A imagem é digna de moldura nos anais da história da música: por cima, uma fotografia de Jacques Berman Webster II a actuar para umas poucas dezenas de espectadores, por volta de 2013, ano em que dava os seus primeiros passos em palco à boleia de Logic (um outro fenómeno no milagre da multiplicação de plateias); por baixo, uma outra fotografia, desta vez tirada em 2024, já com recurso a tecnologia drone, que de cima capta um mar de gente aglomerada num recinto megalómano onde o agora inconfundível Travis Scott encabeçava a sua digressão Circus Maximus — que, à paragem em Milão, provocou um abalo sentido pela população como se de um sismo se tratasse, devido às mais de 80 mil pessoas presentes no concerto. Um cenário verdadeiramente distópico.
Pois foi precisamente com UTOPIA — quarto álbum de estúdio de Travis Scott, editado há precisamente um ano — que o rapper de Houston, Texas, se fez à estrada para dar vida a este Circus Maximus, digressão que reservou três noites seguidas em Lisboa para a sua despedida europeia. “Deixar o melhor para o fim”, seduzir-nos-ia Travis no arranque da primeira dessas três noites de Agosto, dia 2. Todas elas previstas para acontecer numa MEO Arena praticamente lotada por, maioritariamente, incondicionais fãs ainda aquém da maioridade, com evidente destaque para a larga fatia de jovens rapazes de tronco nu desde a entrada de Yung Lean, numa inglória tentativa de atenuar o calor infernal sentido na sala.
É o artista sueco quem assegura o acto inaugural deste Circus Maximus, figura mística de gravata e gabardine, envolvido nas asas douradas do seu microfone (que reconhecemos de outras núpcias), à medida que vai endereçando declarações de amor a Lisboa, Porto, Portugal e ao público que tem pela frente. Há quem reconheça e acompanhe até algumas das mais aclamadas canções de Jonatan Aron Leandoer Håstad, ainda que a flagrante vontade de ver Travis Scott fale mais alto nestes preliminares. Mas a prestação do escandinavo — que não destoa muito além do que vimos há precisamente um ano no anfiteatro natural do Taboão, por ocasião da edição comemorativa dos 30 anos do festival Vodafone Paredes de Coura — não abona a favor das nossas já moderadas expectativas. Diz-nos a experiência que os grandes, os maiores mesmo, nomes do hip hop raras vezes estão à altura da sua dimensão no que à performance diz respeito. E nessa medida serviu-nos a edição de estreia do festival Rolling Loud na Europa — que decorreu na Praia da Rocha, Portimão, em 2022 — para testemunharmos que figuras desde Playboi Carti a Lil Uzi Vert, por muito que as suas legiões de fãs os validem, não deixam de representar o que de mais pobre pode uma actuação artística ter.
Até prova em contrário, o caso de Scott ameaçava vir a desenrolar-se em contornos mais ou menos equivalentes, não tivesse ele irrompido do sub-solo, num disparo vertiginoso, pronto a contrariar desde logo essa malfadada impressão. “Greatings from Utopia. Before the show starts, open that shit up”, repetidamente ecoado por uma voz artificial, já antecipava esse início fulgurante. Primeiro de incontáveis picos de êxtase replicados pelo público, enquanto Scott percorre a passo rápido a longa plataforma que se estende até meio da sala, de óculos escuros no rosto, a saltar de obstáculo em obstáculo, quais Jogos sem Fronteiras sobre uma muralha asteca, ao som de “HYAENA”. Segue-se uma série de temas em catadupa, nenhum deles propriamente desconhecido ou indiferente para os ragers portugueses, eufóricos em cada mosh pit, de mãos na cabeça a cada nova entrada no alinhamento.
A relação entre artista e público revela-se próxima à distância e distante na proximidade: Travis não se cansa de puxar pelos seus incondicionalmente fiéis ragers, e estes por sua vez não se cansam de responder em dose reforçada aos apelos do norte-americano. A ausência de cansaço de parte a parte é, aliás, uma particularidade assinalável deste autêntico circo de feras. Agora, quando o autor de Rodeo chama ao palco três “jackboys” e uma “jackgirl”, seleccionados da plateia com uma inusitada ponderação do rapper, a incontrolável excitação destes quatro jovens eleitos esbarra numa frieza um tanto ou quanto tensa na postura corporal de Travis: nada de abraços ou cumprimentos calorosos, muito menos telemóveis para registar o momento presumivelmente inesquecível para estes infantes. E esse trato passivo-agressivo repetir-se-ia nas sucessivas interacções de Scott com os balcões da MEO Arena, ao redobrar trabalhos à realização do evento, constantemente à procura dos ragers certos para os momentos exactos — como o de “HIGHEST IN THE ROOM”, em busca pelos espectadores situados nos lugares mais altos da sala.
Esse é um dos vários êxitos astronómicos que o rapper guarda para a recta final. “BUTTERFLY EFFECT”, “SICKO MODE” ou “goosebumps” são outras das canções que melhor espelham a facilidade com que Travis orquestra as suas gentes, com pouco mais do que uma energia inesgotável e um auto-tune apuradamente afinado. Mas nenhuma delas — por muito apoteóticas que se verifiquem as suas concretizações — se compara à sequência de explosões desencadeadas por “FE!N”. Rendida até mais não, a plateia vai agradecendo com o irremediável cântico “Esta merda é que é boa”, ao qual Travis Scott, enfim, se rende também, fazendo da sua t-shirt de Pulp Fiction corda e laço no rodeo que protagoniza. Não se delonga muito mais e atalha a partida enquanto o Pavilhão Atlântico ainda acusava sede por mais. É SZA, ao som de “TELEKINESIS”, quem empresta voz à saída triunfal de Travis, que abandona o palco da mesma forma com que entrou, seguido por uma câmara em directo até desaparecer do plano. No recinto permanecem os milhares de espectadores que tudo fizeram para estar à altura da dimensão de um espectáculo que, ainda que longe da dimensão do que se viu em Milão ou noutras cidades europeias, não defrauda as expectativas de absolutamente nenhum fã. E aí Travis Scott afigura-se vários furos acima da maior parte dos seus pares (alguns deles por aqui mencionados) no que toca a montar um espectáculo que dignifique a sua obra discográfica. Porque, não sendo possível transpor para o palco a densidade sonora que a quantidade e a fasquia de contribuintes criativos permitem ao seu reportório, basta-lhe o fundamentalmente essencial para fazer jus a esses autênticos hinos das novas gerações. Não será por isso de estranhar que Travis Scott seja um dos artistas mais influentes da última década. Aqui, o hype é manifestamente real — e tem a sua razão, mais do que justa, de ser.