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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 18/09/2023

Regredir para progredir.

Tenderlonious: “Tive de perder algum tempo para encontrar o meu som no alto, tive de experimentar”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 18/09/2023

Algures entre um futuro movido a electrónica e um passado feito de tradições é onde podemos encontrar Edward Cawthorne, aka Tenderlonious, músico londrino que acaba de lançar You Know I Care, um álbum que consegue, paradoxalmente, ser de auto-reinvenção e de homenagem a alguns gigantes do passado, começando logo em Jackie McLean, lendário saxofonista alto de Nova Iorque que ajudou a definir o som da Blue Note durante a década de 60.

Em descontraída conversa no Zoom, Tenderlonious surgiu em preparos próprios do ginásio e em ambiente doméstico, pronto para explicar porque decidiu, após tanto tempo a tocar flauta, saxofone soprano e tenor, experimentar agora o saxofone alto. O músico explica em algum detalhe a transição que informa este novo título na sua já bem dilatada discografia. O também líder dos Ruby Rushton continua a ser carta fora do baralho do presente londrino, facto que talvez impeça a sua música de chegar mais longe, algo que o próprio admite sem qualquer tipo de queixa.

You Know I care sucede desta forma ao trabalho Cosmica Italiana que em 2022 cruzou os talentos de Tenderlonious com os do italiano Lorenzo Morresi em mais uma vénia ao universo da library music e também o mostra na posição de líder depois de ter contribuído, já este ano, para Padm​ā​sana do trompetista Nick Walters, seu parceiro em Ruby Rushton. E atirando-se a material de Jackie Mclean, mas também de Clifford Jordan ou Wayne Shorter, Tenderlonious tenta encontrar novas margens para mudar o fluxo da sua música, para encontrar um novo caminho. Dar uns quantos passos atrás antes de seguir em frente nunca é má ideia.



Deixa-me começar por te congratular por este novo disco. Estou a adorá-lo e tenho estado a ouvi-lo todo o dia. Mas deixa-me começar por… Diz-se que não devemos avaliar um disco pela sua capa, mas a capa é tão maravilhosa, onde surges a passar os conhecimentos que foste adquirindo. Se fosses tu a criança que está sentada no chão nesta foto, para quem estarias tu a olhar?

No que toca a este álbum, seria o Jackie McLean. Porque ele é um tipo que descobri mais recentemente e que inspirou o álbum. É um músico que eu não conhecia antes, não escutava a música dele. Na verdade, nunca escutei muito a música de saxofonistas altos, sempre me inclinei mais para os tenores. No que toca ao jazz, sempre me liguei muito mais aos saxofonistas tenores, porque foi com esse instrumento que forgei a minha carreira, especialmente no álbum de estreia de Ruby Rushton, o Two For Joy, embora tenha começado como soprano — o soprano foi o meu primeiro amor. Há muitos sopranos que também tocam tenor, como o Coltrane, o Yusef Lateef e o Wayne Shorter. Fui seguindo esse caminho naturalmente. Há um par de anos vendi o meu tenor e deixei de o tocar, até porque estava maioritariamente a tocar flauta e soprano nessa altura e não arranjava tempo para conseguir dominar o tenor da forma como gostaria. O som, para mim, era demasiado selvagem. A natureza do seu som é grandiosa e, para mim, era muito fácil pisar terrenos avant-garde e ir demasiado longe. O soprano é muito mais estreito, mais fácil de segurar, e eu sinto que o controlo melhor. De qualquer modo, achei que me faltava um elo de ligação, que me estava a faltar um certo tipo de som. O soprano tem o seu próprio tipo de som, é mais oriental, quase como um oboé ou um clarinete, se calhar, e isso sempre me atraiu. Mas eu estava com saudades daquele som clássico de saxofone, então resolvi experimentar tocar alto, isto em Novembro de 2022. Fui ter com algumas pessoas que sei que vendem saxofones e tentei uns 20 altos diferentes. Nunca gostei realmente de saxofonistas altos. Eu gosto do Cannonball Adderley e do Paul Desmond, mas nunca ouvi muita coisa deles. A maioria dos altos eu nem sequer gostava, porque o som nunca me foi apelativo. Finalmente encontrei um alto que me soa a tenor e gostei disso.

É um saxofone novo ou um clássico?

