Um vazio de anos por preencher. Uma das pioneiras dos sintetizadores modulares nunca tinha soado ao vivo na capital portuguesa. Suzanne Ciani relembrou isso mesmo no altar-palco — em modo de confissão pública, perante uma igreja lotada de fieis das sonoridades vanguardistas da electrónica modular. Foi um encontro devocional, um resolver com um passado a olhar, e num mais que isso, escutando o futuro. Antes de Ciani, esteve a abrir o espectro sonoro Violeta Azevedo, na noite quente — sufocante e de lua gorda em atmosfera chamuscada de uma Lisboa — aos 16 dias andados do mês de Setembro.
Violeta Azevedo é uma das vertiginosas compositoras actualmente em campo, que podemos ouvir com atenção no que aos domínios da música exploratória diz respeito. Tem desenvolvido um diálogo identitário com a flauta transversal de que faz uso simbiótico com o processamento sónico dos pedais electrónicos, em muitos casos com preciosos circuitos de placas únicas feitas por si. Logo nessa construção habita um universo único, que apenas Violeta pode fazer acontecer.
A igreja anglicana de Lisboa, é um local de culto religioso protestante, porem tem servido de palco com uma frequência crescente para concertos marcantes. O cenário conduz com vantagens acrescidas a esse sentido. Para entrar na igreja secular, atravessamos um jardim de lápides — o Cemitério dos Ingleses, onde se acumula às vidas passadas — numa aura de mistério vivo — uma ideia do futuro, dos que o atravessam para um concerto de música electrónica neste caso. Vem-nos à memória uma das fascinantes capas de discos da 4AD, Within The Realm Of A Dying Sun, dos Dead Can Dance, e ao ouvido esses coros etéreos de igreja. Há aqui essa presença de mistério — neste espaço, como também no Père-Lachaise, o velho cemitério parisiense que essa capa de disco detalha um jazigo familiar.
Violeta Azevedo tem um retomar de palco onde se estreou em 2017. A cadeira que a recebe assenta-lhe bem e acresce-nos conforto no lugar. Sopram ventos refrescantes em seguida, refrescam o ar suado da nave anglicana. É como se soprassem vozes do órgão-manual Fincham, que vemos dos tubos emudecidos nas paredes. Azevedo faz um uso contínuo do seu sopro rasante, cuja modelação sonora vem dos seus pés — invariavelmente descalços em palco. É notável o descolar provocado pelo uso de nota pedal, mas onde há um efeito drone modulado, oscilante, e que vai sofrendo feições cumulativas. As mãos na flauta transversal suportam e mantêm o rumo do voo, os dedos sustentam a mesma nota desde o instrumento emissor, o que se ouve depois vem dos circuitos percorridos. Há um presente feito da ideia passada por um fundamental Phill Niblock — o contínuo sonoro como movimento. Violeta Azevedo tem nesta permanência de registo um percurso a desenvolver, que nos conduz perdurada e prazerosamente por um qualquer corredor esguio e muito longo onde mais adiante no tempo e no espaço se antevê um foco — uma aura sonora. É então o momento de pôr à prova a escuta da melodia suspensa e que o caminhou estancou. Nesta câmara, ampla e de grande reverberação, Violeta revela um esplendor melódico absoluto. Fraseados florais, perfumantes, que apelam a danças esparsas, convivem os elementos melódicos em jogos permanentes de fluxos que inundam o espaço. Um desenho do som faz-se melhor descritor ilustrando um tubo que desemboca numa esfera — lá dentro estamos nós, neste presente.
