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Fotografia: Beatriz Freitas
Publicado a: 31/05/2022

Vomitar emoções num instrumental.

Trafulha: “Sou uma pessoa bastante privada, por isso a cidade acaba por ser a minha companhia diária”

Fotografia: Beatriz Freitas
Publicado a: 31/05/2022

Imponente e com vontade de agitar as águas, por necessidade e missão, Trafulha surgiu no panorama português da produção de hip hop decidida a mostrar o que acontece a uma alma criativa, por sua vez já irrequieta, quando tudo à sua volta (e dentro de si) acontece ao mesmo tempo, numa intensidade enorme e azáfama extasiante. Poupando o suspense e lamentando o eventual spoiler, o resultado aparece em forma de melódicos instrumentais em que a cidade e os seus gritos e suspiros reinam, enlaçados com toques suaves de jazz que tomam fortes contornos de cunho pessoal.

Depois de lançar o mote para uma relação autosimbiótica com o que a rodeia, a artista dá agora continuidade a isso no seu mais recente projecto Absorta, em que são retratados momentos de autoisolamento perante uma realidade exaustiva: um poderoso combustível para alimentar uma fogueira já de dimensões astronómicas.

Numa conversa com o Rimas e Batidas a produtora levantou o véu para descobrirmos mais sobre o seu processo criativo, identidade artística e a importância de se ser irrequieta.



A palavra “Trafulha” no dicionário apresenta-se como “indivíduo que expressa ou realiza trafulhices ou desonestidades; charlatão ou embusteiro”, há até uma ligação a algo de origem obscura. Porquê este nome?

Eu não vejo “trafulha” como a definição que geralmente vem no dicionário, eu vejo “trafulha” como aquele puto traquina, sempre foi essa a definição que me foi imposta desde criança. Eu ouvia a minha avó dizer isso quando um puto partia um vaso ou uma coisa assim. Portanto, para mim, trafulha não tem nada a ver com política ou charlatão.

Como é que te aventuraste no mundo da produção? De onde surgiu o interesse?

Então, eu queria ser MC, como a maior parte dos produtores [risos], mas, quando comecei a querer mesmo investir nisso, deparei-me logo com o primeiro “problema”: obviamente um MC precisa de instrumentais. Como isso não me era facilitado, percebi desde cedo que se eu queria beats tinha que ser eu a fazê-los. Comecei a fazê-los eu e acabei por perceber que sou uma péssima MC, mas que sou boa a produzir, [risos] então fiquei só por produzir.

Tens um EP chamado Autosimbiose onde podemos ouvir vários instrumentais, alguns com falas por cima, num tom poético. Porque é que quiseste incorporar a voz nesse projecto em específico? E era mesmo a tua voz?

Os textos são meus, a voz é minha e o Autosimbiose é mesmo uma descrição do que estava a passar naquele momento. Senti a necessidade de me expressar por vários caminhos, tanto na parte da ilustração como na parte da música e do lettering.

Ilustração é algo a que te dedicas também? 

Eu andei na António Arroio e o meu curso foi serigrafia e gravura e até hoje continuo a adorar ambas as técnicas.

Pretendes continuar a incorporar isso nas tuas obras, então.

Tento sempre ser eu a fazer todas as minhas capas, até as letras que estão no vídeo do Absorta são feitas por mim, portanto eu gosto sempre de ter as minhas ilustrações como base. 

Com temas em comum, nas tuas faixas pareces dar esta ideia de limbo entre os planos do eu criativo e do eu enquanto pessoa. Sentes dificuldade em juntá-los?

Eu acho que não há dificuldade nenhuma, eu acho que os dois são um só. Ainda hoje comentei com uma amiga [risos], eu sinto que a minha arte é o meu vómito (emocional). Quando estou com sentimentos a mais ao ponto de já não conseguir guardar mais para mim, eu penso: “ok, está aqui e já digeri” e no processo de fazer aquilo e expressar aquilo fico mais ok.

Usas a própria arte como terapia.

Nem é bem terapia, é mesmo uma necessidade de deitar para fora.

E já não pensas em escrever rap da tua autoria? 

Eu escrevo prosa, como nos textos de Autosimbiose.

Falando agora do teu mais recente projecto Absorta, um projeto audiovisual onde te juntas à realização de Francisco “Queragura” Gomes para concretizar uma experiência de seis instrumentais em sete minutos. De onde surgiu o conceito para esta obra?

