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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 18/05/2021

Permanentemente urgente.

O underground palestiniano: música para derrubar barreiras físicas e políticas

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 18/05/2021

Editado em Janeiro de 2020, Electrosteen mistura música folk palestiniana com electrónica moderna. O álbum reúne alguns dos melhores DJs e produtores de música electrónica da região numa abordagem cooperativa de folclore, raízes e músicas tradicionais, extraída dos arquivos do Centro de Arte Popular de Ramallah para dar origem a uma celebração urbana e contemporânea. Participam nomes como Sama’, Julmud, Al Nather, Muqata’a, Sarouna, Nasser Halahlih, Bruno Cruz, Walaa Sbait, Basel Naouri, Mehdi Haddab e Shab Jdeed.

Pensado como veículo de transporte desse património musical para festivais de música electrónica, o álbum começou a ser construído em 2017 com uma residência em Ramallah, cidade da Cisjordânia. Os artistas escolhidos tiveram acesso a uma colecção de arquivos gravados por músicos profissionais, amadores, urbanos, rurais e beduínos (árabes que habitam os desertos, tradicionalmente em grupos). Não se tratam de simples remisturas mas sim de produções originais com base no sampling. “As canções utilizadas e a forma como foram incorporadas no produto final dependeu completamente dos músicos envolvidos”, conta o produtor Rashid Abdelhamid, fundador do projecto Made in Palestine, em comunicado.



A música é uma peça central da vida e herança palestiniana. Nos últimos 70 anos, derivado ao conflito e ocupação israelita, grande parte dessa história cultural foi perdida e negligenciada. Contudo, ainda consegue ser encontrada nas vilas e cidades ao longo da Cisjordânia e entre os palestinianos que vivem em Israel. Não existem instituições oficiais dedicadas a arquivar música na Palestina, o que torna a informação e os documentos escassos. O esforço oficial mais próximo são os arquivos da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), mas estes foram destruídos ou saqueados durante o conflito com Israel. Durante os anos 90, algumas organizações não-governamentais e entidades palestinianas tentaram coleccionar a música perdida da Palestina. Um dos principais intervenientes foi o Centro de Arte Popular, fundado em 1987 por uma entidade irmã da El-Funoun, companhia de dança popular no activo desde 1979.

Desde então que uma geração de músicos, historiadores, técnicos de som e activistas tem descoberto camadas após camadas de música palestiniana através de uma variedade de géneros musicais e localidades; da música clássica árabe ao rock alternativo, de Haifa no território israelita às vilas na Cisjordânia.

O projecto Electrosteen, que combina as palavras “electrónica” e “Falasteen” (Palestina), surge numa altura de crescimento das editoras e estúdios da Palestina. Há salas de espectáculos como o Kabareet, em Haifa; a exposição internacional Palestine Music Expo, em Ramnallah, um showcase de novos artistas que teve em 2019 a sua terceira edição; e o Palestine Underground, importantíssimo documentário levado a cabo pela Boiler Room.



[Palestine Underground]

Realizado por Jessica Kelly e produzido por Anaïs Brémond, o documentário Palestine Underground acompanha um grupo de artistas na semana que precede a primeira festa de sempre da Boiler Room em Ramallah. Ao longo de cerca de meia hora, o vídeo documenta os testemunhos de uma rede de DJs e produtores que desafia as fronteiras criadas entre os palestinianos que vivem na Cisjordânia e os que habitam Israel, separados por barreiras físicas e políticas.

O documentário começa precisamente no muro que divide Israel da Cisjordânia. O produtor e DJ ODDZ galga clandestinamente a parede de oito metros e entra em território israelita para ir tocar no Anna Loulou, o único clube palestiniano de Jaffa, cidade de Israel. Durante o filme, Israel é simultaneamente referenciado como “Palestina ocupada”, “território 1948” ou simplesmente “’48”, termo que alude às leis discriminatórias que imperam desde 1948, altura em que foi criado o Estado de Israel. As filmagens ao longo do documentário abordam não só a devoção à música como também as intensas tensões políticas. “Não podem construir um muro e dizer-nos que não podemos atravessar para fazer o que queremos. É música, é um direito de todos”, partilha ODDZ. As regras são bastante rígidas. Um palestiniano com passaporte israelita consegue entrar na Cisjordânia, mas o inverso não acontece. Para conseguirem sair do território têm que enviar um pedido às autoridades israelitas que é quase sempre negado. ODDZ explica no documentário que a única forma de garantir um acesso ao outro lado é a saltar o muro, correndo o risco de ser apanhado e detido.