Suzanne Ciani surge diante de nós, depois de Azevedo ter deixado esta ideia sónica a pairar, a que o tempo foi impondo um passado. Presente — no altar-palco, resplandecente, estava desde inicio o Buchla 200e, o instrumento inventado e desenvolvido por Don Buchla desde 2002, num ressurgimento de interesse pelos sintetizadores modulares que ele próprio, assim como Alan Pearlman e Bob Moog inventaram na década de 1960. Moog foi o mais bem sucedido dos três, pois passou a juntar teclados aos sintetizadores, algo que se tornou tão familiar ao ponto destes perderem os módulos mais vistosos para versões cada vez mais compactas e reduzidas ao teclado e vozes programadas com automatismos que lhes foram empobrecendo identidades como instrumentos musicais. É nesta altura, saturada disso, que Suzanne Ciani se retira do panorama, como pioneira compositora e operadora dos instrumentos que Buchla ia produzindo desde os alvores da sua industria de componentes de electrónica. Para Ciani o interesse está numa música de um instrumento, não em automatismos. Isso fê-la dedicar-se mais tarde aos instrumentos clássicos como o piano, preterindo os modernos sintetizadores — aliás, prefere chamar-lhes instrumentos modulares analógicos de música. Como apresenta no final do concerto o protagonista “que veio de longe para vos ver”, referindo-se ao Buchla 200e, convidando a que o víssemos mais de perto. É um instrumento chamativo, misterioso, complexo e desafiante. As cores e múltiplos cabos que fazem as ligações entre os módulos que o compõem fazem parecer um labirinto num matagal fascinante. Um daqueles passatempos de ajude o “qualquer coisa” a encontrar a saída, no caminho de volta. Há algo disso, num operar das pontes infindáveis nas possibilidade de conduzir e ligar o som que sai dos módulos disponíveis.
Numa pesquisa complementar, ficámos a conhecer os nomes das partes que compõem cada uma das três secções boats do instrumento modular. O painel de cima contém os módulos 260e “Duophonic Pitch Class Generator”, 291e “Triple Morphing Filter”, 266e “Source Of Uncertainty”, 227e “System Model Interface” e ainda um outro. No boat intermédio está o 281e “Quad Function Generator”, 292e “Quad Dynamics Manager”, 225e que funciona como MIDI/USB “Decoder”, 210e “Control and Signal Router”, e ainda outros dois, 281e, 292e. O painel inferior é composto pelo 259e “Complex Waveform Generators”, num dispositivo dual do impressionante modelo 249 “Dual Arbitrary Function Generator”, de onde o som é gerado. Tudo isto para se imaginar a complexa electrónica orquestrada neste instrumento. Ciani tem aos comandos um mundo de possibilidades sónicas. Sempre foi revelando ao longo da sua extensa actividade o seu fascínio por estes campos enquanto compositora: “A música electrónica significava que ninguém poderia dizer-me o que fazer, era livre para fazer o que quisesse — poderia fazer uma peça que durasse um mês!”
Ciani está de volta aos palcos sobretudo pelo ressurgimento vivido com as novas edições e colectâneas do seu trabalho pela editora Finders Keepers de Andy Votel. Devemos a Luís Fernandes a passagem de Ciani pelo programa do Semibreve por Braga em 2019, e que deu aso à entrevista feita por Isilda Sanches para o Observador com “‘Não era suposto as mulheres tocarem instrumentos que nunca ninguém tinha visto’: Suzanne Ciani, a Diva do Diodo.” João Castro, pela programadora Nariz Entupido, faz preencher a lacuna da presença em Lisboa desta fundamental compositora que tem na história da música electrónica páginas e páginas de importância. A prestação no altar-palco, de costas voltada para nós, ou antes como todos o presentes estavam virados para o futuro com Suzanne Ciani, fez-se dum vai-e-vem ondulante, de um espraiar sonoro, de beira-mar. Somos levados para uma refrescante maresia — cheia de propósito naquela noite sufocante. Sendo música vinda do instrumento modular, é a Ciani, como compositora e operadora, que se deve a intenção criativa. Como refere Ciani a Sanches, este “é um instrumento feito para tocar ao vivo. Fazer música electrónica ao vivo, sem nada pré-gravado é um pouco estranho hoje em dia porque toda a gente está a usar computadores. E acho que até para o público é difícil perceber o que se passa quando estou a tocar […].” Vem muito desta consciência a presença fascinante da sua música em palco, para que a composição emocional e expressiva estanque a potencial hegemonia de um processo automatizado de criatividade redundante, que está logo ali à beira, num mais que a mera opção. A prestação de Suzanne Ciani foi um manifesto criativo aos comandos de máquinas, sem contudo transformar a música num acto maquinário puro, desumanizado. Toda a evolução sónica em torno do instrumento resultou numa suite electrónica, sem cedências, em que a matriz foi a construção de uma música imunizando a acção do tempo — acrónica, atemporal —, desenhado no espaço dessa possibilidade, muito à frente deste tempo concreto que se mede e contabiliza.