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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 19/01/2023

A "música como resposta ao que é o nosso dia-a-dia."

Tiago Sousa: a organicidade de um espírito livre

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 19/01/2023

Encontro nas Galegas. Tasco, dos belos, que ainda resiste à voragem do capitalismo pré-fabricado que abocanha o Cais Sodré. Entrevista feita no dia em que o ‘escrete’ foi eliminado do campeonato do mundo, que transforma um jogo num qualquer objecto para ser televisionado e retalhado em sintonia com a mercadoria que se quer vender no momento. Suspensão do tempo. As questões intemporais, intrinsecamente humanas, portanto – a procura de um caminho, a construção da comunidade, de luta, do entendimento da música como expressão artística, de experimentalismo e de vontade em fazer.

Antes dos concertos de apresentação de Organic Music Tapes, Vol. 2 na ZDB (hoje), na SMUP (27 de Janeiro) e no Festival Rescaldo’23 (16 de Fevereiro, em duo com a Joana de Sá), é com calma e redobrado espírito para a “contemplação-reflexiva” que lemos e interiorizamos as palavras do Tiago Sousa.



[Uma certa frequência]

“Desde 2008 que tenho vindo a lançar um álbum a cada dois anos. Em 2016, aquando de Um Piano Nas Barricadas, senti que era um fechar de ciclo. Havia algumas ideias que já vinham de trás e que concluí ali. A partir desse momento andei à procura no sentido de perceber o que estava interessado em fazer. Foi um processo lento e longo. De algum silêncio, de alguma procura. Depois disso lancei o Angst e o Oh Sweet Solitude, em 2020 e 2021, mas mesmo assim, sentia que não estava a chegar a sítios novos. Ia, de alguma forma, para lugares que já eram familiares. Quando cheguei a esta ideia de música orgânica, assumi no processo de composição formas de improvisação, formas mais abertas. A música tornou-se mais urgente e veio ela própria com mais regularidade, sinto-me mais capaz de ligar facilmente as ideias e dar-lhes a consistência que eu pretendia. Neste momento, a música encontra-se num processo de efervescência. Uma certa fonte que vai constantemente brotando. Há uma sistematização dos processos de criação, que estão a fazer com que sinta que vou gravar muita música nos próximos anos.”

[Do Piano ao órgão]

“O órgão sempre esteve presente. Muitas vezes também aparecia com o harmónio. O Oh Sweet Solitude e o Samsara são claramente piano, mas Um Piano nas Barricadas e Angst são discos que incorporam diferentes instrumentos, pelo que já havia essa procura. O piano é um instrumento que me é natural, mas de alguma forma os sons vão aparecendo, vou imaginando-os. Os sons podem ser muitos, não têm de ser forçosamente só de piano. O que muda para estas composições mais recentes, como no Ripples On The Surface e Organic Music Tapes é o trabalho com o órgão eléctrico por cima de loops pré-gravados, muito inspirado pelo processo de composição de Terry Riley ou Steve Reich. O que também é novo na minha música é a exploração da repetição como técnica de composição, mas, ao mesmo tempo, um pouco diferente do que esses compositores da corrente minimalista faziam. Estes eram um pouco mecanicistas, penso no Steve Reich ou no Philip Glass, muito cirúrgicos, muito preocupados com a escrita precisa da música. No meu caso, e no caso de outros compositores dentro do género, há a procura de um espaço de improvisação. De jogar com o inesperado, com o que emerge a cada momento, deixar que a música se transforme ao longo do tempo. Na minha opinião o que está a marcar esta nova fase é o conceito de música orgânica, que veio responder a algumas dúvidas que tinha. Desbloqueou o meu processo criativo para uma coisa mais desafogada e mais relaxada, menos obsessiva e menos preocupada como era até aqui.”

[As dúvidas]

“São dúvidas que têm que ver com aspectos mais formais, com questões mais técnicas, mas que são transversais aos tempos que vivemos. Ou seja, havia uma certa necessidade de sair da grelha: a pauta, cinco linhas com travessões, e todas as consequências que isso tem nos aspectos formais – desenvolvimento harmónico, melódico; no fundo, todo esse padrão mais geométrico e mais simétrico, que muita da música ocidental vem enfatizando. Sentia que não estava a dar as respostas que queria. Essa forma de fazer não me estava a levar a esses lugares que gostava de encontrar. Esta música surge um bocado por aí, da necessidade de sair da grelha. Criar uma coisa mais orgânica em que o tempo, o ritmo, as harmonias não são tão claras. As estruturas formais ganham uma plasticidade, uma organicidade, que pessoalmente me interessa mais e que estabelecem estas relações com o contemporâneo. Fazer música como resposta ao que é o nosso dia-a-dia.”

