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Publicado a: 14/06/2018

Telectu ao vivo no Maria Matos: “Estamos aqui para durar. Outra vez!”

Publicado a: 14/06/2018

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados

Em 1983, depois da inauguração da discografia oficial com Ctu Telectu um ano antes, os Telectu assumiam formalmente a sua verdadeira existência com a edição de Belzebu na mesma Cliché que já tinha lançado registos de Material ou David Thomas.

Poderá pensar-se ainda em Ctu Telectu como a derradeira ligação de Vítor Rua e Jorge Lima Barreto aos GNR: o primeiro foi mesmo membro fundador do grupo do Porto e o segundo colaborou também em Independança, álbum que foi gravado em paralelo com Ctu Telectu pelo mesmo engenheiro de som — Pedro Vasconcelos — e lançado pela mesma editora, a Valentim de Carvalho, no mesmo ano, e que incluía também os préstimos de Toli, baterista do grupo de “Avarias” até aos dias de hoje. No fundo, Ctu Telectu foi quase uma deriva experimental do álbum de estreia dos GNR, uma expansão das ideias ensaiadas no arrojado lado B de Independança.

Belzebu foi, definitivamente, farinha de outro saco: cristalizou a formação de Jorge Lima Barreto em sintetizador e outros teclados e de Vítor Rua nas guitarras (eléctrica, processada, sintetizada, preparada…), inaugurou a deambulação do grupo pelo espectro mais independente da então ainda nascente indústria discográfica portuguesa (depois da Cliché seguir-se-iam a 3 Macacos, Ama Romanta, Ananana, Tragic Figures, Área Total, Mundo da Canção e Numérica, por exemplo) e reafirmou-lhes a veia mais exploratória e distante das margens mais ambiciosas da pop.

Três décadas e meia depois do seu lançamento original, Belzebu inaugura o catálogo da Holuzam, etiqueta ligada à loja de discos lisboeta Flur — ela mesmo um epicentro incontornável de toda a atenção que se vai devotando à electrónica mais experimental – que deverá trazer de volta ao presente outros essenciais e há muito descatalogados títulos da impressionante discografia erguida ao longo dos anos pelos Telectu. Esta reedição motiva também o regresso aos palcos: amanhã, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, Vítor Rua apresentará juntamente com António Duarte o reportório de Belzebu como este nunca foi ouvido. Para colmatar o desaparecimento de Jorge Lima Barreto, Rua recrutou um velho aliado do grupo que, ainda por cima, calhou ser também uma espécie de guardião do espólio tecnológico que ao longo dos anos foi marcando as diferentes fases dos Telectu.

Vítor Rua, em entrevista ao Rimas e Batidas, conta-nos todos os detalhes deste regresso ao presente de uma das mais estimulantes e avançadas propostas da história da electrónica portuguesa.

 




Como é que nasceu o desafio de celebrar estes 35 anos de Belzebu?

Posso estar a falhar cronologicamente em algum pormenor mas creio que tudo começa com o interesse inicial do José Moura, da Flur, na reedição do Belzebu. Quando estamos a falar e a elaborar um plano para reeditar o disco, surge o Pedro Santos com o convite de uma possível reformulação dos Telectu, com a função muito específica de apresentar o Belzebu. Uma coisa seria apenas a reedição do disco, outra é o reformular uma dupla como os Telectu, ainda por cima com a função específica de interpretar o Belzebu. Mal o Pedro me lança essa questão eu respondo-lhe positivamente, porque já estava a trabalhar e a pensar sobre isso. Na altura eu estava a pensar fazê-lo a solo — chamar-se-ia qualquer coisa como “Telectu em Guitarra”, projecto no qual iria interpretar os temas de Belzebu e de outros discos apenas com guitarra. Quando o Pedro me fala nisso – o Belzebu necessita de duas pessoas – imediatamente vem-me à cabeça o nome do António Duarte, por várias razões. Não só por ele colaborar connosco desde o início dos Telectu ou por os D.W. Art terem nascido influenciados por mim e pelo Jorge Lima Barreto, mas também porque ele o viu durante anos a tocar e a ensaiar, viu os métodos, as tecnologias e as técnicas que o Jorge usava como teclista. Por outro lado, eu tenho as partituras de todos aqueles discos que fizemos antes de passar à música improvisada. Só faltava um pormenor, conseguir ter aquela tecnologia da altura. E nisso o António Duarte é o “dois em um”, é ouro sobre azul. Porque ele, durante toda a nossa existência, foi-nos comprando os sintetizadores quando nós mudávamos de equipamento.

