“Eu não acreditava até chegar aqui”, confessa T-Rex ainda no arranque de uma noite especialmente marcante. Depois de encher “dois Tivolis” (e num deles estivemos lá), o autor de COR D’ÁGUA continua incrédulo com o mar de gente à sua frente. A deixa que antecede “NÃO É POSSÍVEL” é reveladora do que aqui se testemunha: Coliseu dos Recreios, em Lisboa, esgotado (com transmissão em directo para Angola promovida pela RTP) para ver um artista que, apesar de não ser propriamente novato nestas andanças, tem ainda toda uma carreira pela frente. E quantos artistas portugueses se viram consagrados, numa das mais emblemáticas salas do país, logo após a edição do primeiro álbum a solo? Hoje, é possível.
É, então, a primeira vez que o protagonista da noite se dirige em palavras ao público, depois da entrada fulminante em palco à boleia de “UUUUHH”. O êxtase da plateia na recepção ao músico potencia esse sentimento de incredulidade que Tóy Tóy viria a expressar ao longo das duas horas seguintes. Ainda assim, não acusa a pressão do simbolismo que esta noite em particular carrega, e volta à carga com “SURVIVA”, espelhando esse leque de emoções que, visivelmente, lhe chegam à flor da pele desde que irrompeu dos bastidores à boca de cena: “Se eu não morri até hoje/Mano, o que é que me mata?” causa os primeiros de múltiplos arrepios em quem atenta na tónica de superação subjacente à música do rapper da Linha de Sintra.
Depois dessa entrada “bruta à Tarzan”, interrompe o alinhamento de COR D’ÁGUA para, agora sim, saudar “educadamente” as mais de 4 mil pessoas que vieram vê-lo. Apresenta-se nos seus vários aka’s — de “Daniel Benjamim” a “Fernando Alien” — e troca as voltas ao prato principal para intensificar o sabor: recua no palco e sobe à plataforma montada entre a banda e o hype man Symle, posiciona-se na cruz marcada ao centro da estrutura estilo realidade virtual e leva “FEELING” a uma dimensão Matrix — sem faltarem os óculos escuros neste Neo — por entre um jogo de luzes condizente. Dá-se uma explosão de euforia até então inédita, momentum que não se perde com a entrada de “VOLTA”, em que a batida metronómica, reforçada pela avalanche de palmas coordenadas, faz sentir a pulsação ao Coliseu.
Entre temas como “MEMÓRIA” (com laivos de rage à Travis Scott), “OLD SKOOL” (que requisita a já esperada presença enérgica da Mafia73), ou “SALADA” (provocadora de nova explosão no recinto), é ao vivo que se confirma, realmente, a aptidão de Rex para produzir bangers em grande escala. Mas é em “DIAS” que, com o tão aguardado aparecimento de Slow J, a actuação escala para outro patamar — para lá dos cinco sentidos —, assim que o “puto lento” bate o pé em “Alguém sabe quanto é que o Rex calça?”. Cratera que se abre para uma segunda parte tanto ou mais intensa.
“Coliseu, ficamos por aqui ou continuamos?”, desafia Smyle com a retirada (em falso) de T-Rex. Perguntar ao cego se quer ver… E, em menos de nada, a estrela da noite volta a iluminar o palanque, agora cristalina dos pés à cabeça — da cor dessa “nuvem no pé [que] não é de Air Force” —, com a muda de roupa a indiciar uma viragem no espetáculo. Assim, “TÁ TUDO BEM”.
Para quem está há coisa de uma hora a manobrar uma legião de fãs rendida desde o começo, custa a crer quando Rex confidencia estar envergonhado momentos antes de se virar para a família. O público continua a não lhe dar tréguas, e insiste em pedir por mais matéria para lá do recentemente editado álbum de estreia — que, por sinal, teve um peso significativo na lotação esgotada, como os últimos recordes batidos nas plataformas de streaming o provam. Começam as negociações, e o pintor de águas turvas finge cingir-se à sua última criação — mas abre espaço a licitação por mais. É mais uma, duas, três canções? “Já me f…”, atira, com um irónico sorriso rasgado. Para bom entendedor, meia palavra — e sorriso e meio — basta. São quantas lhe der na cabeça, que a parada ainda vai a meio.
A palavra que todos gritam, porém, é só uma: “ANTI-ANTES”. Primeiro disco-pedido da noite, vontade que só viria a ser atendida mais tarde. É tempo de voltar à família, e depois da dedicatória aos “tios e tias” em “TAMU A LIDAR”, Daniel procura pela mãe na multidão. A progenitora está num dos camarotes (umas varandas à direita do nosso), praticamente de frente para o filho que, tão novo (mais ainda aos olhos da mãe…), já conquistou tanto. Num só movimento, todo o Coliseu se vira para trás em direcção à matriarca, que, desarmada, chora. “Não limpa as lágrimas, isso é felicidade”. E tal mãe, tal filho, que se deixa cair nas tábuas, visivelmente emocionado, antes de dedicar à “cota” o tema preferido dela. Volta a erguer-se, com a voz ainda a falhar, enquanto “É ASSIM” começa a tocar. Afinal, foi a “mommy” que o ensinou a “levantar a vida”, e daí em diante o Benjamim passa a dar conta da tarefa com força redobrada (como quem diz “Mas eu sou mais rijo/O meu bícep ’tá big”). Que atire a primeira pedra quem não se emocionou.
Altura para ligar, agora assumidamente, as lanternas. É o próprio Rex quem o pede, e já se sabe para onde tanta luz promete apontar. Sob um apelo à união, despida de preconceitos entre cor, género ou orientação, chega a hora de “Tempo” — momento que é, por esta altura, incontornável nos shows do artista —, com as despedidas já em vista. Tempo há, ainda assim, para atender ao pedido não-esquecido. E é, também, contra o tempo que, sem olhar para o que ficou para trás, Tóy Tóy corre para “ANTI-ANTES”, rastilho para o maior abanão da estrutura centenária (mesmo com tantas réplicas de elevada intensidade pelo meio). Imagine-se o eco do coro de “PATINS! PATINS!” na Praia da Rocha, na próxima edição do festival Rolling Loud.
Nem público nem artista acusam o cansaço das quase duas horas de celebração conjunta. Não falta material para continuar a festa por mais tempo, mas a sua descida à plateia, no seguimento de um longo discurso de agradecimento — em que não ficou mesmo ninguém esquecido —, antevê um final (ainda que indesejado) em grande. T-Rex sobe a barreira que define a primeira fila, agarra-se a uns quantos fãs para não perder o equilíbrio e convida toda a gente a abrir o maior buraco possível para a volta final. “Podia ‘tar no block a fugir do… TINONIIII”. Casa abaixo.
A deixa de fuga não foi explícita o suficiente para remeter para a saída. De volta ao palco, T-Rex deixa-se ficar só para mais uma, já com toda a comitiva a bordo, alongando-se com “Duvidava” a capella em comunhão com a sua entourage. Quando, finalmente, sai, deixa ainda um brinde a quem fica: à medida que os créditos da produção deste espetáculo com traços cinematográficos rolam no grande ecrã, é desvendado um inédito do artista (presumivelmente, designado “Ambicioso”), para satisfação (mais ainda?) dos seus admiráveis fãs. Entre agradecimentos e despedidas, ficou também a promessa de uma desforra no Altice Arena em dois, três anos. Lá estaremos, certamente. E não ficou por aí: “Eu vou ser uma lenda. Se eu não conseguir, morri a tentar”. Bom, pelo menos esta noite, a lenda já ganhou vida.