LP / CD / Digital

Madlib

Sound Ancestors

Madlib Invazion / 2021

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 02/02/2021

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As figuras do editor, na literatura, ou do curador, nas artes plásticas, existem quase sempre num plano afastado da luz, exterior aos focos de atenção, mas, na verdade, tanto um como outro tornaram-se peças fundamentais dos processos criativos que rendem incontáveis obras de referência. São quase sempre pessoas que estabelecem relações de absoluta confiança e intimidade com os artistas com quem trabalham, acompanhando os seus processos de criação, oferecendo conselhos e opiniões que têm claro efeito nos resultados finais.

O editor encara o manuscrito não como mandamento inscrito em pedra, mas como potencial, como ponto de partida para algo maior: ele pode interferir na arquitectura emocional da obra, pode sugerir que se vá mais fundo na definição dos contornos de determinada personagem, pode até manipular a ordem de certos capítulos, logrando ver o que o fervor criativo de quem escreve às vezes não permite, tão imerso que possa estar no vórtice representado por cada página.

Por outro lado, o curador, com o seu acesso directo ao atelier onde vão sendo criadas as obras nessa idêntica vertigem que impele o pintor na direcção da tela, pode trazer no seu olhar mais distanciado as orientações de que o criador precisa num determinado momento, levando-o depois a aprofundar uma determinada série ou a refinar uma certa abordagem, descartando outros gestos que possam não estar a render peças do melhor nível. E, no final, é ao curador que compete, a partir do caos do atelier, selecionar as peças que vão chegar ao olhar do público, montá-las na sequência que melhor há-de servir a visão do autor.

Sound Ancestors, o álbum que a Madlib Invazion agora edita, é o resultado de um processo semelhante, de uma dinâmica muito particular estabelecida entre o impulso criativo de Madlib, aka Otis Jackson Jr., e a audição crítica de Kieran Hebden, o músico, produtor e engenheiro de som britânico que tem carreira estabelecida como Four Tet.

Otis e Kieran conhecem-se há cerca de duas décadas e estabeleceram uma relação mediada por Eothen “Egon” Alapatt, que foi label manager da Stones Throw e agora é sócio, confidente e manager de Madlib. Paixões partilhadas pelas mais esotéricas e remotas regiões da memória musical impressa em vinil e pelos mais refinados néctares vínicos foram motivando encontros ao longo dos anos até que, como revelado em peça recente publicada no New York Times, e após apresentar um esboço de uma ideia de abordagem curatória e editorial à produção inédita de Madlib com base em excertos, fragmentos e ideias que Egon lhe foi fazendo chegar, Hebden convenceu o produtor americano a avançar com o projecto que acaba de aterrar nos escaparates.

O arranque da carreira discográfica de Madlib remonta a 1995, quando assinou as suas primeiras produções para os Tha Alkaholiks antes de lançar, no ano seguinte, o seu próprio grupo, The Lootpack, trio cujo álbum de 1999, Soundpieces: The Antidote, marcou o início da longa associação que Madlib manteve com a Stones Throw de Peanut Butter Wolf, etiqueta que carimbou dezenas dos seus projectos, das suas celebradas parcerias com J Dilla (Jaylib) e MF DOOM (Madvillain) a pontuais registos colaborativos com artistas como Declaime ou Guilty Simpson além, pois claro, das inúmeras criações fantasiosas geradas pela sua hiper-actividade de produção, quase sempre assinadas por alter-egos: Ahmad MillerBeat KonductaD. RelmondDezoDJ Lord SuchDJ RelsDuma PetersonJoe McDuphreyJoe McDuphrey ExperienceJunior TaylorKamala Walker and The Soul TribeKay HendersonMalik FlavorsMedicine ManMonk HughesMonk Hughes & The Outer RealmMorgan Adams IIIOtis Jackson Jr. TrioQuasimotoR.M.C.Russel JenkinsSound DirectionsSpectrum 77SuntouchThe Eddie Prince Fusion BandThe JazzisticsThe Last Electro-Acoustic Space Jazz & Percussion EnsembleThe LoopdiggaTyrone FosterYesterday’s Universe All StarsYesterdays New QuintetYoung Jazz Rebels.



E olhando, por exemplo, para os projectos de “jazz” acima enumerados ou para os vários lançamentos em que vestiu a capa do Beat Konducta – e que prestaram sentidas homenagens à produção musical da Índia, às bandas sonoras de série B ou ao toque particular de J Dilla –, não será demasiado rebuscado pensar em Madlib como o mais puro representante musical da ideia de colagem de que foram pioneiros nas artes plásticas artistas como Picasso ou Georges Braque. As ideias de apropriação, de descontextualização e sobreposição tão próprias da colagem existem todas na obra de Madlib, um ávido colecionador que sempre resgatou do passado significantes pedaços de música que combinou de formas inusitadas, buscando muitas vezes a falha, a ideia de interrupção, muito mais do que a harmonia e a tentativa de disfarce da costura que liga dois elementos de origem diferenciada, e, pois claro, mostrando-se mais do que apto a juntar a tudo isso as suas próprias “pinceladas”, ele que é multi-instrumentista capaz de combinar o seu próprio output no estúdio com os sons criados há décadas por músicos de origens muito diversas. Virá daí o título do novo álbum, Sound Ancestors.

