LP / CD / Digital

Sudan Archives

Natural Brown Prom Queen

Stones Throw Records / 2022

Texto de Leonardo Pereira

Publicado a: 16/12/2022

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Os espelhos não são perfeitos. Todos reflectem uma imagem que não corresponde na exactidão àquilo que é a realidade. Por várias razões: os ângulos da luz e da perspectiva, a espessura da superfície e a distância à imagem diferenciam o que é real daquilo que é reflectido. Estas diferenças nos detalhes são muito parecidas com os reflexos de um artista na sua arte – alguns tentam que a sua imagem pessoal corresponda perfeitamente à sua música, outros abraçam as diferenças das réplicas de realidade que são reflectidas, agarrando-se a essa ausência de tradução próxima para que outros elementos se insurjam; e outros recusam completamente essa conexão natural. No entanto, estas vias contêm sempre, e infalivelmente, uma parte do seu criador no seu trajecto. A discussão sobre esta relação é longa (parece até infinita, por vezes), mas na sua essência é sobre como a música, sendo uma arte, é irrefutavelmente uma consequência natural da natureza humana, e de como essa consequência afecta os humanos. 

Brittney Denise Parks, mais conhecida como Sudan Archives, olhou para um espelho e, como tantos outros, desenhou-se musicalmente através dessas imagens que via de si mesma. Não é trabalho fácil – a auto-reflexão é sempre parcial e leva a desvios na sua transcrição. Mas há algo de excepcional quando esse desenho transparece tão claramente para olhares externos uma vida e a história contida nela. De uma ponta a outra, o seu último disco – Natural Brown Prom Queen, saído em Setembro de 2022 — é um romance infindavelmente detalhado dos seus quase 30 anos de vida, contendo camada em cima de camada de emoções, vivências, ideologias, comunidades e objectivos pessoais concretizados ou por concretizar. 

O violino apareceu-lhe na vida quando estava no quarto ano. Esta relação com o instrumento também afecta profundamente o seu crescimento artístico, tendo-se sempre sentido como uma punk no liceu, eventualmente relocalizando-se para Los Angeles para desenvolver ainda mais as suas criações, começando uma viagem para mostrar a blackness do violino, que no mundo ocidental está muito associado a uma aura de música erudita (e branca), mas em África está associado a festa. No seu primeiro EP, homónimo de 2017, este esforço está demonstrado na sua plenitude, com o violino a assumir o papel de personagem principal na animação: ritmos rápidos, melodias salientes e uma felicidade intrusiva. Em Athena, o seu primeiro longa-duração, de 2019, o violino continua a ser uma presença inevitável, mas vemos uma pessoa mais madura, mais introspectiva, mais interessada na exploração sónica e nos pormenores que se podem descobrir; e encontramos um esforço mais estruturado (com mais texturas) e que inclui muito mais dentro dele.

Natural Brown Prom Queen começa com algo que nos faz lembrar zapping na TV. Um drone repetitivo é a base de fundo para uma sequência de melodias orgânicas e sintéticas que compõem o asfalto em que a viagem em que estamos a ser levados se está a conduzir. Somos introduzidos a uma certa indecisão no destino final, mas rapidamente somos convencidos de que não importa muito para onde fomos, importa por onde estamos a ir. “Home Maker” é uma descrição do que rodeia Brittney – “I just got a wall mount for my plants/ And hoping that they’ll thrive around the madness” e apresenta-nos ao primeiro olhar para a sua casa, uma casa que tem dentro dela amor, mas com todas as suas vicissitudes – tanto as que discorrem da evolução individual dos seus participantes como as que são compostas pelos seus hábitos em conjunto. Um olhar que assume todas as falhas e desorganizações, não recusando, no entanto, a esperança num futuro ideal, um futuro em que as falhas são resolvidas e as desorganizações são limpas. Esta ambivalência permeia o disco e a sinceridade com que é escrito abre as portas para sentirmos as situações, que, apesar da sua particularidade individual, são universais à experiência humana. Mais especificamente, Sudan decidiu que o seu olhar no espelho fosse uma reflexão não só sua, mas das experiências humanas próprias da mulher negra, que historicamente tem as suas emoções desvalorizadas, as suas histórias toldadas e a sua existência diminuída. 



São temas primários nesta experiência humana: a auto-valorização, interpelada por todas as pressões e inseguranças causadas pela sociedade, os conflitos e as relações interpessoais, o amor e a perda, a sexualidade e as extremidades da felicidade e da tristeza. Sempre com um distanciamento lúcido e saudável, que não se permite remover das situações, as histórias são contadas sem papas na língua, por vocais que assumem várias disposições, conduzindo-nos aos lugares, às conversas e às emoções que as constroem. A instrumentação transita entre batidas soulful, riffs de rock, melodias de sintetizadores próprias do r&b, graves que poderiam fazer parte de um álbum de trap, harmonias suave de pop, com laivos de experimentação de génio, pontuada irregularmente por interlúdios de monólogos que nos instalam numa cena e dão luz ao caminho por onde estamos a ser guiados – com paisagens completamente distintas de minuto em minuto, fabricando uma variedade de horizontes belíssimos, onde nunca estamos aborrecidos. 

Em “Selfish Soul”, uma incrível faixa orquestral, o cabelo da mulher negra é o pilar de uma canção em que as influências externas patriarcais sobre a imagem pessoal são o motif e em como a decisão de não ter medo sobre como se quer mostrar é uma de importância gigante; em “OMG Britt”, indiscutivelmente influenciada pelo trap, há uma exaltação da independência pessoal e de como o auto engrandecimento é uma necessidade para a confiança artística; em “Freakalizer”, a vontade de dançar causada por um banger de dance music não esconde uma bela rendição do crescimento de uma relação amorosa e das formas que assumimos dentro delas; em “Homesick (Gorgeous and Arrogant)”, trocamos para um tema lento e sensual em que a carência e a saudade coexistem com uma obrigação inata que Sudan sente para se definir a ela própria.

Esta adaptabilidade a tipos de sons e de histórias registadas no disco são um perfeito exemplo da profundidade que um disco de pop/r&b pode ter. A festa, pertencente quase por origem ao habitat da pop, mostra-se aqui pela mesma voz que analisa cirurgicamente actos de introspecção, a tristeza flutuante do quotidiano, envolta de sentimentos como o ciúme, o orgulho, a vaidade, o prazer da amizade, ciente que todos estes processos são humanos e que o colectivo se reflete sempre na individualidade. A proteção que a artista encontrou para ela própria foi em libertar tudo isto, sem omitir todas as vulnerabilidades emocionais que são consequência de uma vivência humana.

É difícil apontar falhas ou problemas específicos aqui, sendo um disco que compensa aqueles que o ouvem repetidamente. Este é, assim, um marco muito importante na discografia de Sudan Archives, estendendo-se a lugares onde nunca tinha estado antes, e fazendo-o com um brio e uma atenção ao detalhe que não engana. Um álbum que contempla de uma forma muito honesta os espelhos onde somos obrigados a ver o nosso reflexo e uma das melhores ofertas que a pop nos deu nos últimos tempos.


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