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Texto: ReB Team
Fotografia: Marta Santos/Filipa Aurélio/Diogo Lima Framekillah/PedroFrancisco
Publicado a: 11/04/2022

A bambolear pela capital portuguesa com visão quíntupla.

Sónar Lisboa 2022: há aqui uma cidade que vibra (mas a que custo?)

Texto: ReB Team
Fotografia: Marta Santos/Filipa Aurélio/Diogo Lima Framekillah/PedroFrancisco
Publicado a: 11/04/2022

Receber cerca de 27 mil pessoas para a edição de estreia de um festival é obra, mesmo quando se trata de trazer um modelo de sucesso para território nacional, criando um movimento (que terá benefícios e malefícios) de economias, pessoas e culturas. Pelos relatos dos cinco escribas do Rimas e Batidas de serviço nos três dias do evento, e que vão poder ler de seguida, o Sónar Lisboa terá pernas para andar (o regresso está marcado para os dias 31 de Março, 1 e 2 de Abril de 2023), mas ainda convém trabalhá-las de uma forma astuta e não desprezar o fluxo próprio da cidade.



[Dia 8]

Strap-ons, Ku Klux Klan e uma caixa de pizza. Três elementos visuais que se repetem numa sequência temporal em ritmo pausado. Imagens que não surgem isoladamente, antes de uma reconstrução/reinterpretação da famosa ode aos descobrimentos portugueses — os Painéis de São Vicente de Nuno Gonçalves. Historicamente uma cerimónia de veneração às classes dominantes – monarquia, clero e burguesia, que através da contaminação visual de elementos simples da cultura contemporânea, rapidamente se transforma num exercício de interrogação do que foi e representa na sociedade portuguesa a época dos descobrimentos. Recordar a exposição patente no MATT (Prisma // \\ INTERFERÊNCIAS) e a faixa onde se pode ler – “Não foi descobrimento, Foi matança”. Esta(s)nova(s) leitura(s), porque a história deve ser objecto de constantes análises, não é só necessária, como é imperiosa para a construção de uma sociedade menos racista, menos sectária e onde todos possam construir o seu caminho independentemente da sua origem. Algum exagero começar por fazer referência a uma projecção quando o objecto de escrita é a primeira edição do Sónar Lisboa. No entanto, fazer alusão a este exercício político que se completou com imagens de caravelas repletas de escravos e mortandade, da representação de um mapa de Portugal esventrado e lugar de campa, não é só uma exaltação torpe do excelente trabalho de Márcio Matos, conhecido autor das capas da Príncipe, é também uma tentativa de dar o devido destaque a uma editora que completa o 10º aniversário. A Príncipe como manifesto político – trazer a linguagem do “gueto”, a combustão criativa permanente de uma Lisboa que se deseja cada vez mais multipolar e não se encerra em núcleos herméticos centrais.

DJ Marfox, frequentemente considerado o “pai da Príncipe” e que se apresentou no primeiro dia do Sónar (Pavilhão Carlos Lopes), grita a meio do set – “directamente da Quinta do Mocho – Sacavém’” Uma mistura de sons de uma electrónica constantemente dançável, com raízes africanas evidentes, mas mais importante do que definir origens geográficas é esta capacidade em se criar uma linguagem que seja transversal a diversos territórios sonoros, capaz de abarcar reivindicações sociais, culturais e políticas que pelos canais tradicionais se lhes encontra vedado. É ritmo acelerado, é festa e é commumente aceite que a pista de dança pode e dever ser lugar político. Marfox fá-lo como nenhum outro, não só pelo controlo perfeito dos ritmos, mas melhor mesmo é dançar, como pela capacidade de introduzir a cada momento uma frase que não faz esquecer a luta que deve ser permanente – “Arrrghhhh, fuck Putin!”. A plateia acompanha-o e grita “Arrrghhhh, fuck Putin!”. A Putin podemos juntar uma bela centena de nomes e uns tantos outros “fucks!”. Não nos esqueçamos que há 10 anos – Cavaco, Passos Coelho, Troika – e desde essa altura que a Príncipe anda a gritar muitos “fucks!”. Não é só a Nídia que é má e fodida, Marfox não lhe fica atrás. Dar espaço à voz dos “fodidos” é uma excelente forma de saber quem somos.

