“É exactamente o contrário – eu sinto-me muito normal”. Recordar a entrevista de Suso Sáiz para o Rimas e Batidas e interiorizar a ideia de normalidade. A normalidade que no quotidiano hiperbolizado parece objecto de rareza extraordinária. Entrar n’ O Cantinho, no mercado de Arroios. Uma tasca banal, de balcão corrido, numa terça-feira completamente igual às outras e em que as cervejas, sejam elas minis ou médias, se vão buscar ao frigorífico. Pagar só no fim – confiança. A anormalidade entra num raro olhar para o directo da televisão – jovem esfaqueia outro jovem.
Domingo à noite, Museu do Oriente. Dia, hora e local fora do convencional. Antigo edifício ligado à pesca do bacalhau, modernismo funcionalista e que serve de guarida para colecção de arte. Uma noite a fazer lembrar um momento de desaparição – corredor longitudinal infinito, café sem clientes. Parede e chão brancos. Ao fundo, o auditório. Na noite, uma mesa e sintetizadores e uma guitarra com duas luzes azuis ténues projectadas numa parede escura. Não há lugar para máquinas de fumos, nem strobes. Não há lugar para subwoofers, nem graves no máximo. Falamos de delicadeza. Falamos de como são todos os dias ou pelo menos gostaríamos que assim fossem.
Eremita como Suso se auto-define. É um eremita contemplativo e atento ao mundo. Da sua janela ou da soleira da porta não é relevante. É o mundo que todos queremos e devemos ver. Sem intermediações ou pelo menos sem a intermediação de um ecrã e de um modem. Ouvir com atenção. As camadas vão sendo construídas com uma subtileza tal que mal se notam, como deve ser. Há detalhismo, mas não barroquismo e sobretudo nunca novo riquismo. Há apontamentos a elementos tão banais e naturais com a chuva. Talvez o mais estranho é ter a capacidade de escutarmos a chuva. Se não for em regime catastrófico, alguma vez lhe prestamos atenção?
Suso é música, sempre. Suso é música, mas é sobretudo a poética do quotidiano. Alongar o texto é assumir um papel de crítica para o qual não há cabimento. Alongá-lo é fazer a mesma pergunta que João César Monteiro fez aquando da estreia da Branca de Neve – “Queriam novela, era?” Talvez o mais que se possa acrescentar é que foi um concerto de uma beleza rara. Agora é fechar os olhos e ver a realidade como ela deve ser vista porque, no fundo, todos nós somos bem normais.
*Foto tirada aquando da passagem do músico pela Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães, no dia 4 de Novembro, e gentilmente cedida pela Capivara Azul.