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Fotografia: Caroline Lessire
Publicado a: 15/09/2021

A banda sonora certa para lidar com ano e meio de frustrações pandémicas, ou não, acumuladas e ventilar as ideias por meio do movimento.

The Bug: “Quis fazer algo que fosse puro no seu impacto”

Fotografia: Caroline Lessire
Publicado a: 15/09/2021

Sete anos volvidos desde Angels & Devils, depois de uma crise sanitária que fez estalar o verniz que reluzia sobre um fino e frágil tecido económico e social, depois das mais desumanas manifestações políticas da nossa geração desde os tempos Thatcher-Reagan, Kevin Martin volta a convocar as suas hostes de MCs com o propósito único de inflamar sensações e invocar a catarse pós-trauma. O mundo parece regado a gasolina, e Fire é a ignição de que precisávamos para consumir o combustível que alimenta a frustração e converter tudo o que borbulha em energia pura. É, pelo menos, essa a forma em que o novo disco de The Bug se propaga, convertendo ondas de som em fúria cinética, numa aula de física elementar, mas de eficácia inquestionável. Sabe-se o comprovado: as leis de Maxwell, encapsuladas no conceito de entropia, ditam que transferência de calor é de sentido único ascendente. E isso é Fire.

Num recentrar de foco, depois de explorar várias formas de dub, ambient e industrial ao longo dos últimos anos, o produtor britânico largou um conjunto coeso, monolítico e devastador de canções, um catalisador de paixões que cruza a força rítmica do dancehall, a raiva do punk e soberba do volume com raga, rap e spoken-word de alguns dos mais dotados MCs que as ruas poderiam gerar. Quando Moor Mother vocifera “Who told you to come for me?/ You better run from me”, não é por exibicionismo – é que a norte-americana, empurrada pelas paredes de frequências sonoras de Bug, faz mais do que cuspir rimas e vocalizar ímpetos belicosos. “Motherfucker I’m vexed” é algo que todos sentimos, mas, quando proclamado por Moor Mother sobre um riddim de Martin, o impacto é diferente: “Estou sempre a perguntar-me – como é que levo as pessoas a ficar ainda mais descontroladas? A reação [à minha música] que quero é ‘WHAT THE FUCK’.”

Isto é o que se lê no comunicado da Ninja Tune, selo responsável pela edição do sexto disco a solo de Kevin Martin enquanto The Bug (pelas nossas contas; sejam pacientes com a aritmética empregue), sucedendo à experiência dub ambiental com a artista noise Dis Fig e ao ambivalente Angels & Devils. Em entrevista com o Rimas e Batidas, Martin foi um pouco mais fundo na forma como Fire pode ser um veículo desta ideia, reflectindo sobre o seu passado punk, a sua infância em Weymouth, e em como a vida o levou a procurar na música um escape: “para mim, música sempre foi terapia. Enquanto adolescente, não era só a unidade familiar que me parecia estar mal, mas a sociedade como um todo. Isto coincidiu com o surgimento de música muito interessante, desde Crass às cenas da Rough Trade, da Industrial [a label dos Throbbing Gristle]. Era educacional. Não havia Internet na altura, então tínhamos de trabalhar no duro para chegar à informação toda. Com estes artistas como os meus ‘leitores de notícias’, percebi que a música pode ajudar-te emocionalmente e que essa necessidade de protesto através da arte é muito importante.”

É, de resto, uma formação que ainda acompanha o produtor inglês, que se diz vegetariano há muitos anos devido à influência dos Crass na sua pessoa — em entrevista ao The Guardian, Martin diz que a banda punk foi a sua BBC e a sua CNN. “Ainda me considero um pacifista devido aos Crass. E era muito perigoso ser pacifista onde eu cresci — uma vila chamada Weymouth, circundada por uma base naval, por uma base da força aérea e por uma base do exército. Basicamente, se tivesses o aspecto de um punk, como eu tinha, e fosses politicamente vocal, contra o status quo e contra a Grã-Bretanha (o que quer que isso seja) eras um alvo. Levei algumas tareias. Estes idiotas patrióticos que estavam nas forças armadas partiram-me o nariz, atiraram-me janelas dentro…”

A sua música, apesar do impacto inerente ao volume descomunal com que a larga sobre MCs, público e tudo o que possa sentir vibrações (não serão poucos os que se recordam de The Bug em Barcelos, no Milhões de Festa de 2014, como uma experiência tão física quanto auditiva, e verdadeiramente marcante), afigura-se como uma antítese deste tipo de sentimentos: “Fico completamente gelado quando me adjectivam como ‘duro’ ou ‘mau’ [mean]. Para mim são adjetivos que descrevem heavy metal ancestral e machismo cego. Fire é sobre paixão, raiva, frustração, protesto… isso não é masculino. É algo global e que atravessa géneros e culturas”, explica-nos.

