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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/11/2023

O som de uma nação.

Sons de luta e esperança: um périplo pela resistência musical palestiniana

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/11/2023

É difícil olhar para as imagens que nos chegam da Palestina e nelas não vermos o reflexo da nossa apatia coletiva, do nosso silêncio cúmplice, do nosso lugar de conforto e privilégio. Aprendemos e talvez gostemos de viver na anestesia cínica de uma sociedade de espetáculo que banalizou a necropolítica, o genocídio e a guerra. É como se o mundo já não nos pertencesse, conformados que estamos na posição de espectadores impotentes, ainda que comovidos, com o horror, o massacre e a desumanização. De toda a nossa indiferença se faz a história da Palestina há mais de sete décadas sob ocupação. E ainda assim a resistência, sempre a resistência, força imanente e poética, protagonizada por palestinianos que em Gaza, na Cisjordânia, nos territórios ocupados e no exílio mantêm viva a esperança da sua que tem que ser também a nossa luta. 

O périplo que se segue evoca parte desta resistência que se constrói a partir da música. Seguimos a nossa companheira Shahd Wadi que, em “Corpos na Trouxa”, nos ensina que a Palestina é um símbolo do exílio e que todas as pessoas palestinianas são, de uma forma ou de outra, exiladas. E seguimo-la, também, quando insiste que a arte consegue trazer a Palestina até ao exílio palestiniano, mas também estabelecer uma ligação com o público que a ouve, lê ou vê. Nas suas palavras: “As diversas artes falam uma linguagem universal, e isso permite-lhes existir em comunidade — isto é, a arte é política.” É hoje evidente que a política genocida de Israel tem como fim último a expulsão total do povo palestiniano do seu território e o extermínio de quem ousar qualquer gesto de resistência. E se não há povo sem identidade, essa política genocida é também cultural, num esforço de destruição da cultura palestiniana. Neste períplo propomos, por isso, uma viagem por alguns dos sons, ritmos e palavras que têm construído a resistência cultural palestina. É uma viagem necessariamente curta, incompleta e sobretudo instigadora de novos encontros, pesquisas e descobertas. Escolhemos sons de diferentes gerações e de estéticas diversas, da música tradicional ao hip hop, das novas eletrónicas à pop. Viajamos, também, por tesouros redescobertos, acabando com dois documentários. O último deles já foi objeto de análise nestas páginas pelo Manuel Rodrigues, num excelente artigo sobre o underground palestiniano. Recuperamo-lo agora, em jeito de homenagem a ODZZ, o nome artístico de Odai Masr, falecido este verão, fundador do Exist Festival e da Harara Records. Com a sua música e o seu exemplo, nunca desistiu de uma Palestina livre. Boa viagem, vamos à luta!


[Checkpoint 303] “1948”

Há datas que não se deviam esquecer e 1948 é uma delas. A Nakba, termo árabe que significa “catástrofe”, significou o êxodo de centenas de milhares de palestinianos depois da destruição, por parte de Israel, de 530 cidades, vilas e aldeias palestinianas, da ocupação de 774 cidades e vilas pelas suas forças militares, dos 70 massacres que vitimaram 15.000 pessoas palestinianas e da expulsão de mais de dois terços da população da palestina histórica. Um processo de ocupação que nunca parou de se alastrar, bem patente nos mais de 6 milhões de refugiados expulsos das suas casas e terras. Os Checkpoint 303 são filhos e netos desse longo exílio que lembram em Iqrit Files, álbum editado em 2015, onde se juntam à voz, ao corpo e à presença de Jawaher Shofani, que interpreta canções tradicionais da Palestina interligadas com rearranjos eletrónicos colados a discursos políticos que lembram a história da ocupação. Um álbum feito de um canto que rasga a paisagem e a história, habitando um território sonoro que o sustenta e anuncia que um dia a Palestina será livre.


