Três anos após abandonar o seu projecto artístico como Russa, Filipa Florêncio está de volta enquanto Filipaa Mon Sant, recuperando (e transformando) um apelido de família perdido no tempo. Lançou, discretamente, um álbum no final de Outubro intitulado RAPHANUS RAPHANISTRUM — título longo (e exigente) que é o nome científico da planta conhecida como saramago.
O universo literário de José Saramago, conterrâneo do Ribatejo, influenciou particularmente este trabalho de oito faixas para o qual Filipaa Mon Sant colaborou com Sickonce e Capital da Bulgária. É apenas o início de uma nova fase artística em que a rapper se propõe a “fazer história” e a erguer toda uma “corrente artística”. Em entrevista ao Rimas e Batidas, fala sobre o regresso, a metamorfose artística e aquilo que se segue.
O que te fez querer voltar a fazer música, agora com o nome Filipaa Mon Sant?
Na verdade, nunca deixei de fazer música. Quando encerrei o projecto Russa, há alguns anos, o primeiro álbum de Filipaa Mon Sant já estava praticamente finalizado. Simplesmente ainda não era o momento de o lançar. Senti que precisava de parar para redefinir estratégia, objectivos e rumo artístico, porque a forma como eu me apresentava ao público já não correspondia à minha visão. E até o próprio nome deixou de reflectir quem eu era e quem queria tornar-me. O nome Mon Sant vem do apelido Monsanto, que o meu bisavô deu apenas aos dois primeiros filhos e depois deixou de usar. É um nome que está a desaparecer da linhagem, e eu quis recuperar essa raiz, essa origem. Representa a minha ligação à infância, às Fazendas de Almeirim, à minha essência mais pura… a parte de mim que sonha e cria sem filtros. Separá-lo em Mon Sant deu-lhe uma dimensão mais artística, mais alinhada com esta nova fase. É um nome que me permite avançar com ambição sem perder aquilo que me fundamenta. Isto porque desde que comecei o projecto Russa tive sempre dois ou três empregos ao mesmo tempo para poder fazer música. Foram quase 10 anos a trabalhar a uma média de 12 ou 14 horas por dia, muitos meses sem qualquer folga ou férias. Eu tinha de parar com esse ciclo porque a arte só existe se o artista estiver bem. Cheguei a comer só Cerelac com água e grão da lata para ter dinheiro para gravar. Cheguei a viver no carro para poupar na renda e ter dinheiro para ir para o estúdio. Ninguém me levou ao colo, mas essa luta sozinha quase destruiu a minha própria arte.
Como descreverias o processo de construção deste disco?
Foi um processo profundamente intenso e complexo. Começou com uma imersão total na obra de José Saramago: li vários livros, fiz resumos extensos, vi documentários e entrevistas, até conseguir desenhar um esqueleto conceptual para o disco: temas para o lado A, temas para o lado B, e a lógica narrativa que os ligava. Só depois dessa pesquisa é que comecei a escrever as letras, já com os instrumentais definidos. Para mim, o maior desafio foi encontrar o ponto de equilíbrio: criar um álbum que respeitasse Saramago e a sua profundidade, mas que ao mesmo tempo não se tornasse excessivamente intelectual. Eu queria aproximar a literatura do povo, até de quem não lê. Era essencial que a mensagem fosse acessível sem perder densidade. Essa linha ténue foi, talvez, a parte mais difícil de todo o processo. Li também o livro que inspirou El Mal Querer, da Rosalía [Flamenca, de autor medieval desconhecido], para perceber de que forma a literatura pode ser transformada em música sem perder impacto. No fundo, a pesquisa foi o coração deste disco. Na produção, trabalhei com o Rafa [Sickonce], que também está a produzir o meu próximo álbum; e com a Sofia [Capital da Bulgária], que já colaborava comigo e ajudou muito na construção estética deste projecto.
Desejavas uma estética mais electrónica? Foi algo intencional desde o início?
O meu próximo álbum é assumidamente muito electrónico, por isso a dúvida durante este processo foi, na verdade, como não ofuscar o que vem a seguir. A solução foi criar dois mundos dentro do disco: um lado A, mais próximo da estética de Russa; e um lado B, que aponta já para o futuro de Filipaa Mon Sant. Este álbum não é, propriamente, a definição da estética Mon Sant. É a ponte entre duas fases da minha vida artística. É o espaço onde se vê a transição acontecer.
Como é que o Mirai entra no disco? Já querias fazer uma faixa com ele?
Convidei vários artistas para este projecto. Muitos adoraram, alguns conseguiram entrar, outros não, por motivos de agenda. O Mirai era uma das minhas prioridades, não apenas porque admiro o seu trabalho, mas porque, para mim, ele representa o futuro da música feita em Portugal. Eu não me revejo num rap que não evolui, que fica preso a fórmulas antigas. E o Mirai é exatamente o contrário disso: ele arrisca, experimenta, avança. É um verdadeiro artista. Por isso fazia todo o sentido tê-lo neste disco.
Porquê este título para o disco? E como é que Saramago influenciou o imaginário do projecto?
O título é o nome científico da planta saramago. Foi essa planta que inspirou o apelido do nosso Nobel da Literatura e ambas as palavras começam por R-A-P. Para mim, isso era perfeito: independentemente de eu estar a fazer rock, electrónica ou qualquer outra sonoridade, os meus flows vêm sempre do rap, da escola hip hop. Era um título que amarrava todo o conceito de forma elegante. A influência de Saramago está no espírito do disco: a observação crítica, o olhar humano e questionador, o respeito pela narrativa e pelo simbolismo. Quis aproximar Saramago das ruas, das pessoas que talvez nunca tenham pegado num livro dele. Essa democratização cultural era o grande objectivo e a verdade é que o vinil está quase esgotado. Neste momento já só temos algumas cópias à venda na loja da Fundação José Saramago, em Lisboa. Para quem quiser comprar uma prenda de Natal, já sabe onde ir!
Portanto, daqui para a frente, planeias continuar a fazer música.
Eu nunca parei. Desde há cerca de dez anos que lanço música consistentemente. Diria até que, dentro do espectro da música urbana feita por mulheres em Portugal, devo ser das artistas com mais lançamentos. Se não sou a primeira, estou seguramente no top 3. Muitas vezes, o público não vê o que está a acontecer nos bastidores. Quando terminei o projecto Russa, já tinha cerca de 20 músicas prontas enquanto Filipaa Mon Sant. O trabalho nunca parou; apenas ainda não era hora de mostrar tudo. Agora, quero sublinhar algo importante: The Road from Ribatejo to the Grammy. É uma série de episódios que vão sair nas redes e no YouTube, acompanhando a jornada de uma artista (no caso, eu) que vem do Ribatejo, sem contactos, sem família rica, sem herança artística, sem vir de um bairro com tradição hip hop… sem nada além de vontade, visão e trabalho. É a construção de um caminho até chegar a outros patamares. O próximo passo é profissionalizar cada vez mais esta estrutura: contratar pessoas, reforçar a equipa, e usar o meu percurso para inspirar uma nova geração de artistas. Portanto, eu não planeio apenas fazer música. Planeio fazer história. Filipaa Mon Sant não é uma artista, é uma corrente artística.