Depois de ter aceite este convite do Pedro Santos, nós fomos tocar o Belzebu com as máquinas originais e de uma forma que os Telectu nunca conseguiram tocar. Nós na altura tocávamos com amplificadores, dois Fender de guitarra. Não tínhamos sistema nem tecnologia para estar a levar suporte magnético para soltar o separador ou o sintetizador fixo, tal e qual como está no álbum. Ou seja, nós nunca tocámos o Belzebu igual a como ele está no disco. Passados estes 35 anos, vamos finalmente utilizar esse som de separador, que está presente do início ao fim do disco. Esse som até era para ser o Belzebu inicialmente. Na reedição que vai sair, vem lá dentro um CD só com esse som electrónico, o Belzebu 0. (Na altura), o disco não saía e nós já tínhamos outros temas, e pensámos “então e o que é que nós fazemos a estes temas?” O Jorge diz “pomos por cima do que já temos”. [risos] Nós vamos tocar com esse separador, coisa que nunca fizemos. Há sempre dois sintetizadores no disco — um com as notas fixas do princípio ao fim e outro no qual o Jorge solava num volume mais baixo. Vamos respeitar isso. Haverá um pré-gravado e outro tocado pelo António Duarte. A nível visual vamos também reproduzir aquilo que fazíamos na altura, com vídeos meus e do António Palolo, e com a instalação de instrumentos que levávamos para o palco.

Que synths vão ser esses a estar em palco?

A nível de tecnologia, vamos ter em palco o Jupiter 6 da Roland. É um paradoxo, visto que o Belzebu foi gravado com o Juno 6. Imediatamente depois do disco ter sido gravado, o Jorge trocou-o pelo Jupiter 6. Nós nunca tocámos com o original. [risos] O Jorge teve de recriar os sons do Juno 6 no Jupiter 6. Vamos tocar com o Jupiter 6 e, por isso, não será igual ao do álbum mas é igual ao que usávamos na altura em concertos. Levamos também a Drumatix da Roland. Eu vou usar a GR-313 com a guitarra, não vou usar o sintetizador na pedaleira. Porque na altura já tinha recebido a encomenda da guitarra electrónica mas só a ia usar como sintetizada no Off Off. Vou usar ainda os pedais Boss de chorus, distorção e delay. Os mesmo que usei no disco e ao vivo. Inacreditável é, 35 anos depois, estar a ensaiar e sentir aquele poder da música nos transportar no tempo. Uma coisa é a pessoa ouvir Beethoven. Por muito que me transporte no tempo, eu não consigo ir até lá porque não vivi naquela época. Eu estava a tocar e, a dada altura, termina o ensaio e quando olho para o António Duarte pensei que ia ver o Jorge. O António diz-me “parece que estou em tua casa em 1983″. Parecia que estava em minha casa em ’83. Foi incrível. E nunca os Telectu respeitaram tanto a partitura do disco. Eu vinha do rock e eu não conseguia estar cinco minutos a fazer [emite um som repetitivo com a boca]. Conseguir, conseguia. Mas eu estava a tocar ao vivo e às tantas [emite um som diferente] e voltava àquilo outra vez. Eu lembro-me de que não “aguentava” estar a fazer aquilo perfeitinho do princípio ao fim. O Jorge muito menos. Ele, passados dez segundos, já estava a solar e assim.

 



O António Duarte vai tocar o sintetizador dele em cima de uma tábua de passar a ferro?