[Ahmad Al Khatib] “Gaza”

Do canto às cordas e à sua ressonância, encontramos Ahmad Al Khatib. O músico nasceu em 1974 num campo de refugiados na Jordânia e começou a tocar Oud desde novo com o músico Ahmad Abdel Qasem. Uma aprendizagem que foi também a passagem de uma cultura que se manteve viva, apesar do exílio. No caso de Al Khatib trata-se mesmo de duplo exílio: primeiro, no campo de refugiados onde cresceu; e um segundo, quando teve de deixar a Palestina, para onde tinha regressado em 1997, na sequência de novas ocupações feitas pelo governo israelita. Estudou musicologia na Universidade de Yarmouk, ingressou no Conservatório Nacional de Música Edward Said e formou o grupo Karloma. Na sequência das ocupações de 2002, compôs música durante os toques de recolher obrigatório. O visto que lhe permitia viver na Palestina não foi mais renovado. Forçado a sair, vive desde 2004 na Suécia, de onde há duas semanas partilhou esta sensível homenagem ao povo de Gaza.


[Riad Awwad] “I’m from Jerusalem”

Durante a quarentena, o cineasta Mo’min Swaitat ficou retido na Cisjordânia, onde encontrou uma loja de música fechada. Depois de entrar em contacto com o proprietário, vasculhou o arquivo e acabou por encontrar mais de 10 mil fitas de música palestiniana perdida, tendo assumido a missão de recuperar e digitalizar a riqueza desta herança. Entre essas descobertas estava um álbum gravado em 1987 por Riad Awwad chamado The Intifada Album. O seu autor era desconhecido, mas o cineasta encontrou a sua irmã, que lhe contou como Awwad quis com este trabalho registar o som da Primeira Intifada. Ditou a repressão que o disco se tivesse perdido, até agora, já que foi recuperado no âmbito do Majazz Project, uma plataforma de recuperação da herança musical palestiniana. Depois de recuperado e digitalizado em 2021, o álbum circulou entre palestinianos que em Gaza, na Cisjordânia e no exílio continuam a sua luta. O seu autor morreu em 2005 e já não foi a tempo de ver a sua música redescoberta e apropriada pelas novas gerações.


[Marcel Khalife] “The Passport”

Marcel Khalife nasceu no Líbano, em 1950, e canta desde a década de 1970 as palavras de Mahmoud Darwish, poeta palestiniano nascido em Al-Birwa, uma aldeia que resistiu ao colonialismo britânico, acabando por ser anexada militarmente por Israel, não sem uma longa resistência do seu povo. Cantando a poética de Mahmoud Darwish, Marcel Khalife evoca também a história dessa ancestralidade palestiniana, dando som e corpo à resistência cultural de um povo que reafirma e projeta a sua identidade no futuro. “Passaport”, original de 1976 e presente no álbum Promises of the Storm, relata a humanidade da luta de um povo contra o seu esquecimento e desumanização.


[Kofia] “Leve Palestine”

No contexto das enormes vagas de exilados, a resistência cultural do povo palestiniano também se fez a partir das suas diásporas. Os Kofia fizeram da música resistência à ocupação, ainda que a partir do exílio. Depois de deixar a Palestina, em 1967, na sequência da colonização do território, o músico Goerge Totati forma a banda Kofia com outros músicos palestinianos e suecos. De 1972 até à Intifada de 1987, construíram hinos que ainda hoje ecoam na resistência, com lançamentos sempre à margem de grandes editoras, e usando a música como instrumentos para contar eventos históricos que o mundo ocidental invisibilizada. A partir das narrativas das mães que perderam os seus filhos e a sua terra, lembram também as filhas da palestina que hoje continuam a luta. A história da banda foi contada em documentário, embora continue a ser escrita com o álbum Jag skrev ditt band de 2022.


