LP / CD / Digital

slowthai

TYRON

Method Records / AWGE / 2021

Texto de Paulo Pena

Publicado a: 05/04/2021

pub

Se slowthai não tivesse relevado “feel away”, com James BlakeMount Kimbie, e “nhs” como primeiros singles de TYRON – o seu segundo álbum, lançado no início de Fevereiro deste ano pela Method Records, com selo da AWGE –, e tivesse apenas lançado previamente “MAZZA”, com A$AP Rocky (que rapidamente se deslumbrou com este prodígio em bruto e o apadrinhou na sua casa editorial) e “CANCELLED”, com Skepta (outro padrinho, este um verdadeiro Godfather do grime), estaríamos à espera de uma continuação de Nothing Great About Britain, o seu disco de estreia, de 2019, que lhe garantiu o estatuto de novo rosto do punk rap, alheio, no entanto, às regras de qualquer género que o pudesse empacotar numa caixa selada e de conteúdo frágil; uma refrescante força de resistência a invadir os grandes palcos e a espreitar o mainstream; uma voz representativa de uma geração de jovens cuja revolta se tornou essencialmente interior, numa procura labiríntica pela identidade própria em plena era marcada pelo mundo digital e dominada pela exposição iminente e inevitável, não do que se é, mas do que se quer fazer parecer ser (a questão é tão complexa quanto a construção frásica, e o uso cumulativo destes quatro verbos ilustra esta matrioska de camadas que hoje revestem uma geração desnorteada e inconformada com o excesso de informação e com a velocidade estonteante a que a ainda curta vida parece acelerar). 

Continuemos pelos cenários hipotéticos e imaginemos que TYRON tinha sido apresentado como um EP composto pelas primeiras sete faixas que agora conhecemos. Ficaríamos certamente satisfeitos com o mesmo slowthai de sempre, que nunca desilude e que continua fiel a si próprio e a mais ninguém. Mas será que tudo o que ouvimos de slowthai até “PARTY WITH FIRE” (não incluída) – a faixa que marca o ponto de viragem, o pico do álbum, que divide o LP em, mais do que dois lados pensados para uma edição física (que por sinal foi materializada em vinil), dois polos totalmente opostos – representa, realmente, Tyron Frampton e não apenas a personagem que foi sendo construída à volta de slowthai?  

Tyron começou a sua jornada como qualquer rapper da periferia, a falar da sua realidade – dos seus ends –, com pendor notavelmente cru e agressivo, mas desde cedo definido e refinado (tanto quanto a sua estética sonora e visual, inicialmente, poderia ser refinada). “Jiggle” é exemplo de tudo isso, e chega a ser enternecedor ver o então miúdo Tyron, de barba rala e mal amanhada, equipado com as suas melhores peças de marcas obrigatórias (chapéu, camisola e calças da Supreme, t-shirt da Palace e ténis da Nike – só usa Nike, nunca Fila) entre os brits das gerações Y e Z educados pela pop culture, com o sonho ingénuo de se tornar num rapper de topo. Porém, o sonho virou pesadelo, e slowthai foi mergulhando cada vez mais fundo nas profundezas dos seus medos, incertezas, demónios interiores, tendências depressivas e suicidas, perdido entre a figura e a pessoa no turbilhão da fama.  

Habituámo-nos a vê-lo como um artista excêntrico, irreverente, desde as actuações em Glastonbury, trajado apenas de meias e boxers, aos concertos delirantes em salas compactas, com o rapper a cuspir na boca de fãs mais extasiados, e a erguer a cabeça, figurativamente decapitada, de Boris Johnson. Mas nem só de insurreição (a fazer lembrar outros “miúdos” que desafiaram as leis da coroa em nome de Sex Pistols – não há como fugir a esta referência, especialmente em Nothing Great About Britain) se pautava a presença artística de ‘thai. A sua música não ficava aquém e condizia, naturalmente, com a atitude que o cantor britânico exibia quer em palco, quer em público, no geral, e temas como “T N Biscuits”, “Drug Dealer” ou “Doorman” tornaram-se hinos de um movimento que se acreditava estar a renascer aos ombros de slowthai: a ressurreição dos ideais punk a infiltrarem-se no género dominante que se tornou o hip hop; algo semelhante ao que representou Mike Skinner pelos The Streets, mas com um impacto substancialmente maior (e necessariamente diferente) pelo contexto em que surgia, e precisamente pela persona à volta de slowthai, que tanto chegava ao mais british lad como ao mais hip hop head. 