Durante a filmagem, a equipa de produção deparou-se igualmente com problemas na passagem de um território para outro. “As forças militares israelitas podem decidir se te deixam entrar ou podem interrogar-te caso achem que vais fazer algo que prejudique o Estado de Israel”, explica Anaïs ao Scene Noise. “Fomos também mandados parar várias vezes na Cisjordânia pela autoridade palestiniana, que perguntou o que estávamos a filmar. O facto de estarmos a fazer um documentário musical facilitou muito as coisas para nós. A nossa equipa local salvou-nos de algumas situações complicadas”. As filmagens em Israel chamaram bastante à atenção, ao ponto da polícia ter aparecido de surpresa no Airbnb que tinham reservado em Jaffa, revistando o apartamento e terraço. “Disseram que algo de suspeito tinha acontecido no prédio ao lado, mas não acreditámos nisso”, conta Anaïs. No aeroporto, a situação repetiu-se. “Tivemos de dar os nomes das pessoas com quem estivemos e explicar o que estávamos ali a fazer. A minha mala com os discos de backup ‘perdeu-se’ no regresso a Londres e ficou retida duas semanas no aeroporto israelita, sem que eu soubesse o que lhe tinha acontecido. Quase que fui à loucura para a conseguir reaver”, relata.

Palestine Underground relata o esforço conjunto de uma comunidade de artistas divididos entre hip hop e música electrónica, no sentido de criarem uma expressão que é quase obrigada a viver em clandestinidade. As leis na Cisjordânia são de tal forma apertadas que os clubes não podem fazer qualquer tipo de barulho depois da meia-noite, atirando as festas para ambiente caseiros e quase ocultos, na margem da ilegalidade. O documentário desemboca no primeiro evento de sempre da Boiler Room em Ramallah, protagonizado por Sama’, Jazar Crew, ODDZ e Muqata’a, considerado por muitos o “padrinho” do hip hop naquela cidade.



[Muqata’a, o sonoplasta]

Em 2009 desmembravam-se os Ramallah Underground, colectivo que tinha como missão dar voz a uma geração de palestinianos e árabes em situação de aperto económico, artístico e político. Muqata’a, que na altura assinava o seu trabalho como Boikutt, era um dos fundadores. Combinavam hip hop, trip hop e downtempo, a par de música tradicional do Médio Oriente, sempre comprometidos com a cultura local e conscientes da presença imponente da Palestina em suas vidas. Apesar da separação, Muqata’a seguiu a sua caminhada artística a solo e foi um dos principais responsáveis pelos laços criados entre os músicos da Cisjordânia, onde também habita, e os artistas palestinianos residentes em Israel, como os Jazar Crew.

Conhecido como o “padrinho” do hip hop underground em Ramallah, Muqata’a, cujo nome se traduz para “ruptura”, encontrou no sampling uma forma de se expressar, utilizando essa arte como maneira de evocar uma história que não pode ser esquecida. Nasceu em Tucson, no Arizona. A sua família consta de refugiados palestinianos que se mudaram entre Nicósia, no Chipre, e Amã, na Jordânia, acabando por se estabelecer em Ramallah. Grande parte da música que possuía foi levada quando confiscaram a casa dos seus avós, em Jaffa. Uma forma de Muqata’a reaver esse acervo é a samplar discos que encontra quando viaja para países como o Reino Unido, França e Grécia.



Além da música, Muqata’a sampla também o seu dia-a-dia, aquilo que o rodeia, recorrendo a um gravador portátil. O áudio é trabalhado à posteriori para criar instrumentais carregados de fragmentos e recortes, onde cada camada conta uma história diferente. Com isto consegue honrar a sua herança palestiniana ao mesmo tempo que constrói uma linguagem artística moderna que enfrenta as injustiças sofridas pelo seu povo. O efeito é poderoso e agressivo, como seria de esperar de alguém que se quer fazer ouvir acima do barulho da opressão, mas é ao mesmo tempo meditativo e esperançoso. Em Ikanakuntu, o mais recente disco, editado em Novembro de 2018, cada som é uma partícula num grande caleidoscópio. “Taqamus Muqawim” usa um áudio de índole política dos Rahbani Brothers. Ouve-se “hon ma teeju”, que significa “não venhas para aqui”. O título da música faz jus à reencarnação de um guerreiro da resistência. A introdução de “Thakira Jamay’iya”, outro exemplo, traduz-se num loop de um set de percussão de 40 pessoas numa síncope louca. O título significa “memória colectiva”.

