LP / CD / Cassete / Digital

The Weeknd

Dawn FM

XO / Republic / 2022

Texto de Pedro João Santos

Publicado a: 04/02/2022

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E agora, para algo radicalmente novo, vamos falar do revivalismo dos anos 80. 

Alerta à navegação e à quarta parede a partir-se: nasci em 2001, pelo que, se lhes topo a brilhantina e a sebosidade com iguais doses de encanto e horror, é porque eu próprio vivo um revivalismo oitentista, desde que tenho memória de ter memória. Viagem de carro para o Algarve? Auto-rádio a retumbar, pela certa, com uma compilação pirata do meu pai: Michael Jackson, Laura Branigan, F.R. David, Alphaville e, em piores dias, Queen. Tardes em casa, com a programação-em-morte-cerebral da VH1: primetime para a doutrinação de teclados foleiros, funk sintético e power ballads.

Por tudo isto, não me aflige que sejamos todos figurantes no filme Anos 80: Para Sempre. Assusta-me, quase um ano depois de After Hours, estar a escrever sobre mais um The Weeknd Sings the Eighties? Bom, é inquietante que a personalidade musical de Abel Tesfaye continue compactada em pastiches em modo turbo e masculinidade tóxica — o que não é assim tão diferente de House of Balloons, quando era r&b letárgico e masculinidade tóxica. Mas isso não é atrito para o vector que o empurra na direcção de estádios (e que – guardem as vossas lágrimas – obrigou ao sacrifício de um esgotado Altice Arena).

Maldito mundo pós-banda sonora de Drive (2011). Dawn FM arranca com um estrondo de cinco mega-hiper-êxitos – se não se concretizar aqui, deste lado do comprimido azul, pelo menos, é uma descarga de euforia pronta-a-inalar. Já há aqui alguma diferença. After Hours farejava os tons menores, o som melancólico das madrugadas em dor. Conforme a sua personagem ensanguentada se forçava a uma catarse de pecados, mais pulsante se tornava o refrão (um deles, aliás, foi condecorado pela Billboard como o maior êxito de sempre nos EUA). 

Neste sucessor, apesar da estabilidade da potência, é mais forte o pêndulo entre purgatório e libertação. Eis aquilo a que se chama O Conceito: morremos, encontramos o volante de um carro. Enquanto isso, anoitece em certas regiões, mas não no nosso destino: a lux æterna do perdão. O auto-rádio entretém-nos, com a emissão da 103.5 FM, narrada por um Jim Carrey; o fluxo de synthwave cavernoso permite saber que não estamos em Lisboa, onde essa frequência corresponde à Smooth FM.



Universo bem esgalhado, o desta rádio: tem Carrey como locutor (mais em registo The Number 23 do que Bruce Almighty), jingles e anúncios preocupantes pelo meio. Não é um leitmotiv, é só uma desculpa para coleccionar grandes melodias e estribilhos; em unidade, são como um rolo fotográfico a revelar, lentamente, novos ângulos sobre um trauma psicossexual. Nada sugere que haja aqui uma cronologia, ou um enredo certo. Mas a qualidade de controlo de Tesfaye, como em After Hours, volta a ser grotesca: passarão 12 faixas (vá, excepto “Starry Eyes”) até chegarmos a um refrão mais fracote; mesmo aí, a composição dá-nos sempre algo a que nos podemos agarrar. É uma rádio gloriosa, onde o pastiche de Weeknd reluz com cara patusca. Vejam-no afiambrar-se à soul aveludada dos DeBarge para “Out of Time”, ou apropriar a quieta catarse pop dos Roxy Music para “Less than Zero”. 

No que concerne a vendas e streams, Dawn FM não está a ser o meteoro que foi After Hours. Nem “Take My Breath” replicou o petardo de “Blinding Lights”, talvez pela simples lei da sobrexposição (alguma vez nos saiu da frente, desde 2019?). Mas continua à frente no campeonato e há-de continuar. Então… em que pé ficamos com a pop revivalista? Aproveito para traduzir irresponsavelmente uma passagem de Sukhdev Sandhu na sua crítica a Retromania: Pop Culture’s Addiction to Its Own Past, de Simon Reynolds:

“A crença de Reynolds, de que a música pop deve estar menos cativa do passado, lembra-me do economista Joseph Schumpeter, que entendia a destruição criativa como o pilar do capitalismo moderno. O atractivo da pop não recai apenas na sua capacidade para chocar e surpreender; pode funcionar também como fonte de segurança e socorro, especialmente quando a vida – a vida sob capitalismo – é traumática e embrutecedora. Para os ouvintes, não abraçar a Próxima Grande Cena pode constituir um tipo de resistência (…)”

O revivalismo insondável pode ser o inimigo, pode – e não é só The Weeknd, já é raro um álbum contemporâneo não trazer uns toques de synthwave. Mas um uníssono tão grande em torno de uma estética deve fazer-nos questionar o dogma. Pode não haver forma de resolver o impasse crítico, a tal neofilia que Sandhu refere, mas talvez nos alivie pensar neste arco narrativo da pop de forma diferente: e se não for um movimento, mas um estilo permanente? 

Se a patine dos anos 80 se dissolver de uma vez por todas na paleta com que se pinta o mainstream… Ó p’ra ela, com as suas guitarrinhas gelatinosas, a caixa de ritmos com consistência de pudim, a fundir-se em tudo o que é matéria radiofónica, hino a gritar. Para quem continue atento ao mundo, além dos seus discos da adolescência, talvez nos acompanhe até ao purgatório. Não gostam? Ninguém disse que a vida (depois da morte) era justa.


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