Samuel Lunsford, também conhecido como Stimulator Jones, é um cantor, produtor e multi-instrumentista de Roanoke, Virginia, que cria música a partir de casa. Há quatro anos, Peanut Butter Wolf — o fundador da editora Stones Throw — ouviu essa música caseira e decidiu recrutar Samuel para a sua label. A escolha do célebre DJ e produtor revelou-se, como seria de esperar, acertada: já em 2018, Stimulator Jones editou o seu álbum de estreia, o deslumbrante Exotic Worlds and Masterful Treasures, um trabalho que vai da soul ao disco, saltitando pelo r&b, com uma delicadeza irresistível.
Agora, edita um novo projecto — uma compilação de 23 beats, intimamente ligados ao hip hop, produzidos desde 2004 —, intitulado Low Budget Environments Striving For Perfection, título esse que não podia ser mais explícito acerca das condições e motivações por detrás deste álbum. LBESFP promete reunir uma selecção do melhor material que Jones esculpiu ao longo dos últimos 16 anos, em homenagem a um dos muitos géneros musicais que o inspiram a criar, no seu estúdio caseiro, rodeado de máquinas, instrumentos e energias criativas. Para Samuel, a música é um vírus (benigno, claro) que corre nas suas veias. Talvez seja por isso que as suas canções são tão contagiantes. Ora, respirem as suas notas e palavras e sintam o bichinho a instalar-se.
O teu novo álbum vai estar disponível esta sexta-feira, dia 16 de Julho, e tem como título Low Budget Environments Striving For Perfection. Depois de tantos anos a fazer música continuas a preferir fazê-la em casa no teu próprio estúdio caseiro?
Sim, prefiro, porque sinto que tenho controlo total nesse ambiente e não estou preocupado em pagar por tempo de estúdio; posso levar o tempo que quiser e posso estar confortável e relaxado.
Sentes uma maior segurança a criar sozinho em casa, sem estares rodeado de pessoas?
Sim, exacto. Eu gosto de ter uma sensação natural no meu processo criativo, que às vezes é muito espontâneo. Por isso, ter um estúdio montado em casa ajuda-me a, quando a inspiração me bate, poder deixar-me levar e começar, imediatamente, a trabalhar em criar alguma coisa, a canalizar essa energia criativa o mais rapidamente que conseguir.
Sem pressão exterior…
Sim, exacto! A pressão de “já estamos aqui há três horas e são 300 dólares a hora”; ou alguém a dizer “acho que devias fazer isto e aquilo”. Eu posso apenas ir com aquilo que sinto e, para mim, essa é uma maneira mais eficiente de trabalhar.
Este novo álbum é uma compilação de 23 beats feitos entre 2004 e 2020. Como foi feita a selecção dos beats? Houve alguma conexão entre eles, ou é apenas um conjunto dos melhores beats que fizeste nos últimos 16 anos?
O que eu fiz foi ir aos meus arquivos e reunir uma pasta daquilo que eu achei que eram alguns dos meus beats mais fortes e algum do meu melhor material. E enviei isso para o Peanut Butter Wolf — o dono da Stones Throw e um grande músico e DJ —, e ele fez uma lista daqueles que ele achou que eram os melhores. Isso acabou por ser, basicamente, a tracklist. Houve alguns que eu acrescentei, mas a maior parte foi da lista que ele escolheu, daqueles que ele achou que eram os melhores. Eu confio nas decisões e no gosto dele, e achei que era uma boa selecção de faixas. E foi assim que aconteceu.
Isso faz-me lembrar, na parte da selecção, o processo entre o Madlib (uma das grandes figuras da Stones Throw) e o Four Tet na feitura do Sound Ancestors — alguém a pegar nas peças do teu trabalho e a montá-las num puzzle.
Exactamente. E, às vezes, ajuda ter uma pessoa de fora, em quem confias e cuja opinião tu respeitas, vir e dizer “gosto disto e disto, acho que isto é bom, este aqui nem tanto”, ou o que quer que seja. Quando é alguém em quem confias e respeitas, como eu com o Peanut Butter Wolf, isso ajudou-me e achei que foi um bom processo.
A tua música não tem uma sonoridade ou um género específicos. O que é que te levou a produzir um álbum instrumental de hip hop? Qual foi a motivação por detrás deste projecto?
