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Fotografia: Vera Marmelo / Jazz em Agosto
Publicado a: 02/08/2023

Não há solavanco que abale este trio.

The Attic no Jazz em Agosto’23: livres e coesos

Fotografia: Vera Marmelo / Jazz em Agosto
Publicado a: 02/08/2023

Uma das maravilhas do Jazz em Agosto é a possibilidade que o jardim da Fundação Calouste Gulbenkian oferece de, durante a tarde e entre os patos e a vegetação, enquanto se lê um livro, conversa com amigos ou simplesmente se recebe a luz do sol, escutar os ensaios de som dos concertos que pela noitinha hão-de tomar conta do fabuloso palco do Anfiteatro. E ontem, quem porventura o tenha feito, sabendo já ir marcar presença na apresentação do trio The Attic de Rodrigo Amado, Gonçalo Almeida e Onno Govaert, não poderia ter antecipado os problemas técnicos que haveriam de marcar o concerto. Quando os músicos, com passo decidido, entraram em palco, pontualmente, pelas 21h30, tudo estava como planeado: instrumentos e microfones bem próximos no centro do palco, quase reforçando a ideia de que esta é uma unidade composta por três partes, uma célula indivisa de criadores que privilegiam essa proximidade porque comungam de uma mesma linguagem e de uma idêntica intenção.

E foi perante uma plateia praticamente esgotada e sob um céu estranhamente mais tranquilo do que o habitual (os aviões devem-se ter todos organizado para aterrarem antes do arranque oficial das Jornadas Mundiais de vocês sabem o quê) que o concerto arrancou.

Coube a Gonçalo Almeida as honras de introdução à performance do trio: o seu contrabaixo, com cordas gentilmente friccionadas com arco, mostrou-se de tom fundo, sério e expansivo, gerando um espesso drone que se contorceu pelo ar nocturno, estabelecendo uma ampla fonte de graves capazes de oscilar entre os dois lados da tonalidade com a sólida classe que há muito se reconhece ao contrabaixista e que tanto contribuiu para os aplausos que justamente foram devotados a Love Ghosts, o álbum que o trio lançou o ano passado na No Business Records e que serviu de passaporte para a edição deste ano do Jazz em Agosto.

Com Love Ghosts, este trio coleccionou, de facto, entusiásticas críticas — tanto nacionais quanto internacionais. Resultado de um reconhecido percurso discográfico iniciado com um homónimo registo em 2017 — trabalho em que à bateria se sentava ainda o português Marco Franco — e prolongado depois, já em 2019, com Summer Bummer, o álbum em que primeiramente surgiu o baterista holandês Onno Govaert.

Nesses trabalhos, mas sobretudo nas muitas apresentações que deles derivaram, Amado, Govaert e Almeida foram aperfeiçoando uma notável capacidade de entendimento comum, de destemida vontade de busca, de telepática comunicação e de conforto assumido pelos espaços criados entre os diferentes instrumentos e, num plano mais, digamos, psicológico, entre as diferentes personalidades de cada um que os podem levar a apresentar discursos bem personalizados e diferenciados.

Tudo isso se sentiu nos primeiros momentos do concerto de ontem: Rodrigo Amado entende-se bem num espaço sem conforto harmónico, sabendo que o seu musculado saxofonismo fica mais exposto. Mas a sua singular abordagem a esse “problema” — que passa por gerir a alternância entre momentos de maior ferocidade e outros de mais poética reflexão — é a garantia de que esta clássica triangulação instrumental não só continua a funcionar e a dar criativos frutos, mas ousa até soar fresca e nova, como se de cada vez que abre a alma, Rodrigo fosse capaz de surpreender até quem tenha da sua música o mais profundo conhecimento.

