LP / Digital

Spillage Village

Spilligion

Dreamville / Interscope / 2020

Texto de Paulo Pena

Publicado a: 11/11/2020

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O mundo suspirou de alívio. Os Estados Unidos da América voltaram a respirar com a queda da Trump Tower, do muro cor-de-laranja, da máscara da ignorância. Os próximos tempos não serão, certamente, pacíficos, mas parece renascer alguma esperança comum, sentida em todo o globo, neste ano catastrófico. E não deixa de ser curioso o facto de que na Geórgia – estado cuja capital, Atlanta, é a cidade-natal dos para aqui chamados Spillage Village – algo de histórico tenha acontecido: o partido democrata, encabeçado por Joe Biden nas eleições presidenciais, levou a melhor numa vantagem tangencial (decimal, precisamente), contribuindo decisivamente para a melhor das notícias de 2020 – a não reeleição de Donald Trump como presidente dos EUA. 

Nesta senda de boas notícias, também na música se fizeram revoluções, especialmente durante um advento que nada de bom agoirava. A tensão que se veio a intensificar desde a morte de George Floyd teve um reflexo estrondosamente impactante na música americana, tida, desde sempre, como arma (das que se devem usar) valiosa no combate aos problemas raciais estruturalmente enraizados na sua sociedade. E foi nessa onda de lançamentos de artistas que não se deixaram abater pelos efeitos da pandemia que os Spillage Village apresentaram Spilligion, um álbum que merecia outros contextos e condições, mas que chegou em boa hora. Quem sabe se na melhor hora, no fuso horário de Atlanta. 

Depois da trilogia das mixtapes Bears Like This, surge o primeiro álbum oficial do colectivo com nomes conhecidos, tais como JIDEARTHGANG ou 6LACK. Com “End Of Daze” e “Baptize” como singles, são estes dois temas que arrancam a impressionante performance deste grupo no Tiny Desk (Home) Concert, num vislumbre daquilo que seria este projecto em grandes palcos e capelas. É neste sentido que Spilligion merecia outros contextos e condições: sabe a pouco ouvir cada faixa deste glorioso disco no recanto do lar entre paredes e auscultadores. E é nessa actuação comedida mas preenchida que se torna claro que este não é um álbum para ficar em casa. Pertence às ruas; ao povo; às paradas; às celebrações, sejam elas religiosas ou não; à vida sem distâncias, sem medos e inibições, sem máscaras, sejam elas quais forem; a Deus, seja Ele quem for (e para quem for). 



Do gospel ao rap, da pandemia ao abuso policial, cada membro explora os seus caminhos nesta mistura de sonoridades, abordagens, estéticas e estados de espírito. Para os amantes das rimas, JID é o elemento em destaque num campo que lhe é inacreditavelmente confortável. As teias que tece em cada conjunto de versos (aparentemente sem qualquer esforço) fazem dos nossos ouvidos presas fáceis, que rapidamente se deixam envolver nas suas linhas ardilosamente desenhadas para nos capturar. Veja-se, oiça-se, leia-se a sua deixa em “Baptize”, num verso a soar a perfeição, e cujo videoclipe materializa toda a grandeza exuberante que se espera deste trabalho. 

Os versáteis EARTHGANG assumem as rédeas desta carroça sobrelotada, com Johnny Venus no centro da harmonia que se desenvolve em cada canção entre todos os participantes. Quer nos versos, quer nos refrões, sente-se o seu fio-condutor que liga cada ponto, sem roubar protagonismo. Transparece liderança numa equipa recheada de individualidades auto-suficientes. A união faz a força, e é através dessa partilha de poderes que estas panteras negras resplandecem. 

Após o baptismo inicial, introduzido pelos pastores desta igreja em “Spill Vill”, os coros de “PsalmSings” dão iniciam à festa, às celebrações, ao gospel, com uma simples mensagem: “We love you with the love of the Lord”. De seguida, JID chega-se à frente nas preces de “Ea’alah (Family)”, num renhido confronto pacífico de rimas entre os rappers da Dreamville – o próprio JID, Hollywood JB e Johnny Venus. Chegamos a “Mecca”, e a canção ganha contornos de musical da Broadway, numa viagem pelo mundo, para espalhar amor, sugerida pelo incansável coro (“Spread the love all ‘round the world”).



“Judas” trai a trajectória sonora ascendente até então, denunciando uma versão de “Hit the Road Jack” a abrir a faixa com refrão de tom emprestado por Ray Charles (de “I Got a Woman”); quem a termina é Chance The Rapper, numa conclusão que, pelo ambiente instalado, traz à memória luzes de uma “Ultralight Beam” com o rapper de Chicago no gospel de Kanye West em The Life Of Pablo. Segue-se “Oshun”, onde as batidas acentuam um ritmo mecanicamente definido que se vai difundindo com a voz de 6LACK. Num álbum com tantas portas a abrirem-se, talvez seja nesta divisão que a clausura aconteça, pelos melhores dos motivos – dá vontade de ficarmos presos nesta. Ainda assim, quando uma porta se fecha, abre-se uma janela, pela qual entra “Cupid” com uma flecha cujo efeito provoca no atingido uma febre de dança apaixonada e contagiante.

Já cansados de tanto movimento, “Shiva” acalma as emoções por meio de quem tem mais do que cinquenta sombras de cinzento. E mesmo o tema com menos cor nesta explosão de paletas não deixa de ter o seu brilho, em tons menos coloridos mas igualmente vívidos. O primeiro single do LP fica para o fim, na lógica de se guardar o melhor para mais tarde, e essa espera é compensada pelas prestações deslumbrantes dos vários intervenientes na faixa. A obra tem o seu término nos temas escolhidos para fechar o concerto promovido pela NPR Music: e que final grandioso, com clímax em “Hapi” e desfecho em “Jupiter”, enquanto rolam os créditos desta longa-metragem. 

Em Spilligion, os ursos voltaram a reunir-se à volta da fogueira na aldeia, e aqueceram toda a floresta com cânticos, guitarradas, batuques, palmas, gritos e risos. Um salto de dimensões arrojadas por parte de uns Spillage Village musicalmente emancipados, que suplica por proporções maiores do que as que se verificam à data, por forças maiores. Spilligion pede união, mistura, confraternização, calor humano. E, por outro lado, pede uma América despolarizada, pacífica, nivelada, resolvida. Mas, independentemente de todas essas pedras no sapato, o grupo de Atlanta continua a caminhar de sorriso no rosto e feridas à vista, e faz deste novo disco antídoto para todos os males da aldeia. Palavra do Senhor. 


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