do mundo. Esta é uma parte essencial de reconhecer o privilégio branco: entender que o simples facto de alguém ter uma pele clara torna a sua realidade completamente diferente da de alguém racializado. E que para se ter uma visão mais ampla da sociedade e dos seus problemas, é preciso escutar em vez de falar. 

É muito mais fácil relacionares-te com um artista negro a conseguir ter sucesso que com um artista branco. É diferente, a jornada é completamente diferente, principalmente na música. Há muitos white artists a aparecerem do nada e não é a mesma coisa com black artists, por exemplo, por isso quando vês algum fazer ou chegar a algo grande tu ficas bué ‘wow, tu conseguiste mesmo ultrapassar toda um sistema que não te quer ver ganhar’.” – Herlander

“Até porque tu vês um trapper branco/pessoas brancas no hip hop, em que na maioria das vezes já têm contactos, recursos, estabilidade financeira para ter tempo de estúdio e coisas assim, e é tão mais fácil para eles. É muito mais fácil porque o público que olha vê como se fosse uma coisa inovadora e cool, porque têm os looks, que é algo que vem um bocado do racismo. As pessoas olham para esses artistas brancos e acham-nos super cool e bonitos, mas quando são black people do bairro que não têm os recursos nem os contactos… Eu vejo pessoas que conheço da linha de Sintra, grupos de rappers, eles nem sequer sabem o que fazer, tipo mandar e-mails ou falar com grandes editoras. Se tentarem, essas editoras não vão ouvir porque são pessoas do bairro, e têm uma presença bué hoodish, e que não são vistas como se calhar um branco que é um hipster e está a fazer exactamente a mesma coisa e são muito mais valorizados.” – nëss

É classicismo.” – Herlander

E também tens muitos artistas brancos que tentam replicar essa cultura hoodish, é a cena mais estranha.” – PHOEBE

É isso! Mas só que de uma forma bué hipster, sabes?” – nëss

“E não é só isso, não é só no trap. Música árabe e assim, tu vês influência disso e pessoas literalmente a idolatrar e a amar quando é uma pessoa branca, e depois quando é uma pessoa preta ou árabe ou indiana a fazer músicas tradicionais das culturas deles é um estereótipo, as pessoas não querem ouvir, soa estranho, mas quando é uma pessoa branca soa a inovador.” – Herlander

E não só, porque já têm recursos para fazerem grandes vídeos.” – nëss

Porque depois depende do meio em que estás incluído. Se fores uma pessoa branca privilegiada, o mais provável é que as pessoas à tua volta sejam também elas brancas privilegiadas que têm recursos, câmaras, estúdios… É muito difícil para uma pessoa do bairro sem qualquer tipo de contactos com pessoas que têm equipamento fazerem algo bom.” – PHOEBE

“E as pessoas comem muito com os olhos, e se fizeres um vídeo que tenha menos qualidade, que não esteja bem estruturado e tenha menos acesso a material, é diferente. A maioria das vezes, POC têm de percorrer muito mais e é uma coisa que sempre sentimos dificuldade, nós não temos dinheiro, às vezes ficávamos, ‘omg, como é que estas pessoas conseguiram fazer um vídeo assim!? Como é que encontramos estas pessoas? Nós não temos dinheiro para fazermos um vídeo deste género’.” – nëss

“Mas isso também foi bué bom para o nosso caminho. Acho que nos ajudou a conseguir fazer as coisas por nós próprios.” – PHOEBE

O que acaba por ser injusto, porque temos sempre de fazer as coisas por nós próprios! Não é injusto, mas é o que é…” – nëss

“Acho que vai dar mais gosto daqui a uns anos, quando pudermos olhar para trás, perceber que lutámos tanto para isto acontecer, parece mais fácil para outras pessoas que para nós, mas parece que a jornada vai saber melhor.” – PHOEBE

“O problema é que muita gente não chega a ter essa jornada. Felizmente tivemos pessoas brancas a ajudar-nos [risos], é um ciclo.” – nëss

“Tipo, eles são os opressores, eles têm de nos ajudar [risos].” – PHOEBE



[O futuro da Troublemaker] 

As ambições do colectivo parecem continuar a crescer e estar de olhos postos na sua pluralidade artística, de forma a criarem projectos mais densos e completos com a ajuda da sua rede de amigos artistas com quem têm construído esta família. O seu foco continua a ser utilizarem a sua plataforma para mostrarem mais artistas – com especial atenção aos de pele mais escura – e preencherem o buraco que há na representatividade de pessoas queer negras. “Estamos em posições privilegiadas dentro do não privilégio, sendo privilegiados. É um espectro”, afirma Bruno. Recentemente, produziram o vídeo da nova colecção da Kahumbi, marca de slow fashion sustentável — a música é da autoria de PHOEBE –, e mais propostas têm chegado à medida que a Troublemaker cresce. 