[A grelha]

“Sempre houve elementos de improvisação aqui e ali, mas, igualmente, uma necessidade grande em chegar a uma espécie de mestria da escrita. Pensar cada nota, pensar a forma. É disso que me estou a livrar. Como processo de composição a ideia é esta: tenho pequenos módulos, que são quase como pequenas sementes, que são padrões simples, à volta de um acorde, a partir dos quais desenvolvo estes padrões orgânicos. A pauta tornou-se cada vez mais sintética. Já acontecia com o ‘Oh Sweet Solitude’ em que as minhas composições deixaram de ter 3, 4 páginas para serem uma pequena ideia que está ali e a que sucede outra pequena ideia, que sucede outra pequena ideia e que estruturam uma música. Tudo o que acontece nos intermédios é um bocado ao sabor do momento, com a ressonância da sala e do público. O lado mais sónico da música e menos da escrita cirúrgica, da nota que se quer tocar, da escolha exacta da métrica, de cada um dos elementos. Aqui há um espaço que é dado pela sugestão desses pequenos módulos. São pequenas sementes que se desenvolvem de forma espontânea e orgânica. Que resulta numa música diferente do que estava a fazer, que era mais métrica, mais arranjada por assim dizer.”

[‘As avós 2.0’]

“Vai muito mais pelos discos que ouvimos, pela comunidade. É curioso que esta ideia de tornar o órgão num elemento mais central foi-me sendo soprada aqui e acolá. Já não me lembro do contexto, mas uma vez o Gabriel Ferrandini disse-me – ‘Tu fazias umas cenas tão fixes com o órgão, devias voltar a fazer isso’. Às tantas foi do género – se calhar vou ter que aceitar, deixar de ser tão teimoso, aceitar essas sugestões que me são feitas e ver o que me pode trazer. Lembro-me que o primeiro passo veio por uma sugestão que tu tinhas feito para eu ir tocar ao Desterro – “mas o Desterro já não tem piano, e se fizesses uma coisa para um órgão digital ou assim?”, ou qualquer outro diálogo nestes moldes. Foi uma surpresa agradável. Numa perspectiva criativa, alguns dos mestres que eu poderia citar, além dos atrás referidos, incluem casos como Morton Feldman, Julius Eastman, Charlemagne Palestine ou La Monte Young. Já há algum tempo que os mestres para mim vêm sendo os discos que ouço e o foco que dou a certos compositores e autores.”

[Ripples On The Surface]

“A estrutura do álbum depende muito do suporte, se vou editar em CD, cassete ou vinil. Ajuda a definir os temas, se tem lado A e lado B, o tempo total, etc. Como neste caso estava a gravar para CD, não me preocupei tanto. Tinha as ideias pré-produzidas e foi o que mostrei numa maquete à editora. Quando fui para estúdio já tinha uma ideia do que queria gravar, mas não tanto sobre o alinhamento. Não há uma lógica estruturante, narrativa que ligue as músicas todas. Quando fui para casa, ouvir o que gravei, pensei no alinhamento que faria mais sentido. Não há uma razão muito clara, passa mais pela intuição e pelo que fui ouvindo das gravações. Começa de facto com “Sunflowers que é um pouco mais extensa, bastante mais preenchida, com um som mais abrasivo. À medida que o álbum vai avançando passa por diferentes fases. O tema “Blossoms é mais esparso, com uma melodia mais assumida e que serve como contraponto para a abrasividade do primeiro tema. O próprio “Interlude segue essa lógica de interligação entre as coisas. Criar momentos de cheio e de vazio. É a procura desse equilíbrio e fazê-lo de forma a que pudesse conduzir o ouvinte. Providenciar o momento de atenção, de escuta.”