Prova da heterodoxia do tipo de energias que canaliza são as suas colaboradoras, cuja força problematiza polarizações binárias simples. Da israelita Miss Red, que se insurge contra os seus tempos no exército, a Felicia Chen aka Dis Fig, cujas produções próprias navegam o noise, o ambient e industrial abrasivo, não há um denominador cromossomático, hormonal, ou de género que paute as pessoas com que Martin se rodeia. “A Warrior Queen é mais masculina no seu mindinho do que eu alguma vez serei [risos]. Mesmo a Moor Mother e a FFSYTHO são muito pouco ortodoxas e nada cliché enquanto mulheres.”

A definição do que será Fire, então e na visão do produtor, acontece tanto pelo que crê que o disco é tanto como por aquilo que diz não ser. “Este álbum não é suposto ser masculino. É suposto ser global, porque aborda preocupações globais” será a descrição mais clara do álbum, a par da necessidade de catarse que, de resto, caracteriza toda a música de Kevin Martin, da necessidade de libertar frustrações acossadas por disparidades sociais e económicas crescentes. “Fire é o disco mais abertamente político que fiz, mas não foi feito para se alinhar politicamente com ninguém. É um álbum político de um indivíduo — eu mesmo — e das pessoas que eu convidei, para ilustrar o que há nas nossas vidas. É uma plataforma para protestar contra como sentes que a vida está contra ti, e o quão impotente isso te faz sentir. A sensação prevalente do último ano e meio é este novo inimigo oculto, bacteriano, que não se vê, perante o qual nos sentimos paranóicos e incapazes. No entanto, quando há três anos comecei este disco, os inimigos eram-me claros: os inimigos populistas que estão votados a destruir este mundo motivados por razões muito egoístas. Ver pessoas como o Trump, o Johnson, o primeiro ministro italiano, ou o presidente brasileiro, todos a fazer o seu melhor para alimentar ideias racistas… parecia que o mundo estava completamente fora de controlo até antes da pandemia.”

Ou seja, continua a ser muito claro o que Fire é, de facto: “Eu queria fazer um disco que fosse cheio de ‘vão-se foder’. Um grande prato de ‘vão para o caralho’ e ‘vão-se foder’. Era assim que eu me sentia em relação ao mundo. Foi desse grito individual na cara do horror que o disco veio. Eu escolhi os colaboradores, dei-lhes uma directriz e abertura para a interpretarem como quiserem: usem esta plataforma para escrever sobre as contrariedades que encontram no dia-a-dia, o que vos fode quotidianamente.”



[Geopolítica e proliferação]

Este último álbum não é passível de descontextualização, não apenas pela energia que carrega, pelas mensagens que veicula, mas também pela altura em que é lançado, e pela situação que The Bug vivia aquando da sua produção. “A mudança para Bruxelas revelou-se de ironia enorme, porque aconteceu devido à sua centralidade, facilidade para viajar e de como se iria relacionar com a minha vida profissional, enquanto pessoa que põe o pão na mesa da minha família. Nós mudámos no dia anterior a fecharem as fronteiras, um mês antes do que tínhamos planeado, mas eu senti a catástrofe a pairar. Um mês depois e perdíamos casa e o estúdio em Berlim, a casa em Bruxelas… foi assustador, foi como uma evacuação em tempo de guerra. Não dormimos durante quatro dias a tratar das mudanças, em pânico, paranóicos, muito instáveis. Mudámos para um apartamento sem qualquer mobília por causa do confinamento severo. Durante meses, não nos foi possível mobilá-lo, porque não havia lojas abertas. Foi uma experiência enlouquecedora”, desabafa. Sentimentos que todos entendemos, mas que se dobram em perspectiva: “Quando vês o meio de subsistência desmoronar, os teus rendimentos a desaparecer instantaneamente, só com aquele medo de não conseguir pagar a renda ou alimentar-nos aos quatro, foi assustador e teve um grande impacto na música que fiz. Fire é muito esta vontade de ventilar, de gritar no vazio, e muito movido pela falta que sentia de tocar ao vivo, de interagir socialmente com alguém. Houve tantas emoções em Bruxelas que afectaram o disco, mas não de forma óbvia. De uma forma profundamente psicológica e emocional.”