É um clássico. Um Selmer Mark Vi de 1954. Ele soou-me mais profundo do que o som de alto que costumas ouvir na maior parte dos saxofonistas, pelo menos para mim. Então achei que seria aceitável. Só não sabia onde ir buscar inspiração para além dos tenores que costumo ouvir. O meu tenor favorito é o Booker Ervin, porque ele tem aquele som mais bluesy, mais cru e emocional, mas também é um instrumentista muito eloquente no que toca à técnica e ao conhecimento das escalas e harmonias. Quis encontrar alguém desse género dentro do universo dos altos, mas não sabia mesmo quem escutar nem por onde começar. Eu andava a ler sobre o Booker Ervin e a escutar a música dele, até que vi uma menção ao Jackie McLean. “Mas quem é o Jackie McLean? Nunca ouvi falar dele.” Isto foi tudo em Novembro passado. Fui procurar pelo Jackie McLean, comecei a escutar coisas dele e… “Porra! Este é o gajo! Este é o meu gajo!” Até mesmo a atitude dele, a sua personalidade, o modo dele tocar — tudo isso me apelava. Ele é como se fosse o Booker Ervin do saxofone alto. Depois vi a história dele, a sua natureza, e tudo isso me cativou bastante. É como se fosse um despertar massivo. Isso inspirou-me a perseguir o som do alto e foi o que me inspirou a fazer este disco, que acaba por ser um tributo ao Jackie McLean. Foi assim que começou.

O que é que mudou no teu som em termos de técnica e de abordagem ao instrumento? Sentiste que houve alguma alteração a esse nível?

Sim, claro. Em certos aspectos, não, porque o dedilhar e a embocadura são muito semelhantes ao que estou habituado com o soprano. Eu entendi logo a disciplina do instrumento devido a tudo o que já tinha adquirido por tocar tenor e soprano. Mas, por outro lado, ele é fisicamente diferente, mais curto do que um tenor, e só por isso tu já obténs um som diferente. Eu tive de abraçar esse som e tentar encontrar-lhe profundidade. A cena do soprano é que o seu som é muito directo e é isso que o torna mais tenso. O seu tom é mais agudo e pode até soar horrível se tocado pela pessoa errada. Mas se tocado pela pessoa certa — como o John Coltrane, o Wayne Shorter ou o Dave Liebman — ele soa maravilhosamente bem. Mas tem o seu próprio tipo de som. Eu descobri o meu som no soprano ao longo dos anos e com o alto tive de o voltar a descobrir, até porque é muito fácil soar anasalado e, talvez, vulgar. Eu quis evitar isso, porque ouvi tantos altos com esse som e isso nunca me agradou. Parte desse trabalho faz-se automaticamente só por usar um tenor, pois tem um som bem mais profundo devido à sua maior dimensão, faz mais ressonância. Algum do trabalho vem já feito, porque ele soa a uma força dominante, um som masculino, mais nervoso. Com o alto isso é mais difícil de alcançar, diria, pois existe a tendência de soar um bocadinho mais estridente. Eu tive de perder algum tempo a encontrar o meu som. Tive de experimentar imenso, com várias boquilhas e palhetas. Passei meses a experimentar e, ao mesmo tempo, sempre a escutar o Jackie McLean, porque era o som dele que eu queria alcançar. Para mim, ele soa a alguém que poderia ser tenor. Ele abordava o saxofone como um tenor.

Já escutei artistas e, especialmente, compositores a dizer que a música existe dentro de nós, e que o instrumento é apenas uma interface.

Sem dúvida.

Às vezes, quando queremos desbloquear certos recursos dentro de nós temos de mudar a interface. Foi isso que fizeste.

É isso mesmo. Exactamente. Senti que já tinha feito tudo o que podia com a flauta, porque o seu som é tão puro, espiritual, tem todas aquelas coisas… Eu apaixonei-me de imediato pela flauta. Senti-me interessado e entusiasmado com ela. Enquanto que com o saxofone alto não senti esse entusiasmo, não fiquei assim tão interessado nele, meio que tive de ir atrás, não me chegou assim tão rapidamente. Demorei um bocado a encontrar o som…

Fala-me sobre esse processo pela procura do som. Como chegaste até ele? Andaste a praticar em casa ou tens algum outro espaço para te dedicares a isso?

Foi em casa. Eu pratico em casa. Na altura eu estava com mais tempo livre, andei a explorar e a praticar. Fazia as minhas rotinas diárias. Praticar escalas, basicamente. Eu quase só pratico escalas. Por exemplo, quando te digo que estive a escutar o Jackie McLean, eu não andei a transcrever a música dele, apenas estive a ouvir atentamente os discos dele, a ler entrevistas e assim, ver fotografias. Isso faz-me ter uma ideia da pessoa, mas eu não quero propriamente imitar essa pessoa em demasia.

