O que seria ouvir Thundercat pela primeira vez? Como se descreve este senhor a um inocente? Sigamos a boa tradição metafórica da crítica musical. Vamos traçá-lo como um costureiro, que troca as agulhas pelas seis cordas de um portentoso baixo: com ele, faz principescos lençóis de seda sonora, sopra ondas gentis com a laringe, alisa as pregas com o peso inerente do funk. A cobaia pode deitar-se nessas cobertas analógicas, suavemente frenéticas, o cetim sumptuoso e branco.
Do nada, um cheiro esquisito assalta-lhe o juízo: que mancha castanha é aquela? Pois. Embora pudesse ter originado do próprio Thundercat, o excremento é aquele que os Funkadelic também descreveram em 1978: aquele que se imiscui nas nossas vidas, desgraça a paciência e afoga a esperança. São as larvas da morte e as migalhas de corações carcomidos – arrotadas ao longo de uma discografia que respeita os dois verbetes de “escatológico”, um chupadouro de soul cocainada e sintética. Numa chamada adiada, truncada e monocórdica, o ReB falou com o baixista-mor do século XXI.
Portugal acariciou a pelugem de Thundercat pela primeira vez em 2012, no Musicbox, a propósito de The Golden Age of Apocalypse. Depois de trazer Drunk ao NOS Primavera Sound 2018, Stephen Bruner vem até ao Sónar – festival que, depois de Argentina, Bogotá, Hong Kong, Istambul, Reiquiavique e Barcelona, o seu torrão-natal, aporta em Lisboa. A ação do festival reparte-se pela Avenida da Liberdade, por Belém e – mais felinamente falando – pelo Parque Eduardo VII.
É lá que Bruner, com quem o ReB falou numa chamada adiada três vezes e por fim truncada em 10 minutos, voltará a lamber os bigodes de Portugal.
Pelo que soube, estás em Newcastle upon Tyne. O que se faz por aí, além de se ser importunado por jornalistas?
Não sei. Sentar-me no camarim, tentar não comer em demasia [risos] e tomar uma chuveirada. Lavar os tomates é sempre um sinal de humanidade.
Como está a ser esta digressão, ancorada ao álbum It Is What It Is?
Ainda só fiz um concerto e, para já, está a ser fixe. A energia é diferente.
Tinhas estado parado algum tempo, certo?
Fiz alguns concertos pela América, no final de 2021, não tanto pela Europa. Sinto que [pausa]… estou a ter um peido mental. Por ser um regresso à Europa, está a ser muito agradável, de verdade.
Tentei adivinhar qual seria o alinhamento no Sónar [Lisboa], mas ainda não há nada no setlist.fm…
Ainda bem.
No último concerto de 2021, o teu encore era a “Funny Thing”. Esperavas que essa canção provocasse uma explosão de streams no Spotify?
Não sei o que pensar disso. Seria bom se esses números se traduzissem de facto… se me dessem um dólar por cada stream [risos], se me rendesse alguma porra. E é óptimo. Fico feliz que as pessoas apreciem essa canção.
Estava um pouco atarantado, confesso-te, a planear esta entrevista — não tem outro fundamento a não ser [a tua paragem pelo Sónar]. Proponho-te uma breve retrospectiva sobre a tua discografia, começando pelo The Golden Age of Apocalypse de 2011. Como foi reeditá-lo no passado mês de Novembro?
Muitos dos meus álbuns parecem-me pitorescos: são como registos fotográficos de momentos da minha vida. Pensando [no Golden Age] como um livro de memórias, foi bom voltar a ele, porque me avivou uma panóplia de sentimentos… como o meu amigo Austin Peralta ainda em vida e trabalhar nesse disco. As pessoas que trabalharam comigo [durante essa era] são, até hoje, alguns dos meus amigos mais chegados. Deixa-me felicíssimo que esse álbum exista, por evocar essas amizades.
O Apocalypse [segundo álbum de Thundercat, lançado em 2013] também fará 10 anos em 2023. A comemoração trar-nos-á também uma edição limitada em vinil?
É possível. Não sei, poderá ser algo diferente, mas é muito possível.
Musicalmente, ainda te recordas do que pretendias com a transição do Golden Age para o Apocalypse?
Julgo que essas coisas não me ocorrem dessa forma compartimentada. A música e as emoções andam de mão dada: aquilo que eu senti tornou-se [o disco]. A mensagem é exactamente aquilo que eu estava a dizer, a cantar e a tocar. Foi como uma montanha-russa sentimental para mim.