Houve tempos em que Muqata’a saiu à rua de Tascam no bolso para essa missão de captação. Contudo, a particularidade de se assemelhar a um taser, que lhe traria muitos problemas caso fosse apanhado, levou-o a substituir o aparelho pelo gravador do telemóvel, que serve o mesmo efeito — no vídeo da Boiler Room há uma cena em que se vê Muqata’a em plena recolha de material. “O muro afecta a paisagem sonora tanto do lado de dentro como do lado de fora, pois separa o espaço em dois ambientes diferentes”, conta o músico à Cultured Magazine. “O lado de fora do muro é o que consideramos ser o interior da Palestina. Os sons que me interessam são os que estão entre o ‘interior’ e o ‘exterior’. O som dos postos de controlo militar. O som dos detectores de metais e das portas giratórias de metal, e o som dos soldados a gritarem por detrás de vidros à prova de bala recorrendo a altifalantes distorcidos. Eu costumo gravar momentos em que estou num contexto específico”, informa.

Começou a ouvir hip hop por causa do irmão. O ponto de partida terá sido The Chronic, de Dr. Dre, mas rapidamente se estendeu a trabalhos de Redman, Wu-Tang Clan, Gang Starr e Jeru the Damaja. “Soava simplesmente bem”, continua. “Na verdade, era hardcore. Tinha esse peso. Depois de todos os relatos que eu ouvia dos meus pais e avós sobre a nossa história pessoal, nossa história colectiva, nossa memória colectiva, senti-me conectado de várias maneiras ao som de alguém a responder às injustiças que enfrentava. Mesmo que mal conseguisse perceber o que estavam a dizer nas letras, era directo e sabia bem”, conclui.



Os projectos entre músicos palestinianos multiplicam-se e existe um grande sentido de colaboração, impulsionado não só pelos artistas mas igualmente pelos promotores culturais. Quando em 1948 se formou o Estado de Israel, grande parte dos refugiados palestinianos fugiu para a Jordânia, o que faz deste país o maior centro comunitário de palestinianos fora da Palestina. É também a única forma de conseguirem sair da Cisjordânia visto não existirem aeroportos e não poderem utilizar os de Israel. Para Muqata’a, a Cisjordânia é uma espécie de prisão ao ar livre. “Fomos criados com a premissa de nunca mais podermos regressar à terra da qual fomos apagados a nível étnico. É por isso natural que me sinta conectado a sons mais pesados”. No que diz respeito à animação nocturna, Ramallah não tem propriamente clubes. Existiam alguns no final dos anos 90 mas fecharam depois da Segunda Intifada (insurreição dos palestinianos da Cisjordânia contra Israel) em 2000. A maioria dos músicos, artistas e realizadores abandonou a Palestina por não suportarem a situação e instalaram-se na Europa e nos EUA.

Actualmente, a comunidade musical está a desenvolver e a regressar ao que era nos anos 90. “A cena electrónica experimental está a crescer. Os que fazem hip hop também vêm a performances de electrónica e experimental. Aqueles que fazem coisas mais ruidosas deslocam-se a eventos de trap e as pessoas que produzem techno e house também marcam presença em acontecimentos de hip hop”. Não queremos divisões, até porque estas já existem a nível geográfico”.

As 12 badaladas fazem-se acompanhar de um toque de recolher, mas este só se aplica aos eventos que são organizados com um sentido de comunidade. “Grande parte das festas mainstream em Ramallah e na Palestina não acabam à meia-noite. Os casamentos duram até à manhã do dia seguinte. Toda a gente pode ir até onde quer mas existe esse limite temporal se estiveres a fazer algo que não esteja alinhado com as suas ideias e que não seja suficiente comercial. Nem sequer está escrito no papel, é assim porque sim. Eu acho que eles reparam que estamos a crescer enquanto comunidade e não gostam de nós. Sempre que organizamos um evento aparecem agentes secretos palestinianos à paisana. Dizem que estão em busca de drogas e usam isso para monitorizar os eventos”.

Existe uma emergente cultura de dança em Ramallah e na Palestina em geral, mas não se centra apenas nisso. Organizam-se muito eventos nos quais as pessoas se sentam a falar ou a assistir. “É mais do que música”, afirma Muqata’a em entrevista com o The Guardian. “O mais poderoso de tudo é ver estes DJs, produtores e rappers a reunirem-se. É bom destacar os talentos. Não existe apenas um som – há coisas a acontecer na música de dança e no hip hop; a geração está a ser ouvida à sua maneira. Isto está a acontecer há tanto tempo, é importante para vermos o que é possível fazer com tão pouco”.

Para o site It’s Nice That, Jessica Kelly, a realizadora documentário Palestine Underground, diz não acreditar que o futuro seja muito positivo a nível político para quem vive na Cisjordânia. “Mas há muita coisa que pode ser feita a nível individual. Uma delas é visitar a Cisjordânia. Não é uma ‘zona de perigo’ como as autoridades israelitas dizem ser, é um sítio lindo para descobrir. E tem uma incrível cena musical underground”, conclui.


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