Como é que a família lida com isso, o estares durante horas só a praticar escalas? [Risos]

Eles levam na boa [risos]. A minha mulher sempre me conheceu enquanto músico e sempre me apoiou e acompanhou nos concertos. Eu tenho um filho, que é o rapaz que aparece na capa. Agora temos outro bebé a caminho, que nasce dentro de dois meses. Eles sempre foram muito pacientes. E eu toco de uma forma… Não se torna uma coisa chata, porque eu movimento-me rapidamente entre escalas, faço diferentes padrões. Posso escolher uma escala e tocar uma série de padrões diferentes em torno dela. Estou sempre em movimento, por isso não se torna chato. Mas talvez a minha mulher te desse uma resposta diferente da minha [risos].

Estou certo de que não seria esse o caso. Ao escutar o novo álbum, dá a sensação de que tu sempre tocaste este instrumento. Depois, o quarteto soa bastante sólido, como se tivessem tocado juntos toda a vida. Fala-me dos músicos que tens contigo neste disco e da forma como decorreram as sessões de gravação.

A malta que toca comigo neste trabalho são músicos com quem eu já toco há alguns anos. O baterista, Tim Carnegie, também faz parte de Ruby Rushton e toca connosco desde… Eu até acho que o primeiro concerto que ele deu comigo foi com material de Tenderlonious, provavelmente em 2017. Eu conheço-o desde 2014, porque nós dávamos aulas na mesma escola, éramos ambos professores de música, e foi assim que o conheci. Tornámo-nos amigos desde então. Tenho ideia de ele ter começado a dar concertos comigo pela altura do The Shakedown, embora tenha sido o Yussef Dayes quem tocou a bateria que está no disco. Tinhamos feito uma pausa de Ruby Rushton e, quando voltámos, o Tim foi uma escolha natural. Ele é o meu baterista. É muito sólido e fiável. Por mim, não recorro a mais ninguém para a bateria. E ele é praticamente como se fosse família.

Agora fizeste-me lembrar um MC a falar do seu DJ [risos].

Exactamente. É mesmo isso [risos]. Ele é o gajo que está na retaguarda a segurar a batida, a manter o ritmo, a manter a energia. Também tenho o Hamish Balfour no piano, que é uma pessoa que eu conheço há anos, provavelmente desde 2010, e sempre quis trabalhar com ele. Já tinha estado em jam sessions em que ele estava a tocar teclas e foi nesse contexto que nos conhecemos. Não tive a oportunidade de tocar com ele na minha banda até ter gravado o The Shakedown, disco no qual ele toca teclas. Andámos com esse projecto em digressão por um ano, mais ou menos, e foi excelente. Fomos tocando mais vezes aqui e ali, mas, eventualmente, ele foi a minha primeira escolha para este álbum, porque o nível de piano dele é… Há dois pianistas a quem recorro: um é o Aidan Shepherd, que também é de Ruby Rushton, e o outro é o Hamish. São dois pianistas completamente diferentes. O Aidan é a cara chapada de Ruby Rushton, tipo o Joe Zawinul em Weather Report, ou algo do género. Ele brinca muito com as fórmulas dos compassos, toca de forma muito percussiva. Ele é mesmo a pessoa certa para Ruby Rushton. O Hamish é tipo o McCoy Tyner, uma cena mais espacial, que se espalha por aí. Eu sempre quis ter o meu próprio quarteto, uma cena sólida que… Porque em Ruby Rushton tenho o Nick Walters e o seu trompete comigo, à frente, e eu sempre quis formar um quarteto em que estivesse apenas eu na melodia. É nesse contexto que o Hamish encaixa, porque ele toca uns voicings enormes que ajudam a preencher o espaço. E ele é muito bom a dar atenção ao que eu estou a fazer. Ele tanto pode repetir, seguir-me, tocar nos espaços que ficam em aberto. Ele é muito bom a perceber essas coisas e a coisa funciona mesmo bem com ele. Depois há o Pete Martin no baixo. O gajo é um gangster do c*****o. Ele anda nisto há uma data de tempo: tocou com o Courtney Pine nos anos 90 e merdas desse género. Tocou com uma data de outras pessoas. Conheci-o quando andei a fazer uma série de espetáculos com o Kamaal Williams, enquanto Henry Wu, há alguns anos, após Yessef Kamaal ter chegado ao fim e gerado duas bandas distintas. Toquei com o Henry em alguns desses espectáculos e ele tinha o Pete a tocar baixo nessa altura.

