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Fotografia: Unax LaFuente
Publicado a: 28/03/2022

Uma música queer, total, de intervenção.

Arca: raízes de silicone

Fotografia: Unax LaFuente
Publicado a: 28/03/2022

Bem pode ser o acontecimento musical do ano. Arca vem a Portugal no próximo dia 8 de Abril para participar no Sónar Lisboa. O concerto terá lugar no Coliseu dos Recreios e as expectativas são altíssimas. O que iremos ver e ouvir? O que se pôs Alejandra Ghersi, a pessoa por detrás da persona, a criar depois dos cinco álbuns da série KiCk e de @@@@@, todos saídos no período de paragem forçada da pandemia, singularizando-a entre os artistas que, inconformadamente, mais produziram nos últimos dois anos?

As perguntas acima são mais do que justificadas, pois estamos perante uma figura da música electrónica que, na altura em que tal transformação seria menos expectável, se atreveu a afirmar-se como cantora, aceitando o desafio que lhe foi feito por Björk, dando assim uma nova caracterização a um corpo de trabalho que, já por si, tinha o nóvel factor de se conceber como uma performance-arte integral, sem ter a coreografia, os figurinos, os cenários, as imagens e as luzes como meros adereços. 

Mais ainda, trata-se de uma mulher trans não-binária (ainda importa referi-lo, mas na esperança de que um dia não seja mais necessário qualificar identidades de género ou sexualidades) nascida na Venezuela e radicada na nossa vizinha Barcelona (a partir de onde construiu uma carreira que furou, em impacto, a exclusividade anglo-saxónica da pop, o que também é um feito) que conseguiu tornar-se no expoente máximo disso a que vamos chamando de “música queer” numa altura em que julgávamos que nada iria acontecer nas artes derivadas da acção de movimentos sociais que haviam sido obrigados a “ficar em casa”. Música queer? Sim, música que é queer porque tem implícitas as marcas de queerness da sua autoria ou porque tem nessa queerness, explicitamente, a sustentação da mensagem que nos transmite, ainda que os idiomas musicais, as tendências, as correntes ou os estilos escolhidos possam ser muito distintos. 

KiCK, o work-in-progress de 2020 e 2021, deu forma a tudo isto, mas é óbvio que as bases do que ouvimos na série, e com certeza do que ouviremos no Coliseu, vinham detrás. Queer é fluidez, movimento, mudança, curso, tal como ficou definido pela literatura proveniente de teóricos como Judith Butler e Paul B. Preciado. Já estava tudo definido no álbum &&&&&, de 2013. Arca apresentava uma música que é isto e aquilo e aqueloutro em simultâneo, e… e… e… e… e…, bem como uma caracterização da condição humana finalmente liberta de alteridade: somos o que somos e o que quisermos ser concomitantemente, ou seja, ao mesmo tempo. O princípio vem de um filósofo caro aos pensadores queer, Gilles Deleuze, partindo da noção botânica de rizoma, que consiste no emaranhado de raízes de certas plantas, nenhumas sendo principais ou secundárias.

Estas coordenadas poderiam levar Ghersi directamente para um pós-humanismo utópico em que o entendimento do mundo seja descentrado dos humanos e colocado na nossa relação com a natureza, como de resto fizeram alguns ensaístas queer, feministas e ecologistas, a exemplo de Astrida Neimanis com o livro Bodies of Water, que nos descortina um mundo em que a água contida nos nossos corpos está “em simpatia” com a água dos oceanos, dos lagos, dos rios e das nuvens. Sempre preferindo ir por outros caminhos que não os mais evidentes, Arca não seguiu por aí: fascinada com a ideia de artificialidade, e interessada pelo impulso destrutivo-criador de minar por dentro a distopia em que já vivemos, preferiu o trans-humanismo da relação dos humanos com a tecnologia. Em vez de colocar em prática, na sua obra, as premissas eco-queer-feministas que se têm tornado dominantes, recuou uns passos na história da contracultura popular e pegou no conceito de cyberpunk, formulado por escritores de ficção científica como William Gibson e Bruce Sterling