Isto numa primeira fase do sucesso inevitável de slowthai. No entanto, Tyron tem (e sempre teve) dentro de si muito mais de artista do que de “mascote”. Apesar de escondido nas drogas, no álcool, na extravagância, até na infantilidade, e, sobretudo, no seu tão característico rasgado sorriso (e sobre isto, quem vê “sorrisos”, não vê corações…), nunca se escondeu na sua música. Nós é que, provavelmente, não estaríamos a prestar a devida atenção nas entrelinhas até slowthai mudar drasticamente de linha – na segunda metade de TYRON. Ainda assim, além dessas várias entrelinhas, que eram visíveis o suficiente, e depois de um álbum – o primeiro, que não podia ser melhor cartão-de-visita – com uma carga polémica gritante em que slowthai esticou um dedo do meio ao palácio real e a sua majestade, e outro ao Primeiro Ministro de Inglaterra, o corajoso MC foi se revelando como um artista extremamente talentoso e versátil. Trabalhos como “Deal Wiv It”, com Mura Masa, “My High”, com Aminé e a dupla Disclosure, ou “Momentary Bliss”, com os místicos Gorillaz, são, a título de exemplo, registos inequívocos da capacidade de slowthai em “surfar” qualquer vaga de batidas com rimas invariavelmente surpreendentes e distintas de tudo o que já se ouviu. 

TYRON, com as devidas maiúsculas, é um grito de alguém que tenta calar todas as vozes dentro da sua cabeça; alguém que caiu finalmente em si, debaixo da macieira de Newton, agora agarrado à terra pelo seu peso gravítico; alguém que, depois de tanto tempo a disparar flechas em todas as direcções, apontou uma última ao verdadeiro inimigo – o próprio atirador – e atingiu-o em cheio na retina, de modo a apagar a visão turva que o desviava constantemente do devido caminho, seja ele qual e para onde for. Nos primeiros sete temas do disco, Tyron grita uma última vez, expulsa os demónios mais resistentes e extrai as suas vísceras para nosso deleite, que sempre nos alimentámos dos seus banquetes calóricos e picantes, tripas à moda de slowthai servidas por este Bourdain do rap. Mas, em TYRON, as impetuosas e violentas batidas foram “som” de pouca dura, e em “DEAD” uma parte do slowthai que conhecíamos morre. “PARTY WITH FIRE” vira a página, não só no álbum, mas também na carreira, na vida do autor do mesmo. Queimou-se vezes de mais a brincar com o fogo, e percebeu que o problema não estava na chama. E a partir daqui abraça tudo aquilo que o atormenta, consciente de que esse é o primeiro passo para seguir em frente: 

“If you love the world for its flaws, you will never be disappointed” – e a partir daqui tudo muda. 

Os gritos acabaram. A voz de slowthai revelou uma paz inédita no seu tom, uma ternura que não condiz com as palavras que lhe dão vida. E esta segunda volta, aparentemente descendente em energia, mas profundamente revigorante por dentro, abre o livro das confissões com tentativas – de suicídio, por exemplo, como se houve no sample de “I Tried”, de Trey Gruber, que faleceu tragicamente, em 2017, com apenas 26 anos, depois de sofrer uma overdose de heroína –, assumidamente reveladas em “i tried” (mais do que repescagem de título ao sample usado, talvez uma verdadeira homenagem ao falecido autor da canção original). E continua, em “focus”, a expor essa cruz que carrega: “Life never precious and I always had a death wish”.  

As letras minúsculas do lado B do disco transmitem uma sensação de calma, e não de derrota emocional. Não obstante slowthai continuar a falar de assuntos tão sérios e abordados directa e frontalmente, sem rodeios, sem máscaras, sem sorrisos enganadores, parece ter dado a outra face à sua própria mão castigadora. Nestas canções descobrimos uma perspectiva de Tyron incrivelmente sóbria sobre a sua vida e sobre si. Se nunca o ouvimos a explorar os seus sentimentos de uma forma tão honesta e real, ao mesmo tempo toda a sua raiva desapareceu; deixou de explodir em barras ácidas e frenéticas, por cima de instrumentais inflamados, e, apoiado numa produção apaixonante, contou-nos a sua história devagar, ponto por ponto, episódio por episódio, pensamento por pensamento. Deu-se a conhecer e serviu de espelho para todo o ouvinte que precisa de olhar para si mesmo. TYRON é o resultado de um crescimento artístico e pessoal documentado à medida que a transformação se foi desenvolvendo. Começa com slowthai e acaba com Tyron. E todos nós temos um slowthai para o nosso Tyron. Resta saber qual o que fala mais alto e o que se faz ouvir.


pub

Últimos da categoria: Críticas

RBTV

Últimos artigos