Vi-o tocar ao vivo no Porto há algumas semanas.

Boa. Eu não falo com ele há muito tempo. Tocámos juntos naquela altura e foi assim que conheci o Pete. O Pete tem dois filhos e o mais velho não é muito mais novo do que eu. Por isso, o Pete é quase como um tio, de certa forma. Eu posso chamar-lhe tio. Ele é um gajo muito fixe de se ter por perto, é muito entusiasta em relação à música e o baixo dele faz-se notar porque ele tem uma grande presença. Não que ele se esforce em demasia, só que toca de uma forma tão alegre, mantém o groove e não tenta embelezar as coisas de forma maluca. É muito sólido e isso funciona com o resto da malta, porque ele dá-nos espaço para propagarmos os nossos sons e fica a segurar o groove.

Quando decidiste fazer este álbum, como foi o processo para a escolha do repertório? Foi complicado ou soubeste imediatamente o que querias fazer?

Foi fácil, porque como andava a ouvir o Jackie McLean queria fazer cenas como as dele. Eu fiz um par de espectáculos num pub aqui perto, apresentações de 45 minutos, e aproveitei para testar e conhecer o saxofone alto, bem como tocar novo repertório. Quando escolhi o alto, a minha escolha imediata foi inspirar-me no Jackie McLean, mas depois o Hamish disse-me para também tentar cenas do Clifford Jordan. Eu adoro o Clifford Jordan porque ele tocou com o Charles Mingus e foi assim que descobri o Eric Dolphy, o Booker Ervin e o Clifford Jordan. Mas sim, o Hamish mencionou o Clifford Jordan e ele conhece o repertório dele muito bem, tanto que acabámos por incluir dois temas dele no alinhamento desses espectáculos, o “Maimun” e o “John Coltrane”, por isso eles estão presentes desde sempre. Também tocámos coisas de Ruby Rushton com arranjos para o meu quarteto. Depois disso só quis gravar os temas, porque todos me soaram mesmo muito bem. Eu também não tive muito tempo para escrever novo material porque fui pai e estou a trabalhar num outro sítio, das 9h às 17h, de segunda a sexta-feira, de modo a conseguir ajudar a minha família. A música não está a correr tão bem como esteve em tempos e as minhas despesas aumentaram com o crescimento da família. Tive de arranjar esse trabalho e tem sido difícil conseguir algum tempo, mas queria mesmo gravar este material. Então agendei um dia num estúdio para gravar quatro temas — o “On The Nile”, o “Poor Eric” (que é do Jackie McLean), o “John Coltrane” e o “Maimun” (ambos do Clifford Jordan). Tinha a intenção de gravar algumas canções de Ruby Rushton com arranjos diferentes para o quarteto, mas não tivemos tempo e eu quis focar-me em ter este novo material terminado. O Wayne Sohrter morreu não muito depois de eu ter gravado o disco e eu adoro o “Infant Eyes”, então quando participei num evento em Londres, num sítio chamado Church of Sound, que é gerido pelo Lex Blondin, do Total Refreshment Centre, eles pediram-me para escolher o repertório de um compositor para tocar e eu escolhi o do Wayne Shorter. Fiz um arranjo da “Infant Eyes” apenas para piano e flauta e foi muito especial tocar aquilo numa igreja. Eu tinha imaginado aquele momento na minha cabeça, era uma oportunidade que não podia recusar, até porque ele tinha acabado de morrer e eu amo a música dele — muito, mesmo. Foi assim que tive a ideia de pegar nos temas do Wayne Shorter.

Disseste-me que a sessão de gravação apenas te ocupou durante um dia?

Sim, é isso.

Com todos vocês a tocar na mesma sala e ao mesmo tempo? Cena clássica?

Cena clássica, man. Eu diria que nós fizemos apenas três takes, excepto para o “Infant Eyes”, que fizemos apenas um. Para os outros temas fizemos 3 takes no máximo para cada. Para a “John Coltrane” acho que foram apenas 2. Sabes que quando consegues o que queres, a coisa fica feita ali. Depois o tempo também avança e se a coisa se estende até ao fim do dia as pessoas ficam cansadas, deixa de ser possível continuar a repetir as coisas. A minha abordagem foi: no máximo, faremos 3 takes para cada canção. Eu tento sempre fazer pelo menos 2. O primeiro take até pode sair muito bem, mas nunca sabes como poderá ficar o segundo. Ao fazer 2 takes, se alguém da banda não estiver contente com o resultado, faz-se um terceiro. Depois é uma questão de passar uns dias a escutar o que fizemos até concluir qual dos takes ficou melhor.