Fodida, muito fodida, deve andar Arca, nome cimeiro desta edição e presença assídua nos festivais nacionais, pois a intensidade sonora do concerto foi tal que há relatos de queixas de vizinhos devido aos limites que supostamente foram ultrapassados. Entre um techno hiper rasgado, a sonoridades nada devedoras de um harsh noise, Arca foi capaz de abraçá-las a todas. Houve muito pouco lugar para melodias delicodoces que lhe reconhecemos de alguns trabalhos discográficos. Foi energia em rotação máxima, ruído, dança negra, não necessariamente ritual catártico, antes a expressão de um inconformismo persistente. A persona, referência ao artigo de antevisão ao concerto de Rui Eduardo Paes, que Arca criou foi negra no vestido de criada antiga que trazia, foi negra nas imagens que foi projectando ao longo da actuação, foi negra como a realidade que não encara a diversidade com naturalidade, foi negra pelo fumo que ia constantemente saindo do palco. Eventualmente menos negra nas vocalizações de timbre mais latino, e quando interagia com o público, mas não menos carregada de tensão. A imagem feroz de uma juventude que exige o seu lugar e capacidade de intervenção nas diversas questões que lhe dizem respeito – da diversidade sexual às ambientais — com força suficiente para descentrar os lugares de representatividade, que não reconhece limites e que sabe dar uns valentes KiCKs.

Regresso saudado a Lisboa foi, também, o de Thundercat. Trio liderado pelo exímio baixista Stephen Lee Bruner, que durante muitos anos pertenceu à carismática banda de hardcore/punk Suicidal Tendencies, mas que de há uns anos a esta parte navega por ondas bem mais calmas, em exercícios retro de funk, hip hop e r&b devidamente reforçados pelos sintetizadores que acentuam o vínculo às décadas de 70/80 do século passado. Momentos mais jazzy também os houve, bem como outros mais acelerados conferidos por uma bateria em rotação máxima, mas sempre com um padrão comum — notas de baixo arrancadas como poucos, muito poucos aliás o conseguem. Os três devidamente acompanhado pelo olhar atento de Thundercat, a personagem de banda desenhada que inspira o nome e logótipo da banda. No entanto, tudo pareceu demasiado morno. Não que se deseje que Stephen Bruner volte para as plateias mais próximas da Incrível Almadense que das do Lux, mas esperava-se um concerto mais groovy, mais “deslizadamente” dançável, um deixa-te ir contínuo, tão típicos dos corvos (personagens da banda desenha de Fritz the Cat de Robert Crumb). Tudo demasiado morno, o concerto, a plateia e a interação com o público, expressa num “Parabéns a você” frouxo, frouxinho, e jamais comparável ao magnífico “Happy Birthday” em tempos cantado com William Basinski, na Catedral de Viseu.

– João Castro



Enquanto ritmos quentes do hemisfério sul reinavam no Pavilhão Carlos Lopes e elevavam a temperatura da sala ao máximo, o Centro de Congressos de Lisboa hospedava uma energia mais sombria e industrial, onde o bass 4/4 era mais evidente e puro. À chegada, era dificil imaginar que um edifício tão grande se enchesse de pessoas, mas foi isso que vimos acontecer ao longo de uma noite por onde passaram figuras lendárias, nomes conhecidos mundialmente e ainda nomes frescos tanto no panorama português como global pelo palco (que se encontrava rodeado de estruturas de aço por onde luzes brilhavam).

Mas antes de irmos a Alcântara, vamos primeiro dar um pequeno salto ao Marquês de Pombal. E aí foi a vez de explorar o que de melhor se faz nas electrónicas em Portugal e fazer a temperatura subir. Nídia subiu ao palco e muito rapidamente começou a interagir com o público que ainda estava a voltar de apanhar um pouco de ar, pedindo barulho e criando logo algum hype e atenção virada para ela. O primeiro beat demorou a entrar e conseguiu criar uma tensão e expectativa que se transformou em alívio assim que a batida entrou em ação.

