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Fotografia: Rita Carmo
Publicado a: 26/03/2024

Crónica de um bálsamo para seguir de punho bem erguido.

Soundwalk Collective com Patti Smith no Belém Soundcheck do CCB: clube dos poetas sempre vivos

Fotografia: Rita Carmo
Publicado a: 26/03/2024

No final de tarde, numa Lisboa empoeirada como, aliás, o país de lés-a-lés — da poeira que paira, e sufoca — na densidade das partículas saharianas e da primavera de destroços (como evoca Rui Miguel Abreu em preâmbulo a propósito da vinda de Amaro Freitas para o arranque deste Belém Soundcheck) que emerge nuns pós vindos das eleições de 10 de Março. Veio também dar uma lufada de ar fresco um fundamental colectivo acompanhado por uma fulcral declamadora, na dimensão da arte poética, sonora e visual, encontrando na função as electrónicas e as field recordings de Stephan Crasneanscki e Simone Merli (Soundwalk Collective) aliadas à voz da escritora (e música) Patti Smith. Trio que vem trabalhado a obra, na herança espacial e na memória temporal, de imprescindíveis poetas. Versando os últimos dias de Nico em Killer Road, o legado de Antonin Artaud e do seu México em The Peyote Dance, e Arthur Rimbaud na busca praticada em Mummer Love. Uma Perfect Vision nos assim denominados registos em tríptico. Agora em palco, juntam a violoncelista Lucy Railton às percussões de Diego Espinosa Cruz Gonzalez e trazem, num mais que concerto, uma plataforma imersiva – Correspondences. Contam como pano de fundo a projecção e selecção de imagens do cineasta português Pedro Maia, que coligiu e manipulou fragmentos fílmicos e espectros luminosos a propósito.

A primeira correspondência faz-se, como em clara abrangência urgente, do legado de Piotr Kropotkin. “Each of us with your story” refere amiúde Patti Smith, intervalando a abordagem às leituras retiradas da obra Mutual Aid: A Factor of Evolution de 1902. Corolário de textos-ensaios, do filósofo-anarquista, naturalista e geógrafo russo. Exorta a relações de benefício mútuo, assentes na cooperação, começa pelo mundo animal, as aves — a tela enche-se de passagens de aves taxidermizadas, em galerias de museu. Para em seguida se abordar a dimensão humana na cooperação e reciprocidade nas sociedades desde os tempos imemoriais — e a tela enche-se de passagens de arte rupestre, pinturas, e passa a florestas nativas, onde nelas habitam ainda povos e culturas. Obra que encontra nos nossos dias pleno sentido e significado, Smith sabe-o e por isso aqui está, entre a roupagem sonora que reveste de volume imersivo as palavras ditas. A propósito desta obra de Kropotkin, refere Waldyr Azevedo Jr. que “ilumina e nos deixa entrever não só a ajuda e a proteção mútuas, mas também o prazer puro e simples de saborear e celebrar a vida em companhia dos semelhantes — um mundo muito diferente das solidões abissais da nossa era pós-tudo.”   

Em Correspondences prosseguem-se as palavras musicadas “Wet bedraggled a bit gone adorned with flowers / radiant / radioactive / following a trail we somehow knew / rain no longer rain / tears no longer tears”. A transição para a acção danosa e poluente está feita. Os músicos vestem uma luz “radioactiva”, a desgraça paira sobre os ecossistemas, que ainda assim resistem em certa resiliência. Crasneanscki visitou a área de Chernobyl no pós-desastre, caminhou e recolheu, para trazer para documentar com adição, aqui e agora, à voz declamante e denunciante de Smith. A vida sobrevive, pese a devastação das paisagens. A paisagem aqui é sonora, recriada na distância do espaço e do tempo, mas a impor a contemporaneidade pela música e palavras. É o campo radioactivo, a radiação ao longo da floresta, e a remediação necessária — 1000 anos — as crianças, todas as aves cantando, “One thousand flowers / on the floor / one thousand years” prossegue em exasperação sussurrada nas palavras da própria Smith.

Há um crescente uivar da matilha de lobos que se aproxima na tela, acompanha o som do gelo, a fender, a derreter. Crasneanscki ocupa-se de cristalino instrumento, um surpreendente bloco de gelo de consideráveis proporções, colocado sobre rodas e isolado para não derreter antes do tempo — este tempo, de degelo. A “sonoscopia” de um bloco de gelo. Como um estetoscópio, algo desenha o som através do riscar do bloco, que vai crispando à passagem do instrumento. Na Sibéria, no Ártico — como as imagens vão contextualizando — “Melting frost – Did I / Did I get your sickness? / I wonder that my only sickness was love/ (…) You that love the cold / You die from pneumonia?” É a alusão de Smith à (não) resiliência humana às alterações climáticas em curso… “Earthly humans and all”.