Bem, eu sempre fui fã de hip hop e tenho vindo a fazer beats desde 1998 — recebi o meu primeiro sampler no Natal de 1998, quando tinha 13 anos, estava no oitavo ano. Por isso tem sido uma paixão durante a minha vida, e eu tenho um grande arquivo só de todos os beats que fiz ao longo dos anos — alguns que lancei apenas no Bandcamp e no SoundCloud. Mas achei que seria bom pegar em alguns dos melhores e juntá-los num disco; podiam estar num vinil. Essa foi, de certa forma, a motivação para fazer uma colecção sólida de alguns dos meus melhores beats de hip hop que vim a fazer ao longo dos anos, apenas para mostrar essa parte de mim, de quem eu sou e da minha paixão e capacidade musical.
Tu és cantor, produtor, multi-instrumentista; mas as primeiras faixas deste projecto que foram disponibilizadas soam bastante minimalistas. A tua intenção foi simplificar, numa abordagem de voltar aos básicos, mesmo sabendo que alguns destes beats já foram feitos há alguns anos?
Sim. Quando eu fiz muitos destes beats, essa foi, de certo modo, a abordagem que eu estava a tomar — crua, despida, nada de muito requintado, apenas um beat sólido e forte, para sentires e abanares a cabeça. Estava a ir por aí e a não acrescentar muitos instrumentos ou enfeites, a manter a cena despida e dar ênfase ao ritmo e aos drums; algo em que o beat te hipnotizasse, porque eu acredito que há poder na simplicidade e na repetição. Estava a tentar captar essa sensação de hipnose.
O loop perfeito.
Exactamente.
Alteraste ou refizeste alguns dos beats mais antigos, ou o que ouvimos corresponde ao que foi feito na altura?
Não, eu não fiz nenhumas alterações. O que ouves é o que foi feito na altura. O beat mais antigo dali é de 2004, o que é fixe — poder estar ali e encaixar com faixas que eu fiz no ano passado, e tudo funciona conjuntamente. Isso é fixe.
Em 2004 eu ainda nem sabia ler…
[risos]
Gostava de saber a tua opinião acerca da categorização desta sonoridade como “lo-fi beats”. Penso que esta ideia vem da produção do J Dilla, que deu origem a essa designação, apesar de os métodos dele serem tudo menos “lo-fi”. Na tua opinião, por que razão este tipo de beats são associados a essa sonoridade, apesar de artistas como tu e muitos outros usarem as mais sofisticadas máquinas para os produzir?
Daquilo que eu percebi, eu acho que o termo “lo-fi” é aplicado a coisas que usam certos samples, como samples de Fender Rhodes e de jazz, de cordas tranquilas. Isso parece ser aquilo que as pessoas categorizam por “lo-fi”, por oposição à definição literal de “lo-fi”, que quer dizer “low-fidelity”. Por isso, nesse sentido, acho que alguns dos meus beats podem ser categorizados como tal, porque eu, de facto, gosto de samples de Fender Rhodes, de piano, de jazz, com padrões de drums de boom bap. Mas, sabes, isso são coisas que as pessoas têm feito desde os anos noventa. Não é nada de novo. Na verdade, eu só faço beats de hip hop, e as pessoas podem chamar-lhe o que quiserem e pôr em qualquer sub-categoria que queiram. Para mim, são só beats.
O último artista não-português com quem falei foi o Lord Apex, um rapper de Londres que tem uma série de projectos intitulada Smoke Sessions (e da qual saiu recentemente o terceiro volume), um título que, por si só, já diz tudo. Do que tive acesso, tu descreves este novo álbum como “tape hiss, turntables and THC”. És daqueles artistas que vê a criatividade potenciada por esse tipo de substâncias?
Sim, sem dúvida. Desde que era novo que comecei a experimentar substâncias que alteram a consciência, especialmente sendo uma pessoa criativa com esse tipo de mente. Eu tenho curiosidade sobre alterar a minha consciência. Experimentei essas coisas e, de facto, teve um efeito na forma como compreendo o som e a música. Fez-me sentir as vibrações e perceber as texturas. Não ser apenas uma coisa que tu ouves com os ouvidos, mas que sentes com o teu corpo todo. De certa forma, isso influencia-me quando crio música, pensar que, quem quer que seja que vá ouvir sinta uma certa vibração, uma certa textura, e talvez até visualizar certas coisas com o olho da mente. Nesse sentido, as substâncias psicadélicas têm sido uma inspiração para mim.
Já estás ligado à Stones Throw há quase quatro anos. Como tem sido trabalhar numa label com tanto talento e tantos nomes respeitados? Já pensaste em colaborar com alguns desses artistas, ou preferes criar música como um one-man show?