O set de Nídia, mesmo parecendo monótono à primeira vista do ponto de vista rítmico, acaba por ser uma aula de fusões: por detrás dos ritmos batida que nos guiaram pelo set, ouvíamos texturas pescadas do kuduro, da música popular brasileira e até remixes de clássicos como a “Satisfaction” de Benny Benassi que mudavam ligeiramente a energia e o mood da sala. Navegámos desde a batida mais ligada ao kuduro tradicional, enveredando por polirritmias mais flutuantes, até a um quase afro gabber, onde Nídia abraçava por completo a energia da música electrónica de dança. Outra arma que usou para além da batida foi o microfone, onde pedia barulho e tentou que o Pavilhão Carlos Lopes ecoasse com ela “Nídia é má, Nidia é fudida”. Infelizmente, a barreira linguística não permitiu que o público alinhasse todo no momento, mas a minoria portuguesa que entendeu o que ela dizia gritou em plenos pulmões, preenchendo o espaço pelos tantos outros mesmo assim. A representante feminina da Príncipe Discos não falhou no seu trabalho, apesar de se ter percebido não estar na sua zona de conforto (o que também não era fácil num ambiente tão descaracterizado de identidade ou direcção).

O início da noite ficou encarregue de nomes nacionais, começando pela mestria de Yen Sung e Photonz, seguindo-se marum e Phoebe, virtuosos na delicadeza e sensibilidade da arte do DJing, culminando em Vil e Cravo, que nos vieram dar o que de melhor se faz no HAYES Collective. Tendo dado por terminadas as prestações portuguesas, foi a vez de IMOGEN subir ao palco e deixar toda a gente de boca aberta com a técnica e segurança que a DJ (com pouco mais de 20 anos) já tem, mostrando-nos o porquê da sua já grande reputação — que a fez tocar em locais como Berghain e Herrensauna, sendo ainda residente na fabric em Londres. 

As cores vivas que percorriam o palco no seu set e criavam imagens psicadélicas contrastavam com as cores futuristas e alienígenas que a próxima performance trouxe. O techno intenso que os nossos ouvidos já tinham entranhado desapareceu para dar lugar à desconstrução, ao espaço e à contemplação em vez da dança frenética. Stingray 313 trouxe-nos uma performance live onde a linearidade não constou a não ser na snare que se ouvia sempre no mesmo compasso de tempo enquanto os sons por trás navegavam entre o ambient industrial, o eletro e o dark drum n bass, com 808s ocasionais mas intensos que faziam o Centro de Congressos vibrar.

Talvez tenha custado fazer uma transição tão brusca entre a energia rave que estava a ser construída há algumas horas para um concerto mais minimalista e introspectivo, mas quem a conseguiu fazer ficou mais que satisfeito com todos os pequenos detalhes de cada elemento das músicas do veterano de Detroit, que foram acompanhados por uma performance visual que navegava entre figuras geométricas, imagens cobertas de glitch, lasers verdes e mosquitos computadorizados. Todos estes elementos criaram uma identidade tão específica que, por um lado, pode ter afastado algumas pessoas que já estavam com uma mentalidade e estado de espírito orientado para a rave (que acabava por ser a grande maioria), mas que por outro elevou a cultura deste palco, e deixou deliciado o público mais eclético e que gosta de ser envolvido em pequenos ecossistemas criados por artistas como o de Detroit, que não só contribuíram para a construção de géneros musicais que ainda hoje imperam em palcos de música de dança 30 anos depois como agora trata das suas desconstruções e da contínua exploração de ideias de géneros que hoje em dia começam a parecer demasiado estáticos e acomodados.

Após este momento que nos colou mais à terra, a noite seguiu para um lição de passar música em vinil de duas horas por um back2back entre uma lenda viva e um DJ que dá largos passos para também ele se tornar uma no futuro. Falamos claro de Richie Hawtin, que muitos conhecem melhor por Plastikman quando seguia firme na vanguarda do techno minimal, que ajudou a construir com as suas próprias mãos e drum machines, e Hector Oaks, que na última década se tem afirmado como uns dos DJs mais irreverentes da cena underground europeia. 