[Nasser Halahlih] “We Palestinians”

Editado em 2020, o álbum Electrosteen, que combina “electronic” e “Falasteen” (Palestina), funde a tradição da música palestiniana com as novas sonoridades urbanas desenvolvidas por filhos e netos nascidos depois da ocupação. O projeto junta DJs e produtores de raízes e estéticas distintas, ilustrando a diversidade cultural de um povo celebrado por nomes como Sama’, Julmud, Al Nather, Muqata’a, Sarouna, Nasser Halahlih, Bruno Cruz, Walaa Sbait, Basel Naouri, Mehdi Haddab e Shab Jdeed. O álbum resgata os arquivos do Centro de Arte Popular de Ramallah, homenageando a música como veículo, património e herança cultural e celebrando os músicos, historiadores e ativistas que vêm descobrindo a diversidade das paisagens sonoras palestinianas. “We Palestinians” será um dos exemplos, tema assinado por Nasser Halahlih, músico nascido em 1981 em Shefa-Amr, cidade palestiniana ocupada na Operação Dekel, em julho de 1948, e posteriormente regida sob lei marcial. Quase oito décadas depois da ocupação, a resistência continua e esta é também a sua banda sonora.


[Muqata’a] “Taqamus Muqawim” 

Nome incontornável da cena underground palestiniana, Muqata’a é uma espécie de padrinho de uma nova geração de resistência cultural. Vive na Cijordância, onde a música não pode ser tocada depois da meia-noite, emergindo em cenas locais que rompem, questionam e desafiam a ordem e a repressão estatal. Através do sampling encontrou um método de colagem entre a história e o futuro, os sons do quotidiano e os horizontes do porvir. Com origem numa família de refugiados em trânsito, acabou por se fixar em Ramallah, construindo um repertório que resgata os discos da sua família, muitos deles perdidos e confiscados entre viagens e postos de fronteiras, colando-os a samples que registam os sons dos muros, dos controlos de fronteiras, dos detetores de metais, dos soldados. O resultado é uma música retrabalhada em nome de uma nova história por contar, preenchida com um som poderoso, capaz de se impor sobre o ambiente sonoro da ocupação, e ao mesmo tempo esperançoso, como que a anunciar que, deste lado, ninguém larga a mão de ninguém.


[Mohammed Assaf] “Falasteen Enty El Rouh”

Olhando para outras estéticas contemporâneas da música palestiniana, não há como fugir a Mohammed Assaf. Quem olha para o seu sorriso, não lhe imagina a história. Mohammed cresceu no campo de refugiados Khan Younis, no sul de Gaza, depois das aldeias da sua mãe e do seu pai, designadamente Bayat Daras e Beersheba, terem sido ocupadas pelas forças israelitas, expulsando os seus habitantes. Estudando numa escola da UNRWA, começou a cantar aos cinco anos de idade e foi com determinação que tentou a sua sorte no programa Arab Idols. Para aí chegar passou dois dias detido na fronteira do Egito, teve de ultrapassar infindáveis barreiras e contar com a generosidade de quem lhe permitiu entrar no concurso, mesmo já fora do prazo. Desse périplo fez a sua força e acabou por ganhar o programa cantando que o seu sangue é palestiniano. Hoje o campo de refugiados onde cresceu está a ser bombardeado pelas forças israelitas. Uma chacina não só para matar os vivos, mas também para impedir que futuras vozes, como a de Assaf ou de Ghada Ageel, não possam mais ocupar e conquistar o espaço público. A sua história, que já deu origem a um filme, ainda agora começou.


[DAM] “Born Here”

Formados no final de década de 1990 pelos irmãos Suhell e Tamer Nafar e por Mahmoud Jreri, aos quais se juntaria mais tarde Maysa Daw, os DAM cantam a partir de Lyd e no contexto do fracasso dos Acordos de Oslo e da consciencialização da Segunda Intifada. Reivindicando a ancestralidade do seu povo no território ocupado, são um dos pioneiros coletivos de hip hop palestiniano, inspirados pela estética e pelos vídeos de Tupac. Construíram ao longo dos anos um reportório muito centrado no regime de apartheid e desigualdade imposto por Israel, mas também nos protestos que resistem, mesmo nas condições mais difíceis. Nas últimas duas décadas o grupo usou a música para espalhar a consciencialização sobre a causa palestina no mundo, inspirando novas gerações de MCs e produtores.