A inclusão de próteses digitais ou mecânicas no corpo para uma extrapolação das nossas capacidades físicas surgiu-lhe, enquanto proposição artística, como um prolongamento da própria ideia de transição de género, mas na sua mente era imprescindível formular algo de extra que estruturasse esta visão e que fosse para além de um limitado funcionalismo biotécnico. Mergulhou nas mitologias fundacionais da humanidade, fez delas um mix, deu-lhes uma leitura estética pós-pós-modernista e fabricou toda uma envolvência em que a utilidade e o binómio causa-efeito são implodidos. Os andores metálicos em que a vemos montada nos vídeos e nas fotos para nada servem, são artefactos desnecessários e nonsense – como já eram, de resto, em Marilyn Manson. Ou seja, se o pós-modernismo surgido na década de 1980 era irónico, Arca fez com que vingasse na música-em-cena, na música visual, na música performativa, o pós-pós-modernismo (também designado por meta-modernismo) como coisa supremamente cínica. Neste contexto, nada melhor do que a distopia proporcionada pela COVID-19 para melhor suportar este cinismo que dá kicks.

A queerness de Arca é, então, não só subversiva como perversa, recusando qualquer tipo de ingénuo positivismo – “I could be sexy/ Or I could be sad, act bad”, ouvimo-la na primeira faixa de “KiCk i”, “”Nonbinary”. Se a transfobia e a homofobia reinantes acusam as pessoas LGBTQ+ de serem aberrações, Alejandra Ghersi empoderou-se com uma encenada monstruosidade que é tanto mítica (ancestral) quanto cibernética (futurista). A cenografia forjada veio com uma explicação no lançamento de @@@@@, consistindo este disco numa única peça de 62 minutos: “É uma transmissão difundida para este mundo a partir de um universo especulativo e ficcional no qual o formato fundamentalmente analógico de uma estação de rádio pirata FM é um dos poucos meios para escapar à vigilância autoritária determinada por uma sentença judicial que tornou os indivíduos reféns de uma AI pós-singularidades.”

Os cinco KiCks continuam a ser essas emissões radiofónicas, desta feita com o formato canções, interpretadas pela própria Arca ou por convidades, como Björk, a entretanto desaparecida SOPHIE, ROSALÍA e a vocalista dos Garbage, Shirley Manson, entre outres. E eis que, no quarto KiCK, chega o maior dos hinos queer, e tanto assim que só podia intitular-se “Queer”, cantado por Planningtorock: “Tears of power, tears of power/ I got tears like a queer/ Queer power”. Mais adiante, em “Lost Woman Found”, todas as conexões se completam, com a própria Alejandra dando voz a “You can find out on your own/ What it means to be mutant What it means to recognize the alien inside the abject.”

A rádio, tal como qualquer DJ set ao vivo (e Arca também é DJ), é o meio por excelência do e… e… e… e… rizomático, pelo que as duas horas e meia de KiCks são uma sucessão de estilos em soma e acrescento, seja sequencialmente como em cada uma das canções, nada sendo apenas o que parece, e indo do reggaeton a ambiências pianísticas a la Harold Budd, com passagem por baladas venezuelanas tratadas segundo os preceitos da pop de sintetizadores e por temas de techno desconjuntado. Sempre com o glitch, a disfuncionalidade, o erro, a avaria como processo e como filosofia criativa e de vida, numa constante auto-sabotagem que impede cristalizações e essencialismos formais, inclusive os do próprio glitch instituído como metodologia da música electrónica. Com Arca, até o glitch é glitchado. Com Arca, a pop é experimental e o experimentalismo é pop, como uma serpente que se devora a si própria até nos momentos em que julga que se está a dividir em duas.

Nada podia ser mais queer. Desde esse impedimento de quaisquer binarismos até à (r)evolução permanente dos motivos, dos conteúdos, dos esqueletos, das pulsações. Arca é hoje a mais queer de todes es artistas queer, tendo sabido introjectar tais definições da queerness no âmago mesmo do “fazer musical”. Ninguém foi tão fundo e tão longe quanto ela e daí que esta vinda a Lisboa seja tão especial e tão oportuna. Que os pontapés e esperneios sejam eficazes, é o que podemos desejar, pois a sua é uma música de intervenção e protesto, visando uma mudança radical das nossas sociedades. Música queer, total, com raízes a espalharem-se por todos os lados. Raízes de silicone.


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