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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 29/07/2023

Arte dos sentidos e da expressividade.

Eve Risser no Jazz em Agosto’23: a simbiose em forma musical

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 29/07/2023

Na 39ª edição do festival Jazz em Agosto, foi à Eve Risser’s Red Desert Orchestra que coube dar o pontapé de saída na noite de abertura, a 27 de julho. Este é um dos principais festivais de jazz a nível nacional, cuja tradição é trazer grandes nomes do género, internacionais e nacionais, à Fundação Calouste Gulbenkian, que o acolhe e dinamiza sob a Direção Artística de Rui Neves.

Percorrer o caminho verde e fresco do jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, sombreado pelas luzes que incidem na vegetação, chegar ao cimo do anfiteatro, observar, sentar e olhar o palco ladeado de tons verdes, rosa ou amarelo, é tomar consciência que o momento presente antecede grande travessia sonora e sensorial. Com a Eve Risser’s Red Desert Orchestra, o pressentimento confirmou-se.

Quase a completar os seus 40 anos de vida, realça-se o facto desta edição contar com uma grande representatividade de mulheres. Não que isso se traduza em dar visibilidade a uma espécie de categoria específica da música, que seria o “jazz no feminino” ou algo do género, pois este é um conceito ou ideia equivocada, mas sim porque é uma edição que dá espaço à apresentação do trabalho de mulheres, à sua criação artística, e isso deve ser reconhecido como algo muito positivo, tendo em conta que em anos anteriores, quer neste festival, quer em outros, a representatividade era muito diminuta. E os céticos, dada a qualidade quase certa da música apresentada no decorrer do festival, poderão ter a oportunidade de entender a importância deste grande passo. A igualdade de género é também ela necessária no mundo da música. 

Eve Risser é uma compositora, pianista e improvisadora francesa. Começou por estudar música clássica, em flauta e piano, tendo mais tarde seguido pelos caminhos do jazz. Frequentou o Conservatório de Paris, participou na Liberation Music Orchestra de Charlie Haden e integrou a conceituada Orchestre National de Jazz. Faz parte do coletivo de músicos Umlaut, formado em Estocolmo em 2004, e teve no seu percurso a presença e influência de músicos como Joëlle Léandre, John Hollenbeck, Kaja Draksler, Benjamin Duboc e Edward Perraud. 

Não é a primeira vez que Eve Risser toca sob as copas das árvores do jardim da Fundação Calouste Gulbenkian. Já em 2016 se apresentou também em formato de orquestra, criada e dirigida por si, a White Desert Orchestra, trabalho inspirado na sua ida ao Bryce Canyon, nos EUA. A sua música é a arte dos sentidos e da expressividade e nela sentimos a presença intensa de diferentes elementos da natureza que segue, numa outra escala e num outro tempo, a evolução do próprio planeta. Inicialmente matéria mineral que, paulatinamente, se transforma em matéria orgânica e origina as espécies vegetais e animais que conhecemos atualmente. E se a White Desert Orchestra nos transporta para o imponente mundo sedimentar e estratigráfico de um canyon, onde se conta uma parte da história do planeta, a Red Desert Orchestra dá um salto para o presente e faz-nos assentar na África Ocidental, sob um sol intenso, ao redor do Trópico de Câncer, e observar o mundo animal. 

Esta nova versão da sua orquestra traz ao Jazz em Agosto o disco de 2022, Eurythmia, editado pela Clean Feed. É uma formação que se expande por outros caminhos e vai nutrir-se noutros ambientes musicais, pois combina a experiência de Eve Risser dentro do jazz, música improvisada e clássica, com a música da África Ocidental, nomeadamente do Mali, com uma forte influência do seu trabalho com a Kaladjula Band e Nainy Diabaté. Note-se aqui que a compositora e pianista é também influenciada pelas questões do feminismo e isso nota-se também no seu trabalho e na presença de mulheres nesta formação. A nível instrumental, se por um lado contém elementos das tradicionais big bands, com a presença do trompete, trombone, piano, três vozes de saxofones, bateria, guitarra e baixo elétrico, por outro associa instrumentos africanos como o balafon, bara e djembe, juntando-se ainda, por vezes, sintetizadores. É um mundo de fusão, de respeito e afirmação. 

Num palco composto de músicos com diferentes origens, a Eve Risser’s Desert Orchestra deu início ao seu concerto, de forma impactante e bastante simbólica, com um solo de djembe hipnótico, a evocar o mundo africano e a afirmá-lo. Manifestando um grau de intensidade que durou mais de uma hora de música, Eve Risser dirigiu a sua orquestra por diferentes ambientes: os seus arranjos musicais ora fluídos ora súbitos e inesperados, faziam os ouvintes entrar em transe musical, em loop, e deixar fluir a mente e o corpo, à semelhança da sensação que a música eletrónica transmite, inspirada também ela  em ritmos africanos contínuos. 

Segundo Eve Risser, extremamente comunicativa e grata para com o seu público, as diferentes músicas tocadas evocaram, além de outras ideias imaginárias, movimentos de animais como o cavalo, a cobra ou o camelo, demonstrando que cada um tem a sua cadência rítmica corporal, o seu embalo, ora apressado, ora lento. A expressividade nos corpos dos músicos denotou a sua entrega. Uma das partes mais impressionantes na música de Eve Risser é perceber que toda ela tem um enquadramento muito rico melodicamente e harmonicamente e que, não sendo totalmente improvisada em tempo real, necessita de uma capacidade imensa de quem a toca para a memorizar e lhe dar uma nova roupagem, de acordo com o que cada momento pede — isso traduz-se num concerto de grande simbiose e humildade entre os músicos. É uma sonoridade que tem a capacidade de não se enquadrar em nada e ao mesmo tempo se enquadrar em tudo. Tendo a execução dos diferentes músicos sido brilhante, e se durante a maioria do concerto houve uma grande ênfase na percussão, também devido ao ambiente geográfico que serviu de inspiração a Eurythmia, nos momentos finais destacam-se os bonitos e enérgicos solos do balafon, piano, saxofone tenor e saxofone barítono.

Num outro cenário ou contexto, o público ter-se-ia levantado, dançado e dançado, sem parar. Com o corpo a baloiçar levemente, a cabeça a abanar suavemente, o pensamento viajou até ao deserto e viu tudo o que havia para ver. A viagem terminou com aplausos, com sorrisos nas caras dos ouvintes e com uma energia a pairar no ar que acompanhou a noite e o rumo de quem lá esteve.


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