Levam-nos à incursão nos oceanos, para uma descida à profundeza oceânica, como que na memória dos primórdios da vida. A colaboração com a TBA21–Academy, comprometida com a emergência de formas de arte, ciência e conservação dos oceanos e outros corpos de água. Aqui neste corpo sonoro-visual em palco, faz-se de um redobrado mergulho para ver de perto, tanto quanto queiramos ver a explosão (sonora) e da vida — “And in the days to came / there were each millennium of breath / the sea was filled / all kind of species / Waves, waves…” —, na origem, na evolução, na exuberante diversidade marinha. Mas depressa se revelam ser antes outras as explosões, as mais perpetradas de hoje, na prospecção e exploração dos recursos sangrados às entranhas da Terra, nos fundos dos oceanos. Desde o “ouro preto” às minerais energéticas panaceias anunciadas, passando pelos disparos para as linhas sísmicas oceanográficas. Tudo à custa da perturbação das espécies, “as lágrimas que se dissolvem / que se diluem no oceano”, e começamos a ouvir as vozes de crianças, a voz de uma mãe Terra cantada pela voz desta mãe Smith. “Such great years / That the ocean can wash away… such great years [ouvem-se mais e mais tiros, tiros de explosivos].” A plateia permanece contundente, sufocada, necessita respirar de alívio, mas como?     

Alívios pelo chilreio, a cantoria dos pássaros perfuma de respirares profundos. Muitos dos que ali estão aproveitam para desanuviar as gargantas com onomatopeias correspondentes.

“I am the muse” refere a porta-voz de todos nós, nós simultaneamente ouvintes daquela voz. É a divindade a chegar ao lugar, que a música num registo ecuménico preenche com sinos e vozes vindas de um coro alto. E a “divina” Patti reclama “Lord let me live / Observe the mankind”. A divindade que estabelece diálogo com um rapaz descalço, com lama nos pés. “Tu, rapaz, é que vais dar esperança às pessoas” — “Deny no more!” faz retorquir Patti, em nome de Medeia. “You cast bells, you speak icons”. A divindade da mitologia grega que se ressurge amiúde entre artistas. O bombo de grande diâmetro percutido por Cruz Gonzalez faz cerzir o tempo com a arcada contínua das cordas operadas por Railton. O espaço da acção fica ilustrado pela electrónica e recolhas da dupla primeva de Soundwalk e das imagens trazidas da interpretação fílmica do mito por Pier Paolo Pasolini. “Our blood is drained / Do you remember me? / The joy of our life / Our dead life”. As palavras da poesia dita enquadra o cenário pretendido. E surge um canto polifónico feminino suportado pela marimba que nem uma elevação para as almas.

Pasolini, que já estava presente em tela, assume a dimensão nas palavras. Smith passa a relatar a tragédia recriada da sua morte. Pasolini estrada fora, evocado na pele do actor Willem Dafoe no filme que Abel Ferrara rodou com o propósito de denuncia. Ferrara sabe quem matou Pasolini em 1975, quem tentou silenciar a multifacetada expressão maior do neorrealismo, na poesia, no teatro no cinema. “Cry me a river” evoca Patti para, adiante, ir descrevendo a agonia terminal até à morte — “All the muscles were contracting…” — e cospe em sinal de repúdio face aos canalhas agressores. Há uma batida desprendida a fazer tensão na cena, na certeza, porém, de que “The scene of Pasolini remains!” Ainda não há castigo, todos carregamos a injustiça da sua morte, como que nossa também. “Fascism lovers / we fall into a trap / Get up motherfuckers!”

Fim?! Nem pensem que foi o final, não daria para acabar assim. Patti Smith estava de corpo e alma naquele palco com um propósito mais, o de tantos de nós. Volta à cena para mais e ainda responde a uma voz que foi a de muitos com “The hearts of Palestinians will always be free!”. Volta acompanhada pela filha Jesse Paris Smith, no teclado, para cantar e arrepiar com “Wing”. Canta sublime como se fosse a primeira vez que ouvíssemos “And if there’s one thing / Could do for you / You’d be a wing / In heaven blue”. E foi Patti por ela própria, para nós! A devolver esperança num voo de asa. E depois? Depois foi todo um derrame de choro, emoção e punhos erguidos — “People Have the Power”. Sem ensaios — para quê? —, é o tempo real, estamos preparados e só houve duas posturas possíveis: com palmas a marcar o tempo ou de punho bem erguido para: “That the people have the power / To redeem the work of fools / Upon the meek the graces shower / It’s decreed: the people rule”. Porque:

“People have the power
People have the power
People have the power
People have the power”


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