De frente um para o outro, cada um com duas turntables, um mixer e um vasto leque de vinis, o duo mostrou uma química perfeita onde as energias foram sempre convergentes, sempre a BPMs altos e incisivos, com batidas que não nos conseguiam fazer parar de dançar, como se de um motor automático se tratasse. Desta vez, Hawtin não se ficou pela sua zona de conforto, a música minimalista, e ofereceu junto com Oaks uma experiência que foi além dos ouvidos: assistimos a um jogo de luzes que nos deixou de boca aberta nos poucos momentos em que não estávamos perdidos a dançar no ritmo constante que nos fazia transcender para além das limitações físicas dos nossos corpos.

Mas se o primeiro optou por não sacar da sua arma de eleição, a DJ que encerrou a noite no Centro Cultural de Congressos mostrou-nos que com pouco se consegue chegar a muito. Charlotte de Witte continua, de forma incrível, a ascender na sua carreira, transformando-se já numa estrela pop do techno, mesmo que a sua música de pop pouca coisa tenha.

Charlotte é uma DJ que vale a pena ver pelo menos uma vez na vida: a forma precisa como mostra total controlo sobre cada segundo do seu set; as transições limpas e perceptíveis que fazem com que build-ups e tensões sejam criadas de forma orgânica e bem medida; a forma como consegue encher o som de um espaço tão grande recorrendo a quase só a um kick 4/4 e hi-hats em contratempo; e o trabalho intenso e incisivo no desenho de todas as suas texturas, que se vão desenvolvendo ao longos das músicas e lhes dão vida, respeitando sempre o tempo necessário para essa evolução. 

Hoje em dia já se sabe quando estamos a ouvir Charlotte, não fossem as suas músicas cobertas por uma estranha mas forte identidade. A DJ belga consegue deixar-nos sempre a questionar como é que é preciso tão pouco para dançarmos freneticamente durante horas, fazendo-nos sentir quase ridículos e manipulados por si. Ao mesmo tempo que nunca transmite uma sensação de não se esforçar — repito, cada som é levado ao máximo escrutínio técnico –, a artista leva-nos a perceber um pouco sobre a verdadeira essência do techno, mesmo que sonoramente esteja bastante distante das suas fundações: a repetição, o aproveitar cada som e até onde é que ele por si só nos consegue levar, uma energia em constante andamento que nos agarra pela mão e nos arrasta com ele, quer tenhamos energia para isso quer não.

A primeira noite do Sónar trouxe-nos o que se faz de melhor hoje em dia na música de dança, tanto nos maiores palcos do mundo como nas venues escondidas aos olhos dos menos atentos, trazendo ao mesmo tempo uma elite de veteranos que construíram nas suas garagens o fenómeno global que hoje esta vertente musical é. Os visuais não desapontaram, a música também não, mas sentiu-se alguma desconexão por parte do público, que parece ter vindo maioritariamente pelo festival e não pelos nomes que o completam, o que se estranha um pouco dada a muito fraca identidade que tem. Apesar de termos todos noção que festivais são, no fundo, um negócio, é complicado quando essa ideia é tão espetada na nossa cara, sem a tentativa de criar uma experiência cultural interessante e única que fizesse o público viver algo mais memorável e positivo enquanto ali está — para além das burocracias desnecessárias das pulseiras, shuttles pagos entre salas e toda a divisão que há de um dia de festival em mil e um bilhetes, quase como se estivéssemos num festival com DLCs que temos de adquirir para ter a experiência completa. Numa era em que vemos cada vez mais festivais expandirem-se por vários países, que resulta numa centralização indesejada das expressões culturais, o Sónar Lisboa acabou a ser um exemplo de um festival pouco conseguido nesse aspecto, vivendo mais do seu prestígio e acabando por se desleixar na maneira de tornar esta experiência melhor para os seus clientes (e esse factor foi algo que não nos deixaram esquecer). Mas, em conclusão, isso não impediu que os nomes no cartaz proporcionassem bons concertos, apesar de, por vezes sentirmos, que o público não estava à altura.