Exactamente. [risos] É engraçado dizeres isso porque, a dada altura, estávamos a pensar na reconstrução — “levamos os amplificadores Fender? Os jacks que usávamos?” O António Duarte ainda vai mais longe — “eu tenho a palheta que tu utilizaste no primeiro concerto do Belzebu“. Que loucura. “Então espera aí. Se estamos com esse rigor, os sintetizadores ficam em cima de tábuas de engomar.” O António, “eu acabei de comprar este suporte tão bom.” “Não! Tem que ser mesmo a tábua de passar a ferro.” [risos] Não sei se aguenta o peso mas em princípio será com as tábuas de engomar.

O António Duarte acabou por ser quase uma espécie de arquivista dos artefactos dos Telectu.

Completamente. Ainda agora estávamos a falar com o Gonçalo Falcão e é exactamente isso. Foi uma sorte inacreditável. Na altura, o António Duarte dizia até que era quase gozado, por nos estar a comprar o material. Agora ele diz, “afinal eu tinha razão.” [risos] Não só tem coisas valiosas, ao nível do investimento que fez, como estão a servir para algo que nunca se pensaria.

Fala-me sobre a reedição do Belzebu. Havia masters?

Isso é que foi fantástico. Havia masters e eu não tinha acesso a eles. Em 2017 tive acesso a tudo isso. Elas estavam em nossa posse mas eu, por questões burocráticas, não estava a poder aceder a elas. Neste momento, o espólio de Telectu a nível de masters – sejam bobines, DATs, CDs, cassetes, matrizes de vinil – estão comigo. A minha grande surpresa, porque eu próprio nem me lembrava, são os discos que nunca chegaram a sair mas que foram anunciados e que estão até em certas discografias oficiais dos Telectu. Por exemplo, o Data. Em muitas discografias nossas esse disco vai aparecer entre o Theremin Tao e o Camerata Elettronica. Nunca saiu. Havia também o Ben Johnson. Esse mandámo-lo fazer em vinil mas aquilo demorou tanto que, quando chegou o test press, nós já tínhamos o Camerata Elettronica. Arranjámos uma desculpa lá para a fábrica e eles acabaram por não imprimir as mil cópias tal como era previsto. Neste momento, eu tenho a única cópia do Ben Johnson no mundo. [risos] Há ainda outros que nunca saíram nem nunca foram anunciados do período do Off Off, logo a seguir ao Belzebu. Gravámos um disco que nunca chegou a sair e na cassete que contém as gravações está escrito “Frei Luís de Sousa”. Era para uma peça de teatro do Jorge Listopad. Aquilo tinha ficado tão bom que decidimos editá-lo enquanto disco. É uma espécie de Off Off mas com o rigor do Rosa-Cruz.

Isto significa que o Belzebu, agora relançado pelo José Moura, é o início de uma série de reedições de Telectu?

Absolutamente. Há essa intenção de, gradualmente, ir relançando os discos de Telectu. E alguns vão ter umas surpresas. Coisas deste género: poderem vir a sair discos dos Telectu em que as capas são as originais, daquela altura, e só o vinil é que é de agora. Ou o contrário: o vinil é exactamente o mesmo e só a capa é que vai ser feita agora. Vão existir esses dois casos.

Esse material está todo em teu poder?

Neste momento está tudo na Flur. No entanto, estou a receber frequentemente, dos EUA, Espanha e Alemanha, pedidos para reedições. Tenho de estudar isso bem. Digo logo à Flur o que se está a passar e, em alguns dos casos, é a Flur quem os contacta para resolver essas questões.