Por acaso este conceito não surgiu de um modo habitual. Eu, geralmente, começo pela palavra, mas desta vez comecei apenas pelo sentimento. Porque chegam aquelas fases complicadas da vida em que uma pessoa precisa só de se sentar, de se isolar e digerir tudo aquilo que se passou e se está a passar, para conseguir andar para a frente, porque se não só vai encher mais. Então, eu comecei por esse sentimento, especialmente por aquele primeiro sample em que parece um telefone a tocar; não é, mas parece. E é mesmo porque eu me isolo, então os meus amigos ligam-me e eu ’tou nem aí [risos]. Estou a dormir, provavelmente, a maior parte do tempo, então veio daí. E em específico, uns dias mais tarde, depois de ter começado, estava a ter uma conversa com a Muleca e ela estava já um pouco frustrada de me aturar, normal [risos] e disse que aquilo pelo que estava a passar eram dores de crescimento. Para mim, o conceito ficou fechado aí, porque é justamente isso; quando uma pessoa está naquelas fases da vida em que precisa de crescer, [isso] dói, mas é necessário. Portanto veio daí. O Queragura acabou por se juntar apenas porque ele já tinha ideias de querer fazer um projecto comigo e eu apresentei-lhe esta ideia e concordámos os dois, “ok, isto vai ser uma boa ideia” e seguimos em frente.

Como mencionado, este é um projecto que pretende expressar momentos de autoisolamento perante uma realidade exaustiva. Do que é mais difícil abstraíres-te ao criares? Sentes algum entrave?

Eu sinto que, no máximo, os entraves que sinto surgem quando já estou na fase final do projecto e já estou a ser perfecionista ao máximo e quero ajustar tudo e depois do nada já quero mudar o beat inteiro. Mudo sempre quase tudo nas últimas semanas, mas isso para mim nem é bem um entrave. A ideia está lá e eu é que preciso de ajustar, ajustar e ajustar até estar exactamente como eu quero.

Em que zona é que tens de estar para produzires? Qual é o cenário ideal?

O mindset para mim é qualquer um [risos], desde que eu sinta a necessidade de. Quer esteja feliz ou triste é indiferente, agora o espaço [físico]… eu produzo quase sempre no meu quarto. Porque produzir no estúdio de outras pessoas eu acabo por sentir… nem é bem uma pressão, mas é aquela coisa de “tens de produzir aqui e agora” e eu não gosto muito dessa sensação. Eu gosto de pensar, “ok, vou produzir… ah, mudei de ideias, vou fumar” e depois voltar à cena. Esse tipo de vibe para mim é mais tranquila. Não há timing.

Em que é que te inspiras? Tens algumas influências? 

Eu digo sempre que não, porque eu nunca fui produzir a pensar: “Eu quero um beat que seja semelhante a x”. Eu procuro sempre expressar-me de um modo orgânico, portanto não vejo assim referências, mas influências… uma pessoa é sempre influenciada pelo que ouve obviamente. Eu como ouço de tudo, digo que sou inspirada por tudo [risos], mas não há nada específico que possa dizer que fui buscar daqui ou dali.

Então, sentes que tens um cunho muito pessoal? 

Sim, acho que sim.

Qual dirias que é?

Uma cena mais jazz. Porque eu, quase sem falta, assim 80 % das vezes, tenho um saxofone nos meus beats. É mesmo a minha assinaturazinha. Eu estou a fazer um instrumental e chega aquela parte em que é só: “Falta o saxofone”.

Era o que eu ia perguntar [risos] porque já na faixa “Ressonância Degenerativa” o saxofone se ouve muito e depois em Absorta voltei a notar isso, foi das coisas que mais me chamou a tenção. É mesmo pelo teu gosto pelo jazz, então?

Exatamente.

Ao longo desses seis instrumentais, as únicas falas que se ouvem são samples de pessoas que te procuram, incansavelmente. Sentes que já te encontraste na tua identidade artística?

Eu acho que a minha identidade artística vai mudando consoante a pessoa em que me vou tornando, porque estão interligados. Mas eu sinto que sou fiel a mim, então se por acaso eu mudar a sonoridade pode vir a mudar também, mas não sinto assim aquela necessidade de afirmar: “sou assim e ponto”. Eu sei que sou de uma determinada forma, algumas coisas vão mudando porque a pessoa vai crescendo. Há uns anos era completamente diferente do que sou agora. O objectivo é nunca parar quieta.