– Francisco Couto



[Dia 9]

IAMDDB veio este sábado ao Sónar trazer muita atitude aos clássicos na intersecção do r&b com o rap a que nos foi habituando, mas também a muita música nova. Pelo caminho, o “envergonhado” público do mais recente festival lisboeta ganhou algumas nódoas negras com uma série de moshpits que deixam perceber as tendências IAMDDB para 2022 — drill e mais atitude do que nunca.

O espectáculo aconteceu no Pavilhão Carlos Lopes, um plateau com extremo bom gosto que desafia os palcos metálicos improvisados a que os festivais de Verão tanto nos têm habituado. No recinto escuro e com uma extensa instalação de luzes ao seu dispor, a artista (nascida em Portugal e criada em Inglaterra) iniciou a festa com as favoritas dos fãs e  foi fazendo pedidos à equipa para se alterasse o esquema de iluminação. “The Sun Shines on my Face“, tema ainda por libertar, foi um dos que teve direito a pacote de luzes especial de um laranja extra brilhante e que nos trouxe vibrações reggae que perduraram mais um tema.

Mas o sentimento foi-se alterando e, lá dentro, o dia virou noite dando espaço ao aparecimento da sensualidade e agressividade dos novos temas que deixam aproximar IAMDDB da postura apresentada em palco por artistas como Rico Nasty ou Cardi B. Há aqui uma clara nova aura que procura fugir à voz soul e às melodias r&b e aproximar-se de uma cultura rap actual e de uma musicalidade mais na cara. Ouve-se no vocabulário utilizado, nos temas das letras e na sonoridade próxima do drill mas com demasiadas referências globais.

Numa fase mais obscura do showcase, IAMDDB ia pedindo ao público que cantasse mais alto, ensaiando mesmo os refrões com a plateia antes de apresentar música nova. A vergonha foi-se dissipando e três moshpits depois o Pavilhão Carlos Lopes já cheirava ao suor e cerveja derramada de uma verdadeira festa hip hop. 

No final, houve tempo para algum “drama” com um dos novos e mais agressivos temas a ser disparado três vezes no set do DJ. Primeiro foi a artista que não gostou da recepção do público ao novo tema. Depois foi o próprio DJ que num barulhento rewind decidiu tocar o instrumental do início – a atitude valeu-lhe ouvir um “you play too much”.

Em geral, foi tudo o que se esperava e muito mais durante cerca de 45 min de espectáculo e dois temas encore, mas perante um público a meio gás. É que havia música para ouvir até às sete da manhã e IAMDDB foge também à sonoridade central do festival mais electrónico que passou pela primeira vez por Lisboa em 2022.

– João Daniel Marques



Com mais de 500 mil habitantes, Lisboa consegue ainda assim ser uma cidade solitária para quem nela habita. No entanto, o local por vezes abre-se ao mundo e transforma-se no maior parque de diversões para turistas. E uma dessas ocasiões celebrou-se este fim de semana com a primeira edição do Sónar Lisboa. 

O já conhecido festival que foi criado em 1994 veio até terras lusas para quatro dias de música, tecnologia e criatividade. Nesta versão, a programação do festival divide-se em dois momentos: Sónar by Day e Sónar by Night — e foram muitos os nomes que encheram as principais salas lisboetas. 

No Pavilhão Carlos Lopes, o produtor e DJ franco-equatoriano, Nicola Cruz, convidou-nos a participar numa experiência sónica em que os rótulos da electrónica se fundem com os sons do mundo ancestral. Face ao set anterior de The Blaze, Cruz pareceu não ter conseguido cativar um público sedento de passos dançantes e previsíveis e que o trocaram pelo palco exterior. Ainda assim, não lhe foi dado o devido mérito — e o contexto festivaleiro não ajudou.

Curiosa foi a mudança de público do dia para a noite e do Pavilhão para o Coliseu de Lisboa. Depois do DJ set de Helena Guedes, chegou a vez de se ouvir “um dos segredos mais bem guardados da música electrónica”: falamos, claro, de Leon Vynehall, que se apresentou de costas voltadas para o mundo numa meia lua de luzes sincronizadas. A mostra do seu mais recente trabalho, Rare Forever, pecou por não ter sido numa sala em nome próprio para a dimensão do espectáculo sonoro que ofereceu. De joelhos, entre cabos e máquinas, Vynehall confessou que as suas experiências eléctricas são únicas do seu estilo. Seja ele qual for, apesar da sua já comprovada versatilidade sonora, uma coisa é certa: Vynehall ofereceu um concerto exemplar, merecedor de nota máxima, deixando a desejar um regresso breve num ambiente mais privado. 