Se todos os teus discos plasmam experiências bastante intensas, penso que o Apocalypse será o mais profundo. Terei que fazer um parênteses pessoal: foi um dos discos que me desafiou e expandiu enquanto ouvinte, quando tinha 12 anos. Os discos dos teus irmãos mais velhos levaram-te à prática do jazz; os do meu irmão fizeram com que passasse de ouvir Katy Perry para ficar obcecado com a tua “Tron Song”.
Mas nós adoramos a Katy Perry!
Absolutamente. Qual o teu single favorito dela?
“California Gurls”. Adoro essa mulher. Conheci-a pela primeira vez, recentemente, num restaurante; tive um ataque de fã.
Ambas as vossas carreiras devem muito a gatos. Ela tinha a Kitty Purry como mascote, tu o teu Tron. Poderiam ter tido um encontro.
Mas penso que jurei nunca mais namorar com cantoras [risos].
Está casada com o tipo d’Os Piratas das Caraíbas! Em 2019, tocaste no Porto, pelo NOS Primavera Sound: estava prontíssimo, caso tencionasses ignorar a “Tron Song”, para fazer um pé de vento. [Thundercat ri-se] O que me aconteceu, depois, foi como o Roger do American Dad a alucinar em 3D após ouvir Barbra Streisand. Manténs a estratégia de, com os arranjos ao vivo, enfatizar o funk que há nas canções?
Acho que [os arranjos vão] sempre divergir da gravação. Não é uma estratégia, tanto quanto é somente a realidade: a música destina-se sempre a ser diferente em disco [em comparação com o] concerto.
Dá-te o dobro do trabalho: poderias simplesmente tocar a canção original, tal como está no disco.
Nunca farei isso.
É bom saber. [Thundercat ri-se] O que guardas de The Beyond/Where the Giants Roam, EP que editaste entre álbuns, em 2015?
Para ser honesto, parte de mim sente que esse disco deveria ter integrado o You’re Dead! [de Flying Lotus]: foi produzido na mesma altura, quando queria muito gravar um disco duplo com ele. A presciência dele, ou a perspectiva dele sobre as coisas [levou a que me dissesse] “não, estas coisas têm de existir em separado”. E funcionou! Não era um projeto demasiado maluco, ficou como um álbum entalado entre o You’re Dead! e o To Pimp a Butterfly [de Kendrick Lamar]. Muito do processo de composição foi nesses dois sentidos: eu estava a trabalhar nesses três projectos em simultâneo, basicamente. Não intencionalmente, foi só assim que aconteceu.
Em 2017, o Drunk sinalizou a tua ascensão… diga-se comercial. Se pudesses preservar apenas um deles, seria [a versão original] ou o Drank [versão chopped and screwed]?
Se tivesse de guardar apenas um, seria o Drank.
Acho que concordo.
Tu entendes, não é? O Drank parece-me ainda mais sonoramente correcto, [como se revelasse] o motivo ou a intenção por detrás das músicas.
Finalmente, o teu último disco — It Is What It Is, de 2020 — parece coexistir com o Apocalypse nesse espaço liminar entre groove e luto. Que desvio, se algum, tomarás para o próximo álbum?
Eu preferia não falar sobre aquilo em que estou a trabalhar, porque é isso que o torna mágico, sabes? Vamos ver o que acontece. Baseia-se naquilo que estou a sentir.
E se mo pudesses descrever da forma mais abstracta, indecifrável de sempre?
Uh… não sei, meu [risos]. Não conseguiria descrever-to. Ainda não foi concebido.
OK, OK, então… quando é que vais gravar um disco com a Ariana Grande?
Sabes que mais? Um dia destes, um dia destes, meu.
Ou gravar um disco de R&B elementar, tipo Thundercat meets Babyface.
Vamos chamar-lhe Babycat. A capa podia ser uma fusão das nossas caras, na forma de um gato — seria como a capa de um filme de terror [risos], um antigo do Dario Argento.
Um filme de culto, um midnight movie.
Com tetas esquisitas e cinzentas.
Finalíssima questão: entras num episódio recente da série The Book of Boba Fett, dentro do universo Star Wars. Já viste o meme em que sobrepõem à tua cena a música do anúncio “Você Nunca Roubaria um Carro”?
Yeah, yeah, yeah… o anúncio anti-pirata do princípio dos DVD? [risos] Hell yeah, isso é tight. “You wouldn’t steal a car, so why would you pirate a DVD?“
Houve alguém a dizer “you wouldn’t Thunder a Cat“.
Meu Deus.