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Fotografia: Margarida Rocha e Silva
Publicado a: 14/11/2023

Décimo aniversário da 22a celebrado em pleno.

Tenderlonious com Horatio Luna no A L P H A B E T: um quinteto espacial para uma noite especial

Fotografia: Margarida Rocha e Silva
Publicado a: 14/11/2023

Por altura do décimo aniversário da 22a, Ed Cawthorne, aka Tenderlonious, anda na estrada a apresentar música da sua eclética editora. Na passada sexta-feira, 10 de Novembro, vimo-lo em Brighton, no A L P H A B E T, acompanhado de uma formação que se juntou propositadamente para este gig — “a hand-picked one-off line-up for a evening of improvisation and classic tracks from the label”, lia-se no cartaz publicitário do concerto. Impossível de resistir a uma proposta destas? Muito provavelmente…

Se é desafiador perceber como Cawthorne consegue conciliar os papeis de músico e gestor da 22a, com a vida familiar e um trabalho das 9 as 5, exercício menos exigente passará por perceber de onde vem a música deste south londoner de gema. Para isso, basta, com ele, conviver por breves instantes: o calão do seu vocabulário aliado a uma atitude sem rodeios contrastam com a exigência teórico-prática da música que produz e dos instrumentos que domina. Em nenhum momento sentimos estarmos perante universos ontologicamente separados; pelo contrário, exemplos deste tipo de personalidade singular são tão raros que somos imediatamente atraídos pelo seu magnetismo. E, claro está, é justamente dessa fusão entre uma certa urbanidade londrina e um conjunto de predicados musicais superiores que surge a música da qual Tenderlonious é autor.

A verdade é que reduzir a música da 22a ao reduto do jazz e associá-la predominantemente à ressurgência do jazz britânico nos últimos cincos anos é não só contestável como também injusto. Esta diversidade sónica da editora pode ser facilmente comprovada através de uma visita ao seu catálogo, disponível no Bandcamp, sendo que o concerto sobre o qual agora aqui escrevemos foi, também ele, prova viva dessa pluralidade musical. Aliás, a 22a é, acima de tudo, uma label de música urbana, com lançamentos que vão do grime ao hip hop, do house ao nu-jazz, do breakbeat à soul. Além disso, andava já Tenderlonious interessado em explorar o jazz modal de fusão quando esta música ainda não desfrutava do interesse renovado que hoje em dia o grande público lhe dedica (recordemos que Two For Joy dos seus Ruby Rushton foi gravado em 2011). 

Atestam, por isso, estes factos duas premissas fundamentais para pensar a música de Ed Cawthorne e da sua editora. Primeiro, que é música eclética, que rejeita catalogações definitivas e se permite a constantes contaminações cruzadas. Segundo, que Tenderlonious é um artista alinhado com o autêntico, mesmo que isso tenha implicado que, durante algum tempo, se tenha movido predominantemente em circuitos underground (afirmar que tal ainda é verdade, depois de toda a atenção que lhe foi dedicada nos últimos anos, não seria de todo factual, apesar de concretamente haver uma tendência declarada para o fazer, além de uma certa relutância, por parte de certos circuitos de jazz londrinos, relativamente à assimilação total da sua música).

Percebe-se, por este elencar de factos e opiniões, que, de facto, houve muito para celebrar em Brighton na passada sexta-feira. Afinal, são dez anos de 22a, os quais se traduzem em cerca de quatro dezenas de lançamentos. A abrir as hostes da noite, a qual teve o alto patrocínio da recomendável loja de discos local Rarekind Records, estiveram DJs da Mr Bongo, renomada editora da casa, e Dennis Ayler, outro companheiro de longa data de Tenderlonious (8R1CK C17Y, quem se lembra?). Ao longo de pouco mais de duas horas, rodaram-se pérolas que foram do jazz ao rock progressivo, sempre em vinil, aquecendo a plateia para uma noite que se antecipava de festa.