[MC Abdul] “The Pen & The Sword”

Um desses jovens será MC Abdul. Quis esta trágica ironia histórica que o jovem músico lançasse o seu último single dias antes do governo de Israel começar uma ofensiva brutal e que deixou a sua família sem casa, água, comida e eletricidade. É, pois, com alguma amargura que ouvimos a letra esperançosa deste jovem rapper empenhado em mostrar que as canetas podem ser mais poderosas que as espadas. Nascido no seio de uma guerra contra o seu povo, Abdul é um dos adolescentes que rima perante os escombros e ao som de bombas e sirenes. Com quinze anos, terá crescido depressa de mais, o que se nota na lucidez e na crueza com que rima sobre a violência que lhe entra em casa. “Não parem de tentar”, pede-nos nesta letra, mantendo a aposta que a educação ainda pode salvar o mundo. Sigamos o seu apelo.


[Saint Levant] “From Gaza, With Love”

Saint Levant nasceu no ano de 2000, em Jerusalém. Filho da Segunda Intifada, foi em Gaza que passou a sua infância até 2007, quando a sua família foi forçada ao exílio na Jordânia. Hoje a viver nos Estados Unidos, apresenta-se ao mundo sem perder e esquecer a sua história, tendo estreado, no final de 2020, “Jerusalem Freestyle” e “Nirvana in Gaza”. O fascínio foi imediato, e com razão. O músico revelou-nos desde cedo uma escrita fluída, complexa e poliglota, adaptada e fundida com melodias irresistíveis e que formam uma estética tanto melancólica, como futurista. Ancorado nas diferentes variantes hip hop, mas com raízes fundas no pensamento, nos sons e na história árabe, Saint Levant reescreve a cultura num futuro onde projeta mais amor, que violência. Talvez por isso o seu novo EP, estreado em março deste ano, tenha como título From Gaza, With Love. Não podia imaginar que o final do ano traria, mais uma vez, a omnipresença da guerra contra o seu povo e a urgência da resistência. Mais razão lhe damos porque é também pelo amor que vale a pena resistir.


[Jackie Reem Salloum] Slingshot Hip Hop

Terminamos este périplo com dois documentários sobre movimentos coletivos da cena musical palestiniana. Slingshot Hip Hop retrata a cena hip hop que emerge a partir do final da década de 90 e que é também herdeira do movimento de consciencialização política potenciado pela Segunda Intifada. O documentário revela a realidade das e dos rappers palestinianos em Gaza, na Cijordânia ou nos territórios ocupados por Israel. Músicos exilados, alguns deles estrangeiros no seu próprio país, onde as mulheres assumem grande protagonismo, encontrando no ritmo e na palavra uma forma de reconstruir uma comunidade fisicamente separada, mas que reconhece e recria permanentemente a sua identidade, história e futuro.


[Boiler Room] Palestine Underground

Terminamos este périplo com um assunto a que já nos dedicamos: a cena underground palestiniana. Realizado em 2018 por Jess Kelly, o documentário Palestine Underground mergulha e acompanha a cena local underground palestiniana, feita de redes de artistas e de afetos que coletivamente projetam um som distintivo, mesmo em condições de ocupação e clandestinidade. O documentário retrata e testemunha parte destas redes de djs e produtores que resistem à repressão e desafiam os muros e as fronteiras impostas pela Estado de Israel à população palestiniana. Às vezes, como aqui mostra ODDZ, é preciso saltar o muro para poder sonhar. ODDZ partiu este ano, mas a sua vida não será em vão. Chamava-se Odai Masr. Fundou o Exist Festival. Dirigiu a Harara Records. Com a sua música, não desistiu. Com o seu exemplo, mudou o mundo.

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