[No Silêncio Das Cordas]
Num horizonte onde as cordas vibram e as sombras dançam ao som do destino, há um nome que ecoa nas vielas estreitas de uma Lisboa em desvanecimento. Tó Trips, peregrino das notas e das tardes empoeiradas, ergue-se como uma figura que não se impõe, mas que a tudo permeia. Quatro décadas de melodias e silêncios, de partituras improvisadas na vida e na guitarra. Com uma resiliência tecida no fio do tempo, ele reinventa-se, como o rio que serpenteia pelas margens, mudando mas permanecendo, sempre o mesmo, sempre novo.
Santa Maria, Gasolina Em Teu Ventre! — uma chama que arde sem se ver, uma faísca que iluminou a escuridão dos anos. Seguem-se os passos com os Lulu Blind, na alvorada dos noventas, uma tempestade que se abateu sobre o panorama musical. Depois, a semente que germina, que floresce com Pedro Gonçalves nos Dead Combo, um duo que nasce como quem se encontra por acaso, numa noite qualquer, e transforma o acaso em destino.
E ainda, no silêncio das cordas, Tó Trips continua. Um espólio solitário, em que cada nota é uma história, cada acorde uma memória. Popular Jaguar, dizem, é o terceiro álbum de uma jornada que começou com um simples toque nas cordas, há tantos anos atrás. O tempo, esse companheiro infiel, deixou passar oito anos entre Guitarra Makaka e este novo capítulo. Mas o tempo não apaga, apenas transforma, apenas molda.
[Longe Das Sombras]
Há uma linguagem que não precisa de palavras, uma melodia que ressoa nos corações, uma dança de dedos sobre as cordas, como uma oração ao desconhecido. O seu estilo, quase intuitivo, é um mapa de histórias e latitudes, um entrelaçar de influências que vão da saudade de Carlos Paredes às paisagens vastas de Ry Cooder, dos espaços abertos de Ennio Morricone à ginga inconfundível de Marc Ribot. E essa Lisboa, aquela que se esvai, que desaparece nas brumas do progresso, encontra eco nas notas que Tó Trips dedilha, uma cidade que ele desenha com acordes em cada melodia.
Das primeiras bandas, no Liceu Pedro V, ao Rock Rendez Vous, onde as quartas-feiras se enchiam de som e fúria, a guitarra tornou-se companheira inseparável. Amen Sacristi, uma chama que ardeu breve mas intensa, dois concursos e a memória de um tempo que já lá vai. E depois, a aventura com Jorge Ferraz nos Santa Maria, Gasolina Em Teu Ventre!, a faísca que alimentou a chama.
Mais tarde, os Lulu Blind, uma década de rebelião e de energia, até que o cansaço se instalou. E nas palavras que brotam da alma de Tó Trips, percebe-se o desgaste das bandas, das idas e vindas, das histórias interrompidas. O desejo de seguir sozinho, de encontrar um caminho próprio, longe das sombras dos outros.
[Uma Melodia Única]
E assim surge Pedro Gonçalves, o encontro de dois espíritos errantes, num acaso que se transformou em destino. Os Dead Combo, uma banda de dois, mas que trazia no seu seio o peso de todas as bandas do mundo. Fado, rock, westerns, África e América do Sul — todos os sons que cabem no coração de quem já viu e ouviu o mundo. Um tributo a Carlos Paredes, um álbum que nasce como quem sussurra uma prece, mas que explode em sons, em texturas, em memórias de tempos que nunca foram mas que sempre serão.
O ano de 2004 marca a estreia com Vol. 1, um álbum que a crítica acolhe com o entusiasmo de quem encontra uma pérola escondida nas areias do tempo. E não é só Portugal que escuta: Charlie Gillet, da BBC, inscreve-o na lista dos melhores de 2005. Os Dead Combo, agora com o mundo aos pés, compõem bandas sonoras, encontram reconhecimento com Lusitânia Playboys e transformam Lisboa numa cidade mulata, onde todas as cores e sons se misturam numa melodia única.