E se o elenco que se juntou em palco a Tenderlonious (flauta transversal, saxofone soprano e sintetizador) foi escolhido a dedo, as caras que compuseram o grupo não foram de todo desconhecidas: no baixo elétrico, esteve o australiano Horatio Luna, afiliado do coletivo 30/70 e membro de Lush Life, John Henderson e Teymori (lembram-se da “The Wake Up” que também assinou para a compilação da Brownswood Recordings Sunny Side Up?); na guitarra, o italiano Lorenzo Morresi, que em parceria com Tenderlonious assinou trabalhos como COSMICA ITALIANA e ACQUA; nas teclas, Hamish Balfour, colaborador frequente de Tenderlonious (The Shakedown, You Know I Care, The Piccolo – TENDER Plays TUBBY, etc.); e, na bateria, Tim Carnegie, companheiro de tantas outras aventuras (Ruby Rushton, You Know I Care, The Piccolo – TENDER Plays TUBBY, etc.).

Deu então entrada em palco o quinteto para um primeiro set, no qual territórios jazzísticos mais tradicionais foram explorados através de incursões pelos territórios do post-bop e das fusões com a música de África e do Oriente distante. Logo nos primeiros minutos, Tim Carnegie presentou a plateia com um solo (sim, um solo de bateria praticamente a começar!), o qual denunciou toda a ousadia das dinâmicas que o grupo imporia à atuação. O baterista, que esteve sempre muito sólido e concentrado, foi um eixo vital para o grupo, definindo com precisão as rotações pelas quais os restantes instrumentistas se regeram. Acompanhou-o Hamish Balfour, também ele bastante compenetrado no momento, que harmonizou impecavelmente os temas ao comando de um Nord Stage 3. Mais expansivos estiveram Horatio Luna – uma verdadeira máquina de groove, eletrizante e de enormíssima qualidade, que contagiou os presentes com as suas linhas redondas e pungentes — e Lorenzo Morresi — que ora se juntava a Balfour nas harmonias, ora divergia para solos, e soube espargir com a dose certa de soulfulness os temas apresentados.

Tenderlonious, também ele, precisou de mostrar pouco para comprovarmos estarmos perante talento imenso: quer na flauta, quer no saxofone soprano, é um deleite ouvir as melodias que, com naturalidade, saca dos instrumentos; quando pega no sintetizador, viajamos sem esforço ao som dos fragmentos cósmicos que convoca a partir de galáxias vizinhas. É um músico distinto, ainda que tenha estado algo ausente e distante durante toda a atuação, evitando a todo o custo cruzar olhares com a plateia. Este não foi seguramente o concerto da vida de Tenderlonious, e percebemos, mais tarde, em conversa com ele no backstage, que acontecimentos de foro pessoal lhe afetaram a performance. Apesar de tudo, e se esta é a “pior” versão que podemos encontrar de Tenderlonious, está garantido que mesmo em momentos de menor entrega o músico consegue ser um líder competente e um instrumentista de mão cheia. 

Após uma breve pausa, o quinteto regressou a palco para um segundo set, desta feita mais housy e upbeat. E se na primeira parte o quinteto levou-nos a saborear um lado mais formal e refinado da música da editora, menos focado em grooves e loops, a segunda parte foi a verdadeira cereja no topo do bolo, com a plateia a responder positivamente ao convite para a dança, aproveitando ao máximo o espaço disponível. Ficou claro que o grupo como um todo se sentiu mais confortável neste registo, e nós agradecemos pelo momento de grande energia. À semelhança do que tinha acontecido no primeiro set, o concerto terminou de maneira um tanto abrupta. Percebia-se que algo não estava a cem por cento. Ainda se pediu por mais um tema, mas o quinteto já não regressou a palco.

Numa noite em que se ouviram músicas como “On The Nile”, retirado do recentíssimo álbum You Know I Care, “Gideon’s Way” do EP homónimo dos Ruby Rushton, “Habibi” e “Milestones” (original de Miles Davis) de Horatio Luna, ou “Cosmica Italiana” e “Doppio Sogno”, retirado de COSMICA ITALIANA, houve, acima de tudo, oportunidade para testemunhar a profundidade e amplitude do catálogo da 22a. Mesmo que esta não tenha sido “a noite” de destaque de Tenderlonious, o seu talento inato e as habilidades musicais de Horatio Luna e dos restantes instrumentistas estiveram num nível excelente. Foi um aniversário especial, celebrado por um quinteto espacial.


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