Tem sido uma bênção trabalhar com a Stones Throw; tem sido como um sonho, porque eu sou fã da label e da música deles desde os meus 13/14 anos — em 1999, quando o álbum de estreia do Peanut Butter Wolf, o My Vinyl Weighs a Ton, saiu, lembro-me de comprar o CD e de ouvir na minha coluna, no meu quarto. Por isso significa muito para mim agora estar nessa label com génios musicais como o Madlib, o Dam-Funk e pessoas assim. Estou feliz por eles terem apostado em mim, porque, quando eles me contrataram, eu era, basicamente, um artista desconhecido. Mas o Peanut Butter Wolf ouviu a minha música e ouviu lá qualquer coisa que o fez acreditar em mim. Estou mesmo grato. Eu tenho planos para colaborar com alguns artistas da editora, mas não posso desvendar nomes neste momento. Provavelmente, vai acontecer no futuro.
Sei que cresceste rodeado de instrumentos, muito por culpa da tradição musical da tua família, por isso acredito que ouvias todo o tipo de música. Ainda assim, quais foram as tuas maiores influências? Que artistas tiveram, realmente, um impacto significante na tua música?
A maior influência que me vem à cabeça é o James Brown, sem dúvida; porque, basicamente, o padrão do hip hop vem do James Brown, que é o groove forte, repetitivo, e batidas e baixos pesados. Tudo isso vem do James. E essa é uma das primeiras coisas de que eu me lembro: quando era pequeno, o meu pai tinha uma colecção gigante de discos e estava sempre a ouvir música diferente na aparelhagem dele. E lembro-me de ter, sei lá, 4 anos, ele estar a ouvir James Brown e ser um dos primeiros momentos em que eu lhe perguntei, especificamente, “quem é este tipo? Que música é esta? Qual é o nome dele?”. Eu nunca tinha ouvido nada assim: a energia dele, ele a gritar ressoou em mim. Essa é, provavelmente, a minha primeira e maior influência, sem dúvida.
Hoje em dia, as fronteiras dos géneros musicais estão cada vez mais ténues. Tu és um excelente exemplo disso: é impossível fechar-te numa caixa de “soul”, “r&b” ou “hip hop”. Essa liberdade na tua música acontece propositadamente, ou por consequência das tuas influências dispersas?
Eu acho que é uma mistura das duas. Eu sou o tipo de pessoa que — e isto é, talvez, produto da forma como fui educado, porque o meu pai é igual — ouve tudo, todos os tipos de música. Não sou uma pessoa que só ouve rock ou metal ou hip hop. Eu oiço tudo, e foi nesse ambiente que fui educado, por isso é assim que eu sou, naturalmente, como ouvinte de música. E isso revelou-se quando comecei a fazer música. Um dia pode apetecer-me fazer rock e no dia seguinte posso experimentar outra coisa porque me sinto inspirado para fazer uma coisa diferente. Acho que não deves ter receio de te deixares levar pela força criativa, seja qual for a direcção que ela te está a apontar; se fores uma pessoa criativa, deves deixar-te levar, simplesmente, e não fechares-te numa caixa ou impores limites a ti próprio. E isso é uma coisa sobre a qual eu penso conscientemente: tentar não ter medo de mudar o meu estilo, a minha sonoridade; de experimentar coisas diferentes, fazer álbuns que soam diferentes do último. Todos os meus heróis musicais faziam isso — Prince, Miles Davis, Beastie Boys, até o James Brown. À medida que o tempo foi passando e as carreiras deles progrediram, eles mudaram e foram por diferentes caminhos e sonoridades. É esse o tipo de artista que eu me esforço por ser.
Tens ainda outro álbum a caminho ainda para este ano. O que nos podes revelar sobre esse?
Então, o álbum que vem a seguir é parecido ao meu álbum de estreia Exotic Worlds and Masterful Treasures. É um regresso a canções em que eu canto. Lancei alguns projectos instrumentais e o próximo vai ser um regresso à música orientada para a canção, para a parte vocal. Vão haver algumas coisas semelhantes ao meu primeiro álbum e algumas um bocado diferentes; uma expansão e diferentes temas líricos. No fundo, uma diferença suficiente para que seja uma evolução, um passo seguinte, e não apenas fazer o mesmo álbum. Mas tem, sem dúvida, a vibe do primeiro, mais soulful e vocal e com mais instrumentos tocados na hora e misturados com os beats.
Tens alguma previsão de quando será revelado?
Provavelmente, vai ser no início do próximo ano.