E tens a intenção de partir em digressão com este repertório em quarteto?

Sim. Eu gostava de o fazer. Já fizemos um espectáculo e eu tenho mais temas que integram o repertório para os concertos. Como disse, há coisas de Ruby Rushton que nós tocamos enquanto quarteto de Tentelonious, composições minhas que fiz para Ruby Rushton mas arranjadas de maneira diferente. Isso é muito divertido de se tocar, porque são temas da minha autoria. É como quando o Wayne Shorter andou a tocar o “Footprints” com o Miles Davis e também com a sua própria banda. É o tu estares a tocar as tuas composições com uma data de gente diferente, e isso é uma ideia que me agrada, até porque as coisas soam sempre frescas. Há muito material para podermos interpretar ao vivo. Também ando a escrever temas novos, mas está a demorar-me algum tempo pela tal questão da falta de tempo. Nós vamos, espero eu, conseguir andar em digressão. Há por aí algumas ideias a surgir, mas a coisa não está nada fácil neste momento, há poucas condições dignas a serem-nos apresentadas. Acho que muitas salas de espectáculos ainda estão a debater-se com o prejuízo que a COVID-19 trouxe, então deve ser por isso que não existem grandes orçamentos que nos permitam andar pela Europa, a menos que sejas mesmo um artista muito grande, um patamar onde eu acho que não cheguei, talvez por não ter trabalhado bem o marketing como deveria. A minha discografia é grande e toda a gente sabe disso, provavelmente maior do que a da maior parte do pessoal da cena jazz do Reino Unido.

Se calhar o problema é mesmo esse [risos].

Se calhar… [Risos]

Da última vez que conversámos, tu não negaste ter a noção de que estás a ir contra a corrente e até mencionaste não te sentir parte da “cena jazz londrina”, seja lá o que isso for. Mas ao fazeres um disco destes, a descartar a electrónica e a não tentar fazer, sei lá, versões acústicas de grime, ao adoptar uma postura muito clássica, tal e qual os mestres norte-americanos, é novamente estar a ir contra a corrente. Tens consciência disso?

Não tinha pensado nisso até mo dizeres agora [risos]. Mas ainda bem que o disseste, porque isso é… Para te ser honesto, eu só gravei este disco por uma questão de realização pessoal. Eu queria escutar o som do saxofone alto numa formação clássica que pudesse soar a algo feito pelo Jackie McLean nos anos 60. Foi isso que quis alcançar. Quando o completei, pensei: “Eu tenho a minha própria editora, a 22a, e posso muito bem metê-lo na rua.” Não havia qualquer problema quanto a isso. Mas depois apercebi-me que tinha de ter uma razão para o editar, pois quero que as pessoas me façam a pergunta: “Porque é que fizeste este álbum?” Quis que os jornalistas me questionassem sobre isso. E responder “porque quis fazer uma cena clássica, para mim” pode não chegar. Então pensei sobre isso e a outra razão que encontrei foi a da direcção que, particularmente no Reino Unido, o jazz tem estado a ser conotado pelos jornalistas. Fala-se na influência do grime, da house, uma cena menos melodiosa, com muitos loops e assim. Neste momento, parece que não há muita coisa a acontecer no jazz actual, é tudo um conjunto de grooves. Nem sei até que ponto esses artistas querem ser rotulados de “jazz”. Eu só quis ter a certeza de que as pessoas ainda acho fixe que ainda se façam este tipo de merdas clássicas. Elas ainda podem ser e soar cool. Na minha opinião, as cenas clássicas continuam a ser bem melhores do que aquilo que se faz hoje — mas bem melhores! Em termos musicais, é bem melhor. Eu nem consigo chegar perto do Jackie McLean, mas quis sentir a coisa e, pelo menos, relembrar as pessoas daquilo que é a herança e a história associada a este tipo de música. Diria que o jazz, naquela altura, era mais inspirado pela música clássica moderna, como o Claude Debussy ou assim. Isso é bem mias melódico, tem muitas mais harmonias a acontecer e isso dá que pensar. Era preciso muita mais preparação, prática e composição. Isso tem sido negligenciado recentemente. As pessoas têm pressa de gravar sem realmente colocar demasiado raciocínio ali. É por isso que a maior parte das coisas são muito regidas pelo groove. O groove é a primeira coisa que nos vem à cabeça e é, também, a mais fácil de executar. Construir algo a partir de um groove, torná-lo num arranjo mais complexo, mais melodioso e harmónico, isso requer um certo esforço e raciocínio. As pessoas já não fazem muito isso nos dias que correm. Achei que seria fixe revisitar as merdas clássicas, para que as gerações mais jovens possam pensar sobre isso. Eu próprio fiz dessas merdas simples, muito rítmicas, nos meus projectos de house music. Não tanto em Ruby Rushton. Diria que Ruby Rushton é bastante melódico e que está na vanguarda em termos de composição, em comparação ao resto. Mas já fiz coisas de dois acordes, muito simples, e também gosto dessa simplicidade, de loopar as coisas.

