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Publicado a: 28/11/2017

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[TEXTO] Alexandre Ribeiro

Imaginem uma orquestra em que, em grande destaque no centro do palco, conseguimos visualizar um piano e uma drum machine. De repente, o maestro assume o seu espaço e, em vez de pegar na batuta, agarra-se ao microfone. Vira-se para uma sala cheia e encara-a como se fosse proferir as suas últimas palavras. “Mas cá dentro/ Um escuro constante/ Que sustenta/ Um vazio gigante”, atira. De súbito, tudo desaparece. No centro, Pedro Sousa apercebe-se que é só isto. O tal “vazio gigante” é, afinal de contas, o trabalho solitário de um homem.

Black Gipsy é uma autobiografia com psicanálise metida ao barulho. No novo álbum, o artista controla todos os momentos e utiliza a sua música como terapia para controlar os seus demónios, algo que acontece de forma frequente desde que começou esta aventura a solo. A abrir o jogo, “Caravela” é o reclamar de uma atitude de aventureiro, de alguém que saiu da zona de conforto para procurar o que não encontrava em “casa”, geograficamente e mentalmente falando.

Eu Sinto”, tema que nos remete para “Fade” de Kanye West, é música de dança com pés e cabeça, uma peça de qualidade a partir dos sítios mais inusitados. Numa malha com infusão house, a cadência das palavras envolve-se com o instrumental sem dificuldades porque o compositor e o produtor vivem na mesma cabeça. Os dois lados de uma moeda ou os dois hemisférios de um cérebro. “Tudo o que eu sinto/ Seja mau ou bom é meu/ E tudo que eu vivo/ Seja mau ou bom sou eu”, desabafa na terceira faixa de Black Gipsy. Com o passar do tempo, Pedro e Deville ficam mais difíceis de separar. A mágoa com a indústria musical é problema pessoal de quem já viveu todos os cenários possíveis – é importante não esquecer que, em termos comerciais, o artista atingiu o apogeu da sua carreira com os Makongo e SP & Wilson.

“E influências?” A pergunta tão recorrente nas entrevistas com artistas está respondida em “Eu Vou”, um name-dropping de estrelas da lusofonia como Rui Veloso, Caetano Veloso, Mayra Andrade, Sara Tavares, Chullage, Seu Jorge, Bonga, Carlos do Carmo, Carlos Paredes, António Variações, Paulo Flores, Cesária Évora, Amália Rodrigues ou DJ Nel’Assassin. Um supergrupo de luxo que, uma vez mais, faz perfeito sentido dentro da cabeça deste homem.

Ao contrário de Sou Quem Sou, disco em que encontramos alguns temas que poderiam muito bem ter ficado num lado B, Black Gipsy soa coeso e sem “peso-extra”. 43 minutos divididos por 11 faixas são o volume ideal. Cada faixa tem a sua importância e, se existem três ou quatro músicas de nível assombroso, “Para Fora” encaixa nesses trâmites. Ritmo embebido em graves a dar o pontapé-de-saída e, de repente, entramos num mood totalmente diferente, quase burlesco com um enleado irresistível de acordeão “geneticamente” modificado, piano a adensar o drama e sintetizadores a anunciarem que as coisas estavam prestes a mudar, mais uma vez. A imprevisibilidade é uma qualidade quando falamos do membro da FamiliBizno. O contrabaixo proeminente a saltitar na segunda parte castiga-nos a falta de atenção e desarma-nos, deixando-nos à mercê da matreirice e genialidade de Deville. É aí que entram os drums e é aí que ele nos tira definitivamente o tapete debaixo dos pés. O que é que virá a seguir?

A pergunta no parágrafo anterior é necessária para não perdermos o norte em Black Gipsy. Em “Pensar em Mim”, Teylon Sousa toca saxofone numa belíssima canção pop. Ouvimo-lo na mesma linha de Agir – a forma como entrega os versos relembra-nos “Deixa-te de Merdas” – , mas a trazer outra elegância e autenticidade, algo que faz bastante falta à elite pop portuguesa.

A última música, “Buracos Negros”, já está guardada para o primeiro grande blockbuster sci-fi português. Não? Pois, também não interessa, na verdade. SP Deville não pode esperar e o filme da sua vida está a ser escrito na arte que exorciza através de cada letra, melodia ou beat. Se fecharem os olhos depois de carregarem no play, é possível que se imaginem a dançar em Luanda, a mostrar as novas criações no escritório da Warp em Londres, a serem engolidos pelo bass no Lux Frágil ou atirados para fora de pé numa qualquer Noite Príncipe no Musicbox. Tantos universos só poderiam estar reunidos na música de um grande talento. Um “Preto Cigano” a definir (ou destruir, depende da percepção de cada um) os limites do cancioneiro lusófono.

 


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