Nos intervalos entre instrumentais ouve-se sempre o mesmo segmento de um constante ruído de fundo de sons urbanos, como mote de recomeço da rotina, de forma cíclica. Qual foi o papel que a cidade desempenhou neste projeto?

Para mim, a cidade é quase como se fosse a minha amiga. Porque eu sou uma pessoa bastante privada e sozinha, tenho poucos amigos e, então, como passo a maior parte do tempo comigo própria, acaba por ser a minha companhia diária, a cidade. Eu a andar nos transportes públicos, ir comprar uns cigarros, são essas coisas que para mim me levam a crer nessa relação simbiótica entre as duas.

Curiosamente, no fim, quando o beat fica mais alegre e as coisas clareiam, são apresentadas fotos mais ligadas à natureza, em contraste com a cidade.

Bem, é porque essas opções já foram mais do Queragura, não foi tanto da minha parte [risos]

Ok, isso explica [risos]. Contas também já com algumas colaborações com nomes como Each1, E.se, João Tamura e Vasco Completo. Como se deram estas ligações?

O Each foi das primeiras pessoas do Norte a querer colaborar comigo. Veio falar comigo porque eu tinha um instrumental no SoundCloud já há bastante tempo que era o “Barulho” e ele gostava muito da segunda parte, então disse-me assim: “Olha, eu não quero a primeira parte, quero só a segunda” e eu disse “’tá-se” e foi assim. Com o Tamura eu já tinha chillado com ele antes e tínhamos falado que quando tivesse um beat bacano fazíamos algo juntos. O Vasco Completo foi o Tamura que o chamou para adicionar na track, porque sentiu que precisava de adicionar algo, alguém para masterizar e eu curti da ideia.

Para quem gostavas mesmo de produzir?

Eu não sei, porque quando produzo não penso em MCs. Eu acho que há uma diferença entre beats e instrumentais, tens beats que é mesmo do género: “Tens aqui um loop, tens aqui um refrão, um interlúdio” e um MC chega lá e tau. Agora, um instrumental pode ter basicamente a construção que bem te apetecer e não vais ter um MC a chatear-te a cabeça e a dizer: “Ah, mas eu queria fazer um refrão aqui”. Eu faço mais instrumental, mesmo para a pessoa ouvir, não é propriamente para pôr um MC por cima.

Mas gostavas, por exemplo, de produzir com alguém?

Eu sou bastante aberta às ideias, desde que seja uma pessoa que eu ache que possa dar alguma coisas em condições [risos]. Porque é assim, eu não trabalho com trap, ou grime ou drill, então corta logo muitas pessoas da lista de opções.

O que podemos esperar de ti daqui para a frente? 

Então, neste momento estou a tentar fechar todas as colaborações que tenho em atraso, porque fui atrasando, atrasando e, entretanto, comecei a trabalhar no projecto Absorta e perdi ainda mais tempo. Agora vou focar nisso e especialmente no EP que vou fazer com a Muleca.

Uhhh….

Ya, porque nós já estamos com essa ideia há muito tempo, então estamos mesmo numa de “tem de ser agora”. Porque agora até já estamos a tocar juntas, então faz todo o sentido nós fazermos um EP assim de quatro, cinco músicas e num futuro próximo, daqui a um ano, dois anos no máximo, quero lançar um projeto mais longo com 30, 40 minutos de instrumental para rimar, só mesmo para o pessoal MC estar em casa se quiser estar ali no freestyle.

Lançar mesmo para o mundo, então, sabendo que não queres chamar nenhum MC em específico [risos].

Em princípio sim, porque não estou muito com essa ideia agora de chamar MCs, mas se entretanto sentir que tenho uma boa seleção, pode surgir.

E queres falar de algumas dessas colaborações que estás a fechar ou é tudo ainda no sigilo?

Shh…

Estavas a falar de actuares com a Muleca também, onde gostavas de actuar mais?

O meu objetivo era tocar em todos os sítios onde já fui ver alguém tocar [risos]. Do género, fui ver alguém no Musicbox, quero ir para o Musicbox [risos]. Por acaso, eu fiquei bastante tempo a batalhar a questão de actuar em público, mas a Muleca fez muita pressão para começar. Comecei e ainda estou só a passar os meus beats, mas a última vez em que estive na Lusophonica já estive a testar e estou a pretender fazer assim à parte da minha produção, talvez brincar um pouco enquanto DJ e passar uns setzinhos de afro com funk. Nos próximos tempos vou provavelmente fazer parte de umas festazinhas e tocar só com isso, mas vamos ver o que é que o futuro reserva. 


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