A eficácia dos vários golpes de som desferidos também se prendem com foco, ou com falta de, ou com a capacidade de dispersar as distrações que movem Kevin Martin. Diz-nos que, nos últimos anos, foram cerca de 10 discos a solo a que o produtor se dedicou paralelamente ao desenvolvimento deste. Foram, provavelmente, os seus anos mais evidentemente prolíficos, mais ainda do que nos anos 90, em que dividia tempo entre God e Techno Animal e começava a congeminar os primeiros movimentos enquanto The Bug.

Em nome próprio, Kevin Richard Martin lançou Sirens, uma reflexão sobre os tempos perturbadores que viveu após o nascimento do seu filho e o internamento, de vida ou morte, que se lhe seguiu (e que correu da melhor maneira, avise-se os navegadores sensíveis); este ano já cunhou, por via da Phantom Limb, Return to Solaris, inspirado pela história de Lem e a interpretação de cinematográfica de Tarkovsky; enquanto Zonal, Martin reavivou as chamas de Techno Animal e a sua colaboração com Justin Broadrick (Godflesh, JK Flesh, Jesu) para um LP com Moor Mother ao microfone; há dois, no limiar da pandemia, também reactivou King Midas Sound, o seu projecto que cruza dub e ambient com a poesia de Roger Robinson, para lançar Solitude; e, se recuarmos uns míseros quatro anos, ainda contamos a colaboração com o lendário Dylan Carlson, anti-agitador e fundador dos seminais Earth, em Concrete Desert. Tudo isto sem contar com In Blue, disco supra-mencionado criado em colaboração com a norte-americana Dis Fig. 

Os vários emissores abriram caminho para Fire lavrar terreno numa direção muito específica e focada: “quis fazer algo que fosse puro no seu impacto, implacável, super intenso e um peso pesado em todas as suas formas, do princípio ao fim. Pelo título, nas muitas definições do que fogo quer dizer, e alimentado por paixão. É um disco positivo, apesar de vivermos tempos cada vez mais negativos. Para mim, é o disco mais coeso que alguma vez fiz”, contou ao Rimas e Batidas.



[Rebeldes e originadores]

Os louros da reacção muito positiva que tem recebido, tanto de fãs quanto de crítica, The Bug divide-os com a sua armada de MCs, cujos talentos a vociferar rimas e a escrevê-las muito lhes admira. Martin conta ao Rimas e Batidas como “[tem] o mais profundo respeito pelas pessoas com quem [colabora]”. Uma admiração que não é difícil de entender, principalmente quando se fala de vocalistas do calibre dos que listamos a seguir, só no caso de Fire: Flowdan, Manga e Logan, das paragens mais grime das rimas, FFSYTHO em representação do rap, Irah e Daddy Freddy vindos do dancehall e com um exímio raga, e os artistas de spoken-word Moor Mother, Nazamba e Roger Robinson. “Não os mereço. Sinto-me honrado, lisonjeado, mas também [com] um certo desejo competitivo, em que os quero lixar musicalmente, criar algo que os faça trabalhar a sério, suar as estopinhas e os inspire. Quero que se sintam tão inspirados pela minha música quanto eu me sinto pela deles.”

Esta é a realidade de Bug, em que a envolvência de som e volumes de decibéis fisicamente demolidores surge como uma realidade única para estes performers, vindos de diferentes contextos: “Muitos destes MCs estão habituados a dominar sistemas de som, em que eles cospem rimas por cima de backing tracks — e estas costumam ser muito lineares. É completamente aceitável, é fixe, é entretenimento que se compreende. Os meus concertos são um contexto em que eles são postos à prova, de tortura sónica para eles. O Manga disse-me que nunca tinha experienciado algo semelhante e que só o volume e ruído dos espectáculos foram um choque. A Warrior Queen disse-me claramente que nunca tinha vivido uma situação semelhante a um concerto comigo, e que adorou fazê-lo. O Flowdan é um gajo duro, muito hardcore, tem uma carapaça protectora à sua volta, e isso leva-me a crer que se ele não gostasse da batalha que temos ao vivo, ele não aceitaria fazer parte dela.”

Isto, contudo, não é explicação suficiente para o que acontece numa actuação de The Bug. Não vos mentimos: o volume é, de facto e sobretudo, físico, mas a maneira como o som se mexe à volta de cada MC é singular. Tanto se move para vergar os membros da audiência, como abre um espaço tão claro para os vocalistas cuspirem rimas que permite que a sua arte nunca colida com a de The Bug. É possível ouvir-se Flowdan a debitar barras com a música quase em surdina e ser-se arrebatada, segundos depois, pela chegada impactante de um refrão num vendaval de som. “Num contexto ao vivo, a música deve ser ouvida e sentida de uma forma diferente do que se faz em casa, ao ouvir um disco. À parte da questão óbvia do volume, deve ser uma sensação diferente. É uma abordagem diferente”, diz-nos Martin, para que dúvidas não restem.