Tem a ver com o contexto não é? De onde e quando as coisas estão a ser feitas. Se elas fazem sentido, é porque fazem mesmo.

Sem dúvida. Mas a forma como o termo “jazz” tem vindo a ser tantas vezes utilizado faz com que haja um certo perigo de nos esquecermos da sua história e da sua essência, de onde é que ele veio. O assunto é complexo, porque o próprio termo “jazz”, só por si…

É verdade.

Os gajos daquela altura nem queriam utilizar essa palavra. Mas é uma palavra que ficou e é assim que o mundo conhece este tipo de música. Pelo menos, se o meu disco traçar uma ponte entre o jazz moderno e o clássico… Porque as pessoas podem ver que o Tenderlonious fez um disco de techno e outro de jazz clássico. Traz toda essa perspectiva. As pessoas podem entender a herança. Talvez. Não sei. Mas pronto, eu só fiz o álbum porque amo mesmo esta merda [risos].

Andei aqui à procura de um link para te deixar no chat, que é de um saxofonista alto português de que gosto muito, um tipo chamado Ricardo Toscano, que penso que vais gostar de escutar. Mas tenho mais um par de questões para ti. Podes falar um pouco sobre a situação da 22a neste momento? Mencionaste que a música já não é assim tão central na tua vida, em termos de ser a tua única forma de sustento, como já foi antes. Como é que a 22a se encaixa nesta tua nova vida?

É duro… Nem sei. Estou a tentar perceber. Tenho de finalizar mais música. A 22a sou apenas eu neste momento, embora talvez surjam algumas colaborações no futuro. Mas a verdade é esta: se eu não fizer música, não existe nada para lançar por lá. Este é o 10º ano de vida da 22a — o aniversário é em Outubro. Quero fazer algumas edições limitadas e comemorativas do 10º aniversário. Quero fazer uma tiragem muito pequena do Two For Joy, o primeiro álbum de Ruby Rushton. Será numerada e a primeira vez que trabalho com vinil colorido — nunca o fiz antes, sempre me recusei, mas percebi que há um mercado para isso e onde eu também tenho de estar. Também quero reeditar o The Shakedown, até porque esse disco está catalogado como sendo o número 22 da discografia da editora. Foi um álbum seminal para a editora e para mim, em termos do timing e da atenção que obteve da imprensa. Serão pequenas edições apenas para celebrar o 10º ano de vida da 22a. Vai ser divertido. Mas são reprensagens, não é nada de especial. Tenho de terminar um disco de house que tenho em mãos, mas isso talvez edite pela minha sub-editora, a Dennis Ayler Music.

E quanto a Ruby Rushton?

Eu preciso de escrever coisas e tem sido difícil de encontrar tempo para o fazer. Gostaria de fazer algo este ano, mas agora já é demasiado tarde. Aceitei este tal trabalho e ele tem-me consumido imenso. Eu chego a casa, quero estar com a minha família e…

Mas não é um capítulo que pretendes fechar, pois não?

Nada disso. Eu levanto-me todos os dias às 5 da manhã para praticar. É o único tempo que consigo para me aplicar à música.

Referia-me a Ruby Rushton. É um capítulo que pretendes encerrar?

Também não. Apenas preciso de escrever música. Irei fazê-lo, só não sei quando. Nós temos um concerto marcado para Novembro, para o London Jazz Festival. Mas não é de todo um capítulo encerrado, até porque tenho ali alguns dos meus melhores amigos. Haveremos de lançar um novo disco, talvez no próximo ano. Veremos.


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