[A Música Não Tem Idade]
E é então que Lisboa, essa cidade de mil fados e de mil histórias, abre as portas do mundo aos Dead Combo. Um concerto na Aula Magna, a entrada triunfal nos corações americanos através do programa de Anthony Bourdain, e depois o top 10 do iTunes — um reconhecimento que atravessa oceanos e fronteiras. E no Festival de Cannes, onde as estrelas brilham e os sonhos ganham vida, lá estão eles, convidados de honra na estreia de Cosmopolis.
Os anos passam, mas a chama não se apaga. Em 2014, os Dead Combo voltam com A Bunch of Meninos, um álbum que reafirma o que todos já sabiam — que a música não tem idade, não tem tempo, é eterna como as marés. Mas tudo o que começa tem um fim, e em 2019 a banda anuncia que o fim está próximo. Uma digressão de despedida, um último adeus que a pandemia e a saúde precária de Pedro Gonçalves interrompem.
[A Última Nota Ressoa No Ar]
E assim, num dia de dezembro de 2021, Lisboa veste-se de luto, porque Pedro Gonçalves parte, aos 51 anos, deixando um vazio que nenhuma nota poderá preencher. Mas a música, essa, fica. Os prémios, as memórias, os discos, os concertos — tudo é uma parte do legado que os Dead Combo deixaram. Vol. 1, Quando A Alma Não É Pequena Vol. 2, Guitars From Nothing, Lusitânia Playboys, Lisboa Mulata, A Bunch Of Meninos, Odeon Hotel — cada um deles uma pedra no caminho, uma parte da história que Tó Trips ajudou a escrever.
E agora, quando o silêncio se instala, quando as luzes se apagam e a última nota ressoa no ar, só nos resta escutar. Escutar as memórias que vivem nas cordas da guitarra, nas palavras não ditas, nas histórias contadas em cada melodia. Porque Tó Trips, esse peregrino das notas, continuará a tocar, mesmo quando o mundo adormece, mesmo quando a última estrela se apaga.
[Ruídos de Luz nas Veias do Infinito: Três Canções para um Universo Perdido]
[“Popular Jaguar”]
“A máquina ronca sob o céu estilhaçado de estrelas esquecidas”
O jaguar desliza em estradas de sonhos, pelas veias de um cosmos onde o som é rei, um ronco de guitarra eléctrica, um rugido que perfura o silêncio. Na selva de pedais, o fuzz se acende, faíscas de ruído que rasgam a tela do infinito, reverberações que se enrolam em espirais de fogo, o delay, como ecos de estrelas moribundas, sussurra segredos antigos de cor e caos.
Popular, sim, mas de que povo? Que tribo cósmica dança ao ritmo de cabos e circuitos, onde cada acorde é uma oração, uma oferenda ao abismo? A máquina ronca sob o céu estilhaçado, o jaguar é uma sombra que brilha na escuridão, uma fera domada pela mão de um deus de seis cordas.
Intemporal, imortal, percorre as estradas sem fim, deixando rastros de som e poeira estelar, um guerreiro solitário no campo de batalha do silêncio, onde o ruído é o único companheiro, e o destino, um acorde ainda por tocar.
[“Península dos Índios”]
“Onde o vento canta canções de ossos e flores esquecidas”
Na península dos esquecidos, os índios dançam ao som de guitarras eléctricas, uma canção antiga, de terra e água, de vida e morte, de silêncio e ruído. Aqui, o reverb é o vento que sopra entre os ossos, o chorus é o eco das almas que se perderam nas ondas, cada nota uma gota de chuva, cada acorde um trovão, em pedais que giram e giram, criando ciclones de som.