“Nós não queremos que isto seja uma coisa burocrática, queremos ter uma relação com as pessoas, criar uma família, e sempre foi assim desde o início. Desde que nasceu, quando eramos só eu, o Bruno e o Killian, passávamos o dia todo juntos a criar músicas e os nossos projectos. Depois apareceu o Herlander, que veio viver para Portugal, e começou também a estar sempre connosco, e começou-se a tornar uma irmandade. As pessoas que queremos à nossa volta são pessoas com que nos relacionamos, não só por sermos negros, que fazem com que percebam as dificuldades e as conversas que temos, mas também algo mais, porque nos damos todos mesmo bem.” – nëss

A multidisciplinaridade nasce das pessoas que rodeiam a Trouble e da vontade de trabalharem com elas e de se apoiarem, acabando também por potencializarem outras vertentes de cada um, desde o background de fotografia e vídeo de nëss à paixão pela dança e performance de Herlander. Tal como nasceu, o colectivo continua a evoluir de forma pura e genuína, priorizando sempre a naturalidade das relações que criam e dos projectos que abraçam. Para além da música, nëss está a preparar uma empreitada visual: “Tirei fotografia e já trabalhei na área, e queria voltar aí um bocadinho. É um short de documentários que vai ser lançado pela Trouble no Instagram, onde quero pegar em mulheres negras e pessoas não-binárias e estar um dia com essas pessoas a filmá-las. Vou filmar pessoas de várias idades, já falei por exemplo com Náara. que fala sobre o seu processo criativo enquanto a gravo fazer coisas como ir comprar os tecidos e assim. A minha tia vai fazer num domingo um caldo de mancarra, que é um prato guineense, e vai contar a história do prato. Ou seja, quero pegar nesses mini documentários e mostrar que há mulher e pessoas não-binárias negras que fazem de tudo, mas sem falar de racismo. Quero que seja uma coisa natural sobre estas pessoas. Se o assunto surgir na entrevista, claro, aparece de forma natural. Mas quero simplesmente dar luz e apoio e mostrar em pequenos vídeos que há tantas pessoas como estas em todas as áreas a fazerem tantas coisas diferentes e a brilharem nelas”. 

Já Herlander prepara o lançamento de um novo EP que, apesar da pandemia ter dificultado o processo, vai ser mais sólido e maturado: “considero este o meu primeiro projecto sério, com gravações mais sérias, masterizado de forma séria, estruturado de forma séria. Não que o 199 não estivesse, mas já não é sample based, por exemplo. É só criar coisas de forma a serem eficazes e a espalharem-se por aí. Estou bastante excited e feliz por este EP”. 

Espera-se ainda num futuro próximo o lançamento em vinil de By Any Means Necessary a split affair by naive & Troublemaker, uma split tape que vai sair pela naive, editora de Violet. Entretanto, é possível comprar o merchandise e a compilação em formato digital para apoiar a editora e, consequentemente, uma plataforma que tem ajudado cada vez mais artistas a terem uma voz.

Não se pode terminar este artigo sem o agradecimento especial que a Troublemaker fez a algumas das pessoas que os ajudam a crescer enquanto artistas e pessoas: Kahumbi, Aicy Ray, Yuna3d, Carol Ellis, Saint Caboclo, Jesu, Cybertokyo, Tsunami Carvalho, Nossa Fonte. Estes são alguns dos nomes que constituem a teia de entreajuda criativa que esta comunidade tem criado e, certamente, mais nomes se juntarão a estes no futuro.

O caminho é duro, mas o colectivo fá-lo orgulhosamente e, sem arredar pé, confronta-nos com problemas sistematizados que são, por norma, varridos para debaixo do tapete em vez de serem resolvidos. Enquanto a queerfobia, a misoginia, a xenofobia e o racismo existirem, a Trouble vai estar na linha da frente da luta, servindo ao mesmo tempo como porto de abrigo e espaço seguro a quem tenta sobreviver num mundo ainda marcado pela desigualdade. Por Candé, por Floyd, por Marielle, por Angelita, por Gisberta, por Marsha P Johnson, por todos os nomes já esquecidos e que foram vítimas do ódio.


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