Outra característica de Rodrigo Amado é a sua generosidade. Quando se remete ao silêncio, não é para recuperar fôlego, antes para escutar os discursos dos seus companheiros, oferecendo-lhes todo o espaço do mundo. Mas mesmo quando os seus olhos contemplam o chão e o seu tenor repousa em posição de descanso, é possível ver os seus dedos a “trabalharem” incessantemente, dedilhando as teclas como se estivesse a tocar um baixo em uníssona solidariedade com os outros músicos do trio. Só por não fazer soar o seu instrumento, parece dizer-nos, um músico não deixa de trabalhar ao lado dos seus companheiros. E quando entra “na zona”, todo o seu carisma vem ao de cima, todo ele nervo e alma exposta, um corpo que não teme atirar-se ao abismo porque tem sempre a certeza de cair de pé. Estranho até pensar, como ele mesmo frisou, que tenha ontem sido a sua primeira vez em tão importante palco.

A dada altura, porém, Gonçalo Almeida começou a debater-se com problemas de som. Mexeu no microfone acoplado à ponte, mas o problema não parecia vir daí, nem do amplificador. O momento seguinte do concerto começou em diálogo entre Amado e Govaert, sábia decisão enquanto Almeida procurava descobrir a origem do problema no som do seu instrumento. Govaert é um belíssimo baterista, capaz de entrar e sair da marcação temporal, de se libertar de cadências reconhecíveis e de embarcar em grooves que acabam sempre por implodir nas suas mãos, ecoando a expressiva inventividade que escuta nos seus companheiros.

Quando “reentrou em cena”, após desligar o pedal que parecia estar na origem dos seus problemas de som, Gonçalo Almeida voltou ao arco, mas sem o processamento que lhe dava todo o corpo com que começou por se apresentar, o seu contrabaixo soou mais clássico — no sentido Salzburgo do termo, não Nova Orleães… —, menos presente, e menos capaz de lidar com o que aquela música exigia. E isso tirou-lhe, natural e compreensivelmente, o foco: o suor que limpou algumas vezes da face traduzia, decerto, a frustração com a situação, fazendo lembrar um outro momento nesse mesmo palco, em 2019, em que Marc Ribot também se deixou afectar por um problema no amplificador da sua guitarra, sendo até obrigado a sair de palco e interromper a apresentação.

Durante uma boa parte do concerto, o contrabaixo de Almeida remeteu-se a um lugar sónico mais discreto, desprovido da força que o músico esculpe através do seu processamento. E, em certo momento, o seu arco serviu até para ensaiar um lamento de tonalidades bluesy, quase espelhando o que naturalmente lhe ia pelo pensamento. Mas quando este trio se encaixa, quando as nuvens se afastam e todos estão plenamente investidos no momento, é coisa digna de se ouvir. A ideia de liberdade que o trio pratica está sempre imbuída de uma natural musicalidade, revelando-se na sua coesa unidade a sua maior força, a capacidade que têm de resolver as complexas equações que enunciam com uma elegância sempre renovada, algures entre uma abordagem mais clássica e conforme com a história e um corajoso e angular modernismo que os distingue e eleva e transporta para o futuro.

No final, aparentemente desligando a alimentação da corrente do seu pedal, Almeida parecia ter resolvido o problema e a presença do seu instrumento voltou a assumir o perfil tímbrico com que inicialmente se apresentou, de recorte nobre, com muita madeira e profundidade e capaz, portanto, de lidar com o perfil de cada um dos outros instrumentos. Os aplausos que se escutaram no final e que até motivaram um rápido regresso ao palco foram justa e solidária recompensa oferecida por um público entendedor ao trio que não desistiu e contornou as adversidades de forma profissional e, sinceramente, muito competente. Teria sido melhor se não tivesse acontecido? Claro que sim. Mas os grandes músicos encontram-se também nos momentos de maior tensão. E ao final de pouco mais de uma hora, Gonçalo Almeida, Rodrigo Amado e Onno Govaert provaram merecer cada um dos aplausos recebidos.

Da próxima vez — quem sabe já hoje, amanhã ou depois… — que numa amena tarde no jardim, entre patos e plantas, escutarem um ensaio de som, não esqueçam que tal como a vida, também os concertos acontecem independentemente dos planos e da preparação que os precedem. Como tem que ser. No final, os aplausos são sempre bem-vindos.


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