[Holuzam]

“O contacto deu-se de uma forma bastante espontânea. O André [Santos] assinava a minha newsletter e, na altura que estava a produzir o Angst e Oh Sweet Solitude, fui mandado trechos do que andava a fazer para as pessoas que seguem mais de perto o meu trabalho. A dada altura fui à Flur comprar discos e falámos sobre esta possibilidade. Isto ainda antes de fazer o que estou a fazer. Mostrei-lhes este trabalho e eles foram muito entusiastas.”

[Marta Ramos]

A capa e todo o trabalho gráfico corresponde a um tríptico. Abre-se o disco e a imagem forma um continuum. Já tinha colaborado com a Marta e também com a Sara [Yara Punzel], numa produção que realizaram para a Out.ra [Associação Cultural], no âmbito de uma bolsa criativa. Elas convidaram-me para enriquecer musicalmente as ideias que tinham. Quer a Marta, quer a Sara vêm das artes performativas, das artes gráficas, sendo que a música não é propriamente o meio delas. Acabámos por fazer um trabalho muito interessante. Mas foi uma sugestão do André [da Holuzam] que fosse ela a fazer o trabalho gráfico do disco. Para além desta coincidência, a Marta percebeu perfeitamente a página onde me encontrava e traduziu isto de uma forma visual.”

[A Discrepant, a Sucata Tapes e Organic Music Tapes, Vol 12]

“A relação com a editora vem já desde Um Piano Nas Barricadas. O Gonçalo foi, também, uma das pessoas que me levou para esta fórmula. Falou-me das cassetes e perguntou-me se não estaria interessado em fazer umas coisas com uns loops e com piano. O resultado está um pouco longe da ideia que tinha sido inicialmente sugerida, mas acabei por aceitar como uma forma de procurar outros caminhos, sair do espectro em que habitualmente trabalhava. Poder editar em cassete, com tiragens mais pequenas, de uma forma mais descomprometida, ajudou bastante a colar e a moldar as coisas todas. Sugeri-lhe fazer uma série, em que cada exemplar seria lançado uma vez por ano. A ideia da fita, a ideia da deterioração, a própria reorganização das partículas que vai acontecendo à custa do processo mecânico de reprodução fazia todo o sentido com essa ideia de organicidade que estava a explorar. Temos estado com esta lógica de série, mas não há um limite. Na minha cabeça apontei para um máximo de 4, mas não significa que não possa continuar. Interessa-me o processo, mais do que um roteiro fechado. O Vol. 2 acaba por ser um pouco diferente do primeiro porque concretiza as ideias e conceitos de que temos estado a falar. O primeiro volume ainda traz alguns elementos anteriores, há uma transformação gradual da música e ela vai acontecendo por haver a ‘sugestão’ de montar um disco, a cada ano, com o mesmo tema, com a mesma premissa. Não tenho já a certeza como vai ser a próxima, mas agora tenho mais certezas do que tinha quando comecei e isso é parte do objectivo.”

[Os concertos]

Para mim é importante enquanto artista ter na minha mão os meios de produção. Daí interessar-me a possibilidade de tocar em diferentes escalas, como em casa de uma amiga na Praia das Maçãs, num museu nas Caldas da Rainha, num secret spot de raves, ou na Sonoscopia. Por outro lado, o momento do concerto concretiza este processo de ‘back and forth‘, ou seja, nós vamos dando, as plateias vão acrescentando com o seu entusiasmo e reacção e eu volto a dar novamente. O feedback que tenho tido de públicos de origens muito diferentes, da música electrónica, improvisada, do jazz, etc. tem reforçado essa convicção. Mas voltando atrás, no fundo, há a possibilidade de explorar esta oportunidade que se abriu de espaços mais informais e não estar só à espera das instituições para poder avançar. De facto, mal ou bem em Portugal, existe um espectro de coisas que são admitidas dentro dos meios institucionais, mais formais, que forçosamente não é aquilo que me interessa. Esta possibilidade de ser em sítios diferentes, de tocar para pessoas que às vezes não estão à espera do que vai acontecer, entusiasma-me bastante. Há uma relação muito natural minha com alguns promotores e activistas da cena cultural, com esta espontaneidade. Para isso contribui, de facto, o facilitismo de agora poder tocar num órgão eléctrico o que leva a minha música ao encontro de novas pessoas e lugares.”