Os dedos deslizam nas cordas como serpentes, enrolando-se em torno de memórias de tempos que nunca foram, o flanger distorce a realidade, o delay a estica até se quebrar, e no fundo da península, onde o mar encontra o céu, há um templo de pedra e fogo, onde a guitarra reza. Rezando por uma luz que não chega, uma redenção esquecida, num lugar onde o silêncio é profundo, mas o som é mais profundo ainda, onde a cor se mistura com a escuridão, e o caos controlado é a única lei que rege o cosmos.
Na “Península dos Índios”, o tempo é um círculo, e cada volta traz uma nova melodia, um novo lamento, um novo grito ao vazio, um som que ressoa nas estrelas e se perde no infinito.
[“L.A. Chet”]
“Sombras de néon nas estradas do além”
L.A., cidade de fantasmas e néon, onde Chet ainda caminha, guitarra ao ombro, entre sombras e luzes que piscam como estrelas decadentes, uma melodia triste, um murmúrio de jazz e reverb. Na noite infinita, a guitarra chora, um lamento que atravessa as ruas desertas, o fuzz como um grito abafado, o delay como uma memória que se arrasta no asfalto quente.
“L.A. Chet”, como um anjo caído que dança com demónios, uma guitarra que sussurra verdades amargas, nas margens do caos, onde o ruído é rei, e o silêncio é apenas uma pausa, uma respiração antes do próximo acorde.
O flanger gira, como rodas de um carro que nunca pára, o chorus é o eco de uma vida que já se foi, mas ainda vibra nas notas que ressoam nas esquinas, em bares vazios e palcos abandonados. Intemporal, mas preso ao tempo, Chet caminha na névoa de L.A., um espectro de som e luz, uma sombra entre as sombras, onde a guitarra é a única coisa real, e o som a única verdade no caos controlado do universo.
Néon nas veias, som nos ossos, Chet toca e a cidade ouve, nas estradas que levam ao além, ao infinito, onde a cor é som e o som é cor, e o silêncio apenas o prelúdio de uma nova canção.
[Códigos Estelares: O Navegador de Sombras e Luz na Fronteira do Tempo]
Tó Trips, caminhante solitário nas ruas da existência, tece uma tapeçaria de sons e silêncios, fios de luz que se entrelaçam com a escuridão. A guitarra, sua companheira fiel, é o oráculo de onde brotam murmúrios de um universo infinito, onde cada nota é um pulsar, uma estrela que se acende e apaga, deixando um rasto de saudade e mistério. Ele percorre as estradas do tempo, sempre em frente, sempre além, nunca se detendo, nunca voltando atrás. O passado é uma sombra que o segue, mas que nunca o prende. No seu caminho, há ecos de dias perdidos, de noites sem fim, mas também há a promessa de uma nova aurora, de uma nova canção ainda por tocar.
Em cada acorde, há um pedaço da sua alma, uma parcela de vida que se desprende e se transforma em som, em cor, em emoção. Os pedais da guitarra são como portais para outras dimensões, onde o tempo se desdobra, onde o espaço se dissolve, e onde o ruído se torna luz. E é nesse ruído de luz que Tó Trips encontra a sua verdade, uma verdade que não precisa de palavras, que não precisa de explicações. A sua música é o eco de um cosmos que só ele conhece, um universo que se estende para além do visível, para além do compreensível. E nesse cosmos, Tó Trips é tanto o criador como a criação, tanto o mestre como o aprendiz, num ciclo eterno de descoberta e reinvenção.
O seu legado não é apenas de som, mas de sentimento, de experiência, de vida. Uma vida que se funde com a música, que se dilui nas veias do infinito, que se perpetua no eco de cada nota, de cada acorde, de cada silêncio. Porque no fim, Tó Trips é mais do que um guitarrista; é um contador de histórias, um navegador de mundos, um explorador de tudo o que é possível e impossível. E na sua guitarra, na sua obra, deixou-nos o mapa para esse universo infinito, onde o ruído se transforma em luz, e onde a vida se transforma em eternidade.