A transição de Chloé Robinson, com um set enérgico em que não faltaram faixas encorpadas de house e techno, ajudou o público mais discreto a soltar-se da viagem proporcionada por Vynehall. No entanto, a passagem de rRoxymore ficou aquém das expectativas. A artista francesa mostrou uma certa dificuldade na leitura do público, não desenvolvendo as suas batidas ferozes. Será que por vezes não nos temos de render um pouco ao previsível para surpreender na ousadia? 

A questão colocada não teve demora assim que Sam Shepard pisou o palco. Floating Points é um nome já conhecido de épocas passadas, mas parece que esta temporada lhe concedeu mais fãs — e com razão de ser. A passagem de Shepard pelo Coliseu de Lisboa assombrou qualquer memória da sua passagem pelo NOS Primavera Sound de 2016. É verdade que o tempo passa e a sua maturidade sonora tem vindo a tornar-se cada vez mais robusta, complexa e variada — não tivesse sido naquela altura considerado uma das promessas da electrónica. Sendo assim, impossível não desejar uma apresentação do seu último trabalho, Promises, acompanhado da Orquestra Sinfónica de Londres, que colaborou na produção do mesmo, acoplado de visuais e luzes. Mas essa fica para uma próxima. Nesta, tanto prometeu que cumpriu. Durante uma hora e meia, Floating Points moldou à nossa frente um conjunto imprevisível e com transições exímias, sendo quase o ponto alto da noite. Quase.

SQN (“só que não” para os menos actualizados). Pelos vistos, os Bicep não se deixaram acanhar. Matt McBriar e Andy Ferguson roubaram qualquer distintivo de melhor actuação. Tendo recebido, em 2017, críticas promissoras com o seu álbum de estreia, a apresentação de Isles, o segundo disco, um pouco mais introspectivo, lançado em 2021, deixou a curiosidade à flor da pele. Tanto a nível sonoro, como a nível visual, assumimos aqui que foram a pastilha (sim, a pastilha) no topo do bolo. Se por norma o Coliseu é uma sala grande, tornou-se pequena para acolher a dupla-sensação. Brincaram com tempos, ritmos, sensações e, no fim, ofereceram aquilo que a música electrónica faz desde a sua génese: exorcizar demónios e sintonizar corpos sob a mesma frequência. 

A conclusão é simples de se escrever: Lisboa, apesar de solitária, torna-se divertida e surpreendente em dias de festa — que todos os dias fossem dias de festa em Lisboa — e que está ao nível de outras cidades europeias para receber festivais de grande dimensão. Desde uma produção organizada, ao pouco tempo de espera entre artistas, passando pela segurança dos espaços e às equipas de limpeza, tudo isto permitiu a muitos estrangeiros e a uns quantos locais desfrutar de uns bons dias. Contudo, a escolha das salas não foi a melhor, a deslocação entre os diversos espaços rápido era lenta, desnecessária e excessiva face aos custos do festival, fazendo com que os públicos se dividissem por “credo” consoante a programação — o que não foi mau de todo. 

– Rita Matias dos Santos



[Dia 10]

Torres abriu o último dia do Sónar Lisboa 2022. Em parceria com Noia fundou em 2015 a XXIII, selo que conta com mais de 30 lançamentos e que é hoje em dia uma referência para a música de dança em Portugal. O seu set incluiu músicas funk dos primórdios do movimento (a maior parte carioca) onde a influência do miami bass é notória. A sua selecção musical pode ser vista como uma antologia do funk carioca e paulista. Torres assina o programa MORRO na rádio britânica Noods, um programa imperdível para quem pesquisa e é apaixonado pelo funk brasileiro. É organizador e curador do Baile Maracujália. Noia deu seguimento ao DJ set de Torres, passando faixas poderosas de techno e electro. O seu set foi mais pesado e menos tropical que o de Torres. Apesar da presença do funk brasileiro, o elo de ligação destes dois agitadores culturais da cidade do Porto, o drum and bass, o breakbeat e o grime foram estilos musicais muito presentes nas escolhas de Noia.

