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Fotografia: Rui Ferreira
Publicado a: 13/11/2024

Com OTTO, Camille Émaille e PHONOSPERMIA em acção.

Space Festival’24 — Dias 9 e 10 (Caminha): o tímpano é o lugar

Fotografia: Rui Ferreira
Publicado a: 13/11/2024

Paragem terminal na viagem do Space Festival, e as terras de Caminha em destaque por acolherem alguns dos momentos mais aguardados desta edição. O Space na linha de costa junto à foz do Minho — entre Forte do Cão, a sul, e Forte da Ínsua, a norte — para desaguar num mar de estímulos aos ouvidos, dadas as propostas de mão cheia servidas por mentes dos campos sonoros mais ousados na livre criação. O festival que traz à programação nomes fora dos cenários da experimentação e improvisação lusa, como os três percussionistas franceses, que como OTTO se estreiam em passagem tripla por palcos nacionais — depois de Lisboa e Porto, marcaram presença em Caminha —, também eles numa itinerância rumo aos territórios de baixa densidade. 

O concelho de Caminha, que conta com um novo espaço cultural para a música e que ainda tem o brilho do novo nas paredes. Em actividade desde Janeiro de 2023, o Auditório Municipal Ramos Pereira é a casa da Academia de Música Fernandes Fão, de Vila Praia de Âncora. A proposta da tarde de sábado, dia 9, passou pelo “Cine-música” como espectáculo de apresentação do trabalho desenvolvido entre o Space Ensemble (SE) e os jovens músicos da academia local. Sendo que os nomes da programação “são cuidadosamente escolhidos para cada espaço e, em alguns casos, são os próprios espaços que inspiram as propostas dos artistas”, como referem as linhas de apresentação do festival, neste caso com os artistas em casa própria como proposta. Um programa feito em torno da construção de peças musicais para acompanhar cinema mudo ou pequenos filmes documentais ou de animação. O SE que foi Samuel Martins Coelho (na direcção musical), Miguel Ramos (baixo), João Martins (saxofones) e Sérgio Bastos (piano) junto à orquestra dos jovens músicos composta por 8 violinos, 2 violoncelos, 2 clarinetes, oboé, trompa, 3 saxofones alto, 2 trompetes e uma marimba. Com o destaque do programa apresentado a ir para o trecho de Strike, o filme que Sergei Eisenstein inscreveu nos cânones do cinema em 1925. O filme que traz a greve à tela como desobediência. Um mestre russo no cinema e uma orquestra que começa o filme em ritmos de palmas, como que agradecendo a obra, mas também a marcar o tempo e a cadência da laboração onde “Está tudo calmo na fábrica” como legenda em título da primeira de seis partes que compõem o todo. Soubemos que a construção dos ritmos das palmas foi feita com recurso ao jogo de cartas usadas nos processos de composição na música. Um dos muitos modos para trabalhar no ensino-aprendizagem da música de modo a promover a imprescindível arte criativa e libertadora do ensino mais formal. Houve aqui belos reflexos disso, em simultâneo com estas idas a palco de jovens e promissores músicos está o espectáculo e a sua construção, desempenhos de igual importância e que nos recordam que tão ou mais importante que o chegar é a percurso para lá chegar. Aqui está mais um campo de acção do SE e dos seus músicos como interventores formativos. O SE que já musicou em palco, e na integra, uma primeira projecção de “A Greve” de Eisenstein. Outras se seguirão logo em 2025, ano em que se celebrarão os 100 anos da obra — a não perder.



O que não queríamos perder era a tonalidade dos tapan de OTTO trazida para palco do Teatro Valadares em Caminha. Este esguio e vertical teatro de 1898, de palco à italiana — uma sala que o Space Festival tem promovido ao público desde 2021, um dos espaços que mais vezes acolheu o festival, assim como Teatro Esther de Carvalho em Montemor-o-Velho. Duas belas e vetustas salas, renovadas e a mostrar vitalidade e secular funcionalidade. OTTO são Camille Émaille, Pol Small e Gabriel Valtchev, três operadores do instrumento tapan, que ocupa um vasto espaço cultural dos Balcãs ao médio oriente. Um tambor de dupla face que vai dos graves, na superior, aos agudos, na inferior, e por isso cobre o espectro das frequências do campo auditivo ao seu máximo. OTTO explora essa possibilidade de forma vigorante. Começam por revelar o que mais lhes interessa — reformular as possibilidades musicais com um instrumento ancestral, trazer e fazer disso um lugar contemporâneo. Neste corpo de percussão, utilizam peles sintéticas e desafiam os puristas da tradição que assim “retiram” este trio dos tocadores de tapan. O que ouvimos revela uma entrada nesse mesmo espaço da ancestralidade da música, de carácter cíclico, repetitivo e minimal. Algo assim talvez soassem as primeiras manifestações da música nos alvores da humanidade. Mas o tapan nas seis mãos de OTTO é levado a revelar um princípio de sabedoria maior — fazer muito com tão pouco. Essa dualidade tímbrica permite-lhes sobressair nos desvios circulares do movimento novos rumos que vão inscrevendo o trajecto percorrido. É um contundente transe sonoro que vive do escape ao normativo som. A baqueta em ponta de colher marca o tempo grave, e a baqueta de vara fina desenvolve o trémulo dos vibrantes agudos. Há uma condução telepática, intuitiva e cúmplice entre os três xamãs sónicos. Tiveram no desenho ondulante produzido na aproximação da pele dos agudos aos microfones um efeito com uma maré viva sonora, entre o enigma e o fascinio. Camille Émaille juntou o maior dos seus gongos javaneses para desviar, num cumulo sonoro, para seguir viagem desenvolta. E o que se ouviu em seguida foi como que um arco diáfano ligando-se ao que o solo de domingo haveria de trazer da sua infindável mente criativa. OTTO que têm em Rond comme une t​ê​te de cheval um primeiro registo, num primeiro lançamento em editora própria. Como nas duas possibilidades sonoras dos tapan, também nessa edição em vinil verde-gosma há dois lados — um A e mais ancestral, e um B mais exploratório e contemporâneo com “tête de cheval”; frescura redentora das percussões, como o desejado. Difícil terá sido, para muitas mentes, ficar na cadeira sem levantar pé, perante tão avassalador convite à dança. Tapan é, como no nome de raiz na palavra grega, o lugar do tímpano, a membrana de cada ouvido. Trazemos duas dentro de nós, as duas membranas dos fulgurantes tapan na memória auditiva mais recente.