No fim, o corpo ressente-se — e os tímpanos agradecem a dinâmica. Já os vocalistas, nem todos podem estar tão gratos: “Tenho a certeza de que se iam rir se lhes dissesses que crio uma zona de conforto para eles cuspirem rimas, porque não acho que eles sintam isso. Excepto a Moor Mother. Ela está habituada, vem do punk. Mesmo ela disse-me que tem de entrar num estado mental específico para actuar comigo, por ser tão assoberbante. Eu acredito mesmo que alguns MCs com que trabalhei não gostaram da experiência, e outros gostaram muito. Por isso me sinto tão afortunado por ter encontrado vocalistas que respeitam o que eu estou a tentar fazer tanto quanto eu respeito o que eles fazem.”

É por isso, também, que os seus discos mais orientados para o dancefloor são feitos para vocalistas específicos, e com o intuito de tirar o melhor deles: “Quando estou a trabalhar em riddims, eu faço-o a pensar especificamente nessas pessoas. Muitas vezes, o que acontece na música electrónica é essa situação de ‘rent-a-rapper’, em que alguém é contratado e não tem ligação à música, e parece-me, frequentemente, que ficou a meio”. Tal não acontece com The Bug, muito menos em Fire. A faixa que sucede à de abertura, “Pressure”, é implacável desde os primeiros segundos, com um som que não difere muito de um avião a sobrevoar-nos a cabeça, abrindo espaço para uma pequena amostra do que será o sub-grave prevalente durante toda a música e sobre a qual o fluir de barras único de Flowdan opera milagres — uma descrição vívida de um mundo cinzento; o regresso de Irah em “Demon”, em que as linhas melódicas se multiplicam em diferentes frequências e permitem a Martin activar diferentes partes do corpo unicamente pela propagação da mente — demoníaca é uma nomenclatura ajustada —, compõem a cadência certa para bitonalidade vocal do MC e para a sua ascendência genética em dancehall. Não é por acaso que The Bug se sente atraído por “rebeldes e originadores” como uma traça pela luz. Não é, também, por acaso que eles encaixam na sua música como luvas: “é bonito trabalhar com alguém de outra área e encontrarmos uma forma de nos acomodarmos mutuamente.”

“Vexed”, vocalizado por Moor Mother, insurge-se num andamento mais pausado, mas as vibrações que ecoam as frequências graves dão a sensação (ou um simulacro) de terramoto que só um concerto de Martin consegue provocar — e a verborreia furiosa da poeta de Filadélfia impõe o respeito que o riddim pede. Os exemplos sucedem-se, mas seria impossível não destacar ainda a prestação da estreante FFYTHO (diz-se “for fuck’s sake why though”) em “How bout dat”, com os sinos a marcar a harmonia em que a linha de baixo lugubremente se desenvolve e a pintarem um cenário negro, ajustado para a sua ginástica lírica e fúria.

A heteronomia dos vários vocalistas com que trabalha conferem-lhe possibilidades infinitas, para as quais só o tempo é um real obstáculo. “Ganja Baby”, aqui interpretado pelo lendário MC jamaicano Daddy Freddy, é virtualmente o mesmo riddim que “Diss Mi Army” com Miss Red. “Eu apaixonei-me pelo estúdio, o equipamento, o ambiente e a bruxaria porque mantém a música infinita e eterna. Não a limita à finitude. O meu amor pela música dub está também ligado ao facto de se poder reinterpretar faixas repetidamente, e retrabalhá-las completamente. É desafiante reinventar uma peça de música. No fim de contas, o meu grande inimigo é o tempo, e o como justificar regressar a faixas antigas quando tenho de trabalhar em faixas novas. Nunca há tempo que chegue num dia para mim.”

Numa altura em que o controlo sobre nós se aperta, em que clivagens aumentam, Fire não é uma resposta, mas é o grito de que todos precisávamos. Todos sentimos a necessidade de libertar ano e meio de tudo e mais alguma coisa acumulada na cabeça e no corpo. The Bug deu-nos um meio. Não se trata do que a música nos diz, mas sim de como convertemos a energia que veicula. Por enquanto, a imaginação permite-nos imaginar paredes, chão, colunas e corpos a vibrar com som, e os desejos apertam-nos com vontade de nos movimentarmos pelos monólitos de som com que se faz um concerto de The Bug.

“Se o London Zoo foi o disco certo na altura certa, por ter sido sugado para o sucesso do dubstep com o som que apresentava, o Fire é o disco certo na altura certa de um ponto-de- vista filosófico. Todos precisamos de libertar a tensão acumulada ao longo do último ano e meio”, remata Kevin Martin.


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