Ainda é Julho, mas no planeta jazz que orbita em suspensão neste universo chamado Lisboa já é Agosto. E estas particulares Jornadas Universais da Irrequietude são sempre ocasião esperada e ansiada. Sobre o arranque da edição 2023 do Jazz em Agosto escreve-vos Sofia Rajado noutra “página” desta publicação. Ao segundo dia, coube a Evan Parker, que desenrolou sobre a mesa a sua versão aditivada do Trance Map +, a missão de transportar quem aceitou o seu convite até uma dimensão paralela e nova, um “lugar” em que a música se encontra sem bússola e existe sem categorização, mas sem nunca abdicar de propósito fundo — o de nos escancarar as portas para uma paralela dimensão nunca antes sonhada. E para alcançar tal estado, a repetição — ideia que tanto arrepia inúmeros exploradores da música improvisada —, é estratégia eficaz. O transe a que alude o nome deste projecto é real, explorado pela via da circular arquitetura de boa parte da música gerada por este invulgar, mas fascinante sexteto. O mergulho não é opção, por isso mesmo, antes condição sine qua non para a fruição total do desafio proposto.
Antes de se abordar outros aspectos da apresentação do Trance Map +, porém, comecemos por arrumar a questão dos que decidem abandonar um concerto cedo: deste lado respeita-se muito mais quem percebe, com mais ou menos rapidez, estar no sítio errado, seja qual for a razão para tal conclusão (não gostar, não entender, não querer ou não saber serão sempre pontos válidos para justificar a saída antecipada de um espectáculo desta ou de qualquer outra natureza), do que outras pessoas que eventualmente possam reprimir esse impulso de partir para outro lugar por temerem julgamentos alheios. Isso aconteceu ontem, como de resto acontece quase sempre quando é desta música mais aventureira e exploratória que se trata, mas a verdade é que quem decidiu ficar pelas razões “certas” pode também recolher a sua justa recompensa — uma experiência de imersão muito intensa, mágica e hipnotizante, mas também, a espaços, deveras empolgante.
O concerto que voltou a reunir o veteraníssimo saxofonista Evan Parker com o sound designer Matt Wright (os dois elementos fixos deste projecto) contou ainda com um ensemble adicional que ontem à noite teve no Anfiteatro ao Ar Live da Gulbenkian a sua estreia mundial: Pat Thomas em modo “piano-less”, mas com mesa farta de artefactos electrónicos, Peter Evans no trompete, fliscorne e trompete de bolso, Hannah Marshall no violoncelo e Toma Gouband em timbalão de chão, címbalos, ramos de árvores, molhos de ervas, pedras e outros objectos.
O concerto de cerca de 75 minutos foi a muitos lugares e um deles, definitivamente, foi um mundo floral mágico e denso, com a natural música da brisa que agita a folhagem circundante a confundir-se com o zumbido de insectos e chilrear de pássaros convocados via gira-discos por Matt Wright — que fez scratch e tudo — e com a agitação dos pedaços de natureza trazidos por Gouband para perto do seu esparso kit, pedaços esses certamente encontrados no maravilhoso espaço circundante do palco: o drone extraído da fricção circular das pedras ou o seu amplo movimento repetitivo de braços foi uma boa tradução física do tranquilo vórtice sonoro em que o colectivo nos enredou.
Mas houve muito mais: deu para escutar Evan Parker a soar como um encantador de serpentes em ácidos — isto quando tocou, claro, porque o veterano saxofonista, como de resto os restantes músicos, soube igualmente remeter-se a um reverente e generoso silêncio, em momentos em que se percebeu estar em escuta profunda; deu para ouvir Hannah Marshall a traduzir sombras e quase silêncios para o seu violoncelo, que afagou com o arco e dedilhou com os dedos, sempre com encantatória dimensão poética; deu ainda para escutar Peter Evans a fazer de bólide de pista com o seu piccolo em derrapagem pelo autódromo da tonalidade; e Evans e Parker — certamente com ajuda electrónica de Wright — multiplicados como se fossem uma marching band de 50 membros em desfile por uma qualquer via láctea estelar. Até deu, ainda na primeira parte do concerto, para que o colectivo soasse a versão moderna de um ensemble de Carl Stalling, como se estivesse a criar música para filmes de animação criados por alguém como Wassily Kandinsky. A sério.
O concerto foi de uma beleza funda e no final, como se impunha, a música dissolveu-se na noite, nos seus ruídos e mistérios, ficando para sempre ali. O mapa a confundir-se com o território.