O segundo dia em terras de Caminha fazia-nos despertar para o segundo concerto a contar com Camille Émaille, agora a solo, a avivar a memória o vivido e reportado do solo que nos deu a conhecer a sua mestria no Jazz em Agosto’23. Aqui apresenta-se em alternativa na garagem do Hotel Meira, em Vila Praia de Âncora. A primeira ideia programada indicava a piscina, para o que imaginávamos que seria um literal mergulho. Acabou por acontecer isso, mas num outro estado que não o líquido, por causa disso mesmo — a chuva. Teve expressão o tal mergulho, mas no éter — a outra essência da matéria. Émaille monta um cenário, uma escultura sonora emudecida, que precisa de Camille para se revelar em todo o potencial. Três gongos javaneses, o maior horizontal, os outros suspensos, intrusos entre bombo, tímbalo e tarola. Uma panóplia de peças tímbricas entretanto cairiam às mãos da, chamemo-la aqui, oleira na roda, uma entidade à Rosa Ramalho da percussão — já que estamos no Minho, e dada a inventividade figurativa com que faz surgir e moldar o som. Começa com um címbalo à mercê das suas mãos sobre o gongo, espaço circular criativo. É só o começo. Voltam as esferas raiadas metálicas e outros detalhes tímbricos, muitos desenhos cintilantes e uma tarola com discos metálicos, armadilhas com as tais pastilhas sonoras, piezos que disparam com respostas aos estímulos. Também nisso há uma banca de moldagem do som. Se no outro concerto vivido nos remeteu para a função de “moleira” sonora, desta feita o recurso estilístico da escrita leva para outra arte, vendo Camille como “ceramista” pela moldagem plástica da matéria sonora. Surgem uma vez e outra as ondas da maré dos gongos, espaço longínquo que transporta, razão boiante. É um prazer de ponta a ponta estar por diante, numa sensação simultânea de estar por dentro, a que não é alheio o facto de se estar num subterrâneo lugar, interno, num abrigo para viver a sonoridade no tímpano — membrana fundamental de ligação. 



O concerto derradeiro do festival aconteceu no Teatro Valadares, trazendo a palco um outro fundamento sonoro, a alquimia dos sons. Com PHONOSPERMIA, a peça mais recente produzida pela associação portuense Sonoscopia. Uma criação colectiva com Angélica Salvi na harpa, Gustavo Costa na percussão, Henrique Fernandes nos objectos e instrumentos inventados, Tiago Ângelo na electrónica e Clara Saleiro nas flautas transversais. Como nos confessou Gustavo Costa, trata-se de uma peça de exigente execução, que parte da ideia de juntar no espaço criativo da música instrumentos inventados com instrumentação clássica e a electrónica. O que se escuta é uma abordagem que parte para os domínios do não concreto, indescritível na ousadia dos sons. Mas estamos num campo distinto do acusmático, até podemos ser seduzidos a pensar sobre a identidade do som, da obscuridade da origem dos sons, como se referia Pierre Schaeffer como música écoute réduite. Aqui estamos diante dos sons concretos, mas que não deixam desvendar todo o mistério na sua fonte. Ouvimos o desconhecido amparado pela reconhecida musica abstracta. Há uma linha, feita eixo central desta narrativa e que vem da mesa de trabalho sonoro de Henrique Fernandes. Justamente aí estão os instrumentos não convencionais, ou melhor, até as fontes sonoras que não instrumentos musicais. A ideia magicada e que a imagem constante de uma pinha a rodar, qual perpetuum mobile da figuração musical. A expressão musical com passagens estendidas tocadas em modos repetitivos, em incontáveis vezes, são matriz e remetem a essa figuração permanente. É disso um discurso sonoro entre o fogo e a água, ouve-se o lugar concreto da chama e do rescaldo. Mas é um som que procura sem achar, que tal como lançam na proposta os músicos-compositores em cena, na razão do que vemos e não vemos, “ainda não sabemos o que nos une” e para esse inquietude resta a imaginação e “nada mais imaginário e poderoso que o som”. Vamos caminhando com a mente assente nessa mesma matéria intangível e não idiomática neste caso concreto. Um exercício feito de estímulos e que se inscreve no caderno de notas, onde se acumulam as pistas que se vão recolhendo, para desvendar os mistérios fascinantes em matéria dos sons.


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