[A rede inexistente]

Cada vez mais há um certo conservadorismo na rede de teatros municipais e outros espaços camarários, os que têm mais meios e possibilidades para montar as coisas. O que noto é que os programadores dessas salas, seja por questões económicas, relacionadas com a pandemia, tornaram-se mais conservadores, porque talvez sintam cada vez mais a pressão de encher as salas. Este tipo de música, não é uma música que se destine às massas, por assim dizer. Mas há um direito da população desses lugares a terem acesso à cultura, como se estivessem em Lisboa, no Porto, em Paris. Na minha opinião, esses espaços deviam abraçar mais essa missão, que não é totalmente incompatível com outro tipo de lógicas mais mercantilistas, por assim dizer. Num caso pode ter uma plateia de 300 pessoas, noutro 20 ou 30, mas ambas têm as mesmas oportunidades. Ultrapassar a barreira psicológica do ‘está cheio ou então não vale a pena’, que é um critério limitador para as pessoas que habitam nesses lugares. Essas pessoas têm o mesmo acesso a bens de consumo através da Internet como alguém que está em Berlim ou Amesterdão, mas depois não conseguem ver os espectáculos de dança, teatro, música. Como comunidade, deveria alarmarmo-nos. Haver diferentes espectros, com as mesmas oportunidades e importância. Isso, de facto, não acontece com a regularidade que seria desejável.”

[Consciência política]

Não fui só eu que me tornei menos incisivo na mensagem. Todos esses discos — o Coro das Vontades, o Walden Pond’s Monk, Um Piano Nas Barricadas — tinham mensagens mais precisas, muito a ver com o que estava a acontecer na altura. Estamos a falar de 2011, 2012, 2014. Momentos de uma vivacidade muito grande de colectivos, de reuniões, de manifestações. Daí a necessidade de trazer estes tópicos para cima da mesa. Não quer dizer que a minha música deixe de ser política, uma vez que o político está sempre relacionado com o modo como fazemos e abraçamos ou rejeitamos o carimbo de mercadoria. Esta fase em que me encontro, pode não trazer uma mensagem tão incisiva, mas não deixa de ser política. Olhar para a organicidade, rejeitar certos padrões instituídos, elementos que constroem uma hierarquia, como o tonalismo ou a métrica do compasso ou outras hierarquias estabelecidas e que, de alguma forma, vou desafiando.”

[O Barreiro]

A atitude Do It Yourself sempre fez parte da música que ouvia e das comunidades que fomos criando. Perceber as limitações estruturais que o país tem e que a cultura é completamente risível nas prioridades das pessoas que tomam decisões. Apesar disso, não perder a chama, não perder a vontade de fazer, não perder esse sentido de missão, de nos mandarmos para a frente e fazer independentemente das circunstâncias e das possibilidades que nos dão. O que sinto, de uma maneira geral, é que a maior parte do tempo tudo se passa de forma underground. Existem momentos em que tudo se torna mais visceral, vem à superfície e depois acontece uma certa retracção. As comunidades não deixam de ter a mesma vivacidade que tinham, algumas delas até têm mais. As mensagens também passaram a ser diferentes — como as questões ambientais, de identidade, que provavelmente, neste momento, estão a ter maior visibilidade que tinham há 10 anos. Mas o importante é não perder estes laços, estas construções que fomos estabelecendo ao cabo destes 10 /15 anos e perceber que isto é necessário. Por exemplo, quando aconteceu o lock down e ficámos sem chão, fomos capazes de nos munir desta capacidade de autogestão, de nos organizarmos, sem obedecer a hierarquias, a planos estabelecidos, mas pela necessidade, pela capacidade de improvisar, de mudar, de voltar a fazer. Isso continua latente. Um potencial que está e que nas alturas certas é capaz responder aos problemas. Acaba por não ser uma excentricidade do Barreiro, porque noto essa vivacidade também quando vou a Braga, ao Porto, às Caldas. O que pode servir de exemplo, no caso do Barreiro, é a perseverança, a capacidade de chegar a públicos específicos, porque há uma necessidade que é intrínseca, das pessoas que promovem, dos músicos, dos artistas visuais, poetas. Uma necessidade de ‘pôr cá fora’, de as tornar acessíveis. Isso mobiliza. Há uma sensação de que ‘se não formos nós a fazer, ninguém vai fazer’.”


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