Esses “antepassados sonoros” de Madlib cruzam-se no novo álbum porque o estúdio é, na verdade, uma máquina do tempo (de facto, no título do prelúdio que serve de abertura do alinhamento, Madlib declara mesmo que “There is No Time”): os Ethics, grupo de soul nascido em finais dos anos 60 em Filadélfia, surgem em “Road of the Lonely Ones”; os Six Boys in Trouble foram convocados a partir de um álbum de gravações de campo da Folkways, lançado em 1959 (o incrível Street and Gangland Rhythms, Beats and Improvisations, disponível, imagine-se, no Bandcamp), para adornarem “Duumbiyay”; Phife Dawg “toca bateria” para Lyn Collins em “Chino”; os Quartabê, grupo contemporâneo de São Paulo, Brasil, cedem matéria recente de 2017 e o seu próprio nome para “One for Quartabê / Right Now”; os Young Marble Giants saltam directamente de 1980 para dentro de “Dirtknock”; os Sly, Slick and Wicked de 1971, aqui representados com sample de “Love Gonna Pack Up (And Walk Out)”, servem para, no tema “Two For 2 – For Dilla”,  Madlib fazer ao malogrado génio de Detroit o mesmo que B Fachada fez ao mestre Sérgio Godinho; Terry Britten, guitarrista que trabalhou como músico de Cliff Richard e que escreveu para gente como Olivia Newton-John, cede o pulso da sua solitária criação em nome próprio de 1969, “Bargain Day”, para “The Call”; e os Mighty Tom Cats, que secundaram George Benson no clássico Harlem Underground, vêem o original da bomba “Cheeba Cheeba” ser recuperado para “Riddim Chant”.

E esses exemplos são apenas a ponta de um iceberg que terá logo abaixo das águas dos licenciamentos declarados inúmeros outros pedaços submersos, tão significantes quanto obscuros, de matéria com que o produtor de Oxnard se foi cruzando nas suas escavações vinílicas, samplando, programando em beats que ficaram semi-terminados à espera de dias melhores, e, por vezes, até esquecidos. Foi aí que Egon entrou, mediando o envio dessa matéria vasta para Four Tet que teve o trabalho de, em primeiro lugar, olhar para toda essa produção dispersa como um editor que pega nos primeiros esboços de um manuscrito, impondo-lhes o seu meticuloso olhar, encontrando as ligações que faziam sentido, colando as diferentes “páginas” em “capítulos” estruturados e, finalmente, dando-lhes a organização final que resulta no “livro” de que agora todos podemos desfrutar. Como o curador que resgata ao caos do atelier do pintor todas as telas que, dispostas na galeria ou no museu, ganham o sentido de uma exposição. Esse olhar de Hebden, essa capacidade de unir fragmentos dispersos, de os encadear, e no final de os equilibrar através de uma masterização cuidada (e deve dizer-se que os ficheiros FLAC – ainda aguardo a minha cópia em vinil… – soam bem melhor do que o que as plataformas de streaming nos mostram) é fundamental para a elevada qualidade de Sound Ancestors.

Não será, no entanto, um favor o que se presta agora a Madlib se esta atenção que sempre mereceu só lhe for dispensada porque o nome de Four Tet surge aliado ao seu ou porque o New York Times lhe deu honras de “feature”. Ainda há alguns meses o seu projecto com Karriem Riggins, Jahari Massamba Unit, passou largamente despercebido, e isto apesar de ter sólidos argumentos que lhe permitiriam figurar em listas de melhores registos do ano (como de resto aconteceu aqui).

Este Sound Ancestors é, enfim, um portento: pode dizer-se que pega no melhor de Madlib – a sua capacidade de reconhecer os melhores samples, de lhes extrair vida diferenciada da que originalmente manifestaram, de escrever direito pelas linhas tortas do tempo, de programar baterias pesadas, de se escapar para fora da órbita das cadências quadradas, de soar psicadélico e espiritual, experimental e absolutamente clássico ao mesmo tempo – e dispensa a parte menos interessante do seu lado mais indulgente, como acontece quando sacrifica uma ideia musical que está a resultar no altar do “i don’t give a fuck” e a faz implodir só porque sim. E isso deve-se, claramente, a Four Tet, que transforma este álbum numa obra de fôlego imenso, que vamos estar a descobrir por muito tempo, tamanhas as suas camadas, inscrevendo-o de uma penada no panteão das melhores criações de sempre de hip hop instrumental.


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