 



Tenho estado a acompanhar com muito interesse um conjunto de editoras internacionais que começou a prestar muita atenção à música dessa época. A irem atrás de toda a produção electrónica mais esotérica e obscura que existia naquele tempo, que acabou por ficar um pouco esquecida, mas que trinta anos depois está a ser muito revalorizada. Era quase inevitável este reencontro dos Telectu com o presente…

Isso é uma realidade para mim, para os Telectu, mas também para outros músicos a quem está a acontecer exactamente a mesma coisa. Editoras de todo o mundo estão à procura. Era quase inevitável isso acontecer com os Telectu, como tu dizes. Nos Estados Unidos começaram a contactar-me há já oito anos, a perguntar porque é que o Belzebu não foi ainda editado lá. Essa editora americana teimou até que queria editar dois discos de uma só vez. O Ctu Telectu e o Belzebu. O único problema é que eu tinha todos os direitos na minha posse menos, precisamente, o Ctu Telectu, que pertencia à Valentim de Carvalho e passou para a EMI… Acho que hoje em dia já ninguém sabe a quem pertence esse disco. [risos] Eles continuam a querer editá-lo em LP e CD. Em grandes quantidades até, quando comparado com o normal na Europa. Aqui, com a Flur, está definitivamente dentro dos planos ir reeditando discos de Telectu que sejam o mais fiéis possíveis com o que se editou na altura ou até com aquilo que nós idealizámos mas que não foi possível alcançar naquele tempo. Por exemplo, agora com o Belzebu, a capa era exactamente aquilo que nós queríamos mas o som não. Nesta reedição, já vai sair tudo como nós idealizámos.

Além das apresentações no Teatro Maria Matos e no Semibreve, em Braga, estás a ver-te a retomar esta vida de concertos de Telectu ao lado do António?

Estou e de uma forma muito aplicada, como um aluno muito aplicado. O prazer foi tão grande e é tão bonito para mim reviver isto. Eu nunca fui intérprete. Nem nunca fui intérprete de mim próprio. Eu componho peças para guitarra que nunca as toco, nem mesmo quando as estou a escrever. Às vezes porque nem sequer consigo tocá-las. Neste momento eu estou a ser intérprete de mim próprio. E está a dar-me um prazer enorme redescobrir e sentir estas coisas. Eu nunca pensei que ia voltar a sentir prazer a tocar com pedais Boss de delay de 1980. [risos] De repente, começo mesmo a notar aquela diferença entre o digital e o analógico. Parece que é uma espécie de mito e eu, de repente, estou mesmo a sentir tudo. O prazer é tanto e até já temos mais convites para tocar. Sem sequer informarmos que este projecto existe e que estamos dispostos a isso. A próprias organizadoras já nos estão a contactar e já temos concertos marcados para este ano. Mais do que isso, vejo-me não só a dar concertos de Belzebu em Portugal e lá fora, como também a pegar noutros discos de Telectu para os interpretar ao vivo. Ficarmos como intérpretes do grupo, nesta primeira fase. O objectivo, depois, que eu quase nem tinha coragem de o dizer, será criar um novo disco. Não é para já. Mas ir pensando num disco. A nossa ideia é que seja um disco de Telectu. Não deixar cair na tentação de pensar como soariam os Telectu hoje. Com a instrumentação que temos daquela época, entre ’83 e ’87, criar um álbum que as pessoas ouçam e digam “isto é Telectu.” Aos primeiros 15 segundos as pessoas têm de sentir isso. Não será um álbum revivalista, a tentar ir buscar aquele espírito. Eu sempre fiz assim. Eu sempre compus assim e vou continuar a compor assim. O António Duarte também sempre tocou assim e sempre disse que a maior influência dele são os Telectu. Eu quando ouvia os D.W. Art sentia-me espelhado naquilo.

Tu e o António quase que se tornam, portanto, num duo de câmara de reinterpretação da obra dos Telectu.

É o termo correcto: duo de câmara de reinterpretação da obra dos Telectu. É exactamente isso. Quase como aquilo que está a acontecer no rock, de se estar a tornar museológico, com grupos a recriar projectos na perfeição, com a mesma roupa e o mesmo som. Eu sou eu mesmo e o António Duarte quase que é, de certa forma, o Jorge Lima Barreto. Ele conheceu-o bastante bem. Telectu está aqui para durar. Outra vez.

 


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