Pedro da Linha e RIOT fizeram a passagem do funk brasileiro para os géneros de música electrónica que nasceram da diáspora africana, nomeadamente o afro-house, mas também estilos como kuduro, kizomba, tarraxo, zouk, entre outros. RIOT foi um dos principais intervenientes do início deste movimento. A maior parte do público português conhece-o da banda Buraka Som Sistema, um marco para a música electrónica em Portugal. Pedro da Linha é filho desta geração. O seu trabalho foca-se no afro-house, como demonstra o seu álbum Da Linha, lançado pela Enchufada. O b2b entre Pedro da Linha e RIOT foi muito fluido e orgânico. Através do trabalho discográfico de editoras como a Enchufada ou a Príncipe Discos, RIOT e Pedro da Linha demonstraram ao público do Sónar a qualidade de muitos produtores portugueses.

EU.CLIDES foi o primeiro showcase da noite. EU.CLIDES canta, toca guitarra e demonstra as suas qualidade de produtor musical ao manipular ao vivo o Ableton Push. A sua música é quente, doce e fresca: transporta-nos para um lugar na ordem do sonho. Acompanhado por teclas e diversos elementos de percussão, o seu concerto apresentou uma selecção de músicas que serão publicadas no seu álbum de estreia em 2022 — para além das canções editadas no EP Reservado em 2021.

O b2b dos fundadores da editora Discotexas, Moullinex e Xinobi, foi uma viagem pela música house, deep house, nu-disco e downtempo. Foi um DJ set limpo sem grandes oscilações. Parece-nos interessante salientar que a versão dos Ohxala da música “Sempre que o amor me quiser” de Lena dDÁgua fez parte das escolhas deste set.

De seguida actuaram ao vivo Polo & Pan. O seu live deu continuidade ao DJ set que lhe antecedeu, um concerto muito pautado pela música house e pela pop electrónica. O toque electro-swing característico do trabalho da dupla francesa encaixou na perfeição no ambiente daquela tarde de domingo. A pesquisa musical de Polo & Pan vai desde a música francesa autoral dos anos 60 e 70, à música house — muitos são os momentos onde podemos ouvir samples desta pesquisa. A sua música, à semelhança de EU.CLIDES, é uma lufada de ar fresco. Polo & Pan interpretaram várias das faixas do seu último álbum Cyclorama, lançado em 2021 pelas editoras Hamburger Records e EOS Records.

As últimas actuações do interior do Pavilhão Carlos Lopes foram levadas a cabo em três actos. Neste último dia de festival, Jayda G foi a única DJ a fazer um set exclusivamente em vinil, relembrando-nos da complexidade deste ofício. O seu set foi porventura a melhor selecção musical da noite. Uma playlist cheia de groove repleta de relíquias da música disco; Overmono apresentou-se em formato DJ — mas a sua discografia é extensa e pode ser encontrada nas editoras XL Recordings, Poly Kicks e Whities. Este set rompeu com a sonoridade da música house que, até à sua performance, foi uma constante em todas as actuações (com exceção de Noia). O som da dupla de DJs e produtores britânicos trouxe para cima do palcos géneros musicais como drum and bass, UK Garage, breakbeat e jungle. Tom e Ed Russel estiveram à altura das expectativas e provaram que são uma referência do movimento rave do Reino Unido e uma fonte de inspiração para quem queira fazer parte dele; Violet e Bleid fecharam em b2b a primeira edição do Sónar Lisboa. Ambas são já sobejamente conhecidas na cena da música electrónica portuguesa. Para quem vive em Lisboa, são dois nomes presentes já há muitos anos na cena techno underground da cidade. Como seria de esperar, este b2b foi um set a alta velocidade que percorreu vários estilos de techno, contudo, o electro e o acid foram os balanços predominantes. 

– Rodrigo Fonseca


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