Digital

Slow J

You Are Forgiven

Sente Isto / 2019

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 21/09/2019

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Um novo álbum de Slow J. E nem parece que passaram dois anos e meio sobre a edição de The Art of Slowing Down… Desde então, o “puto lento” escalou montanhas, tornou-se referência maior, subiu aos palcos principais e posicionou-se por indiscutível mérito na mais avançada linha da nova música portuguesa, deixando claro que é artista inteiro — ele que escreve e compõe, que produz, rima e canta, toca e dá sempre tudo, da pele às entranhas. Slow, sem a menor sombra de dúvidas, sente isto como poucos. Talvez seja até mesmo mais justo escrever que ele sente isto como ninguém. E, apesar de tudo — ou apesar de tanto… — como evitar ser novamente esmagado por um conjunto de canções com a marca Slow J? É verdade que surgiram assim, sem aviso, mesmo se “Teu Eternamente” já apontasse para aqui, mas ainda que se saiba deste lado da elevadíssima fasquia que João Coelho ergueu, isso de nada serve para suavizar o impacto desta nova fornada. Slow J podia já estar na estratosfera, mas com You Are Forgiven sobe ainda mais alto. E vai ainda mais longe. O importante é que quer levar-nos com ele…

Slow J fez um disco sobre a paternidade, sobre o que isso implica, sobre a responsabilidade e o peso transformativo que tal estado exerceu sobre si. E para reflectir sobre o que significa agora ser pai, o homem que se estreou em 2015 com The Free Food Tape também pensa sobre a família, sobre o pai que lhe deu a medida para a sua nova condição, aborda o amor e as suas complexas tramas, olha-se – como sempre fez, de resto – ao espelho e tenta resolver-se, perdoar-se, seguir em frente porque o seu novo sangue assim o exige. E para isso, Slow pensa também sobre o seu lugar na música, sobre o que quer dela receber e o que tem também para lhe dar. Porque querer muito ser músico, querer “mudar o mundo, mas não mudo” (cantando, portanto) ditou também o que foi enquanto filho e alimentou a culpa que não conseguiu deixar de sentir por ver os seus pais a trabalharem tanto. São assuntos duros, que exigem muito, tanto de quem escreve como de quem deste lado escuta, e por isso quando o álbum termina ao fim de nove temas é impossível não parar para recuperar o fôlego perante a sensação de se ter coberto tanto terreno.

A música primeiro. O álbum abre com a voz de Sara Tavares, uma “Maria capaz de sonhar”, capaz de nos enredar nas doces malhas da sua garganta que tem tanta alma dentro que parece ter espaço para toda a humanidade. E a cadência que carrega “Também Sonhar” tem identidade africana que, aliás, se prolonga com “FAM”, tema em que surgem as outras duas únicas vozes do alinhamento, Papillon e GSon. Uma mulher e uma ideia de África dão-nos, então, as boas-vindas a um álbum que espanta também pela qualidade da produção e pela assombrosa capacidade de explorar que demonstra possuir: afrobeats e semba, fado e trap, canção de protesto resgatada à memória de Fausto e Zeca, boom bap e neo-R&B movido a auto-tune… é, de facto, impressionante o amplo terreno por que Slow se espraia num alinhamento que parece tão contido. São só nove as canções. Mas são também nove diamantes de brilhos novos e exóticos, qualidade alcançada graças à espantosa equipa que se reuniu em torno de Slow J: os créditos de produção listam os nomes, em diferentes combinações, de Fumaxa, Lhast, Rubik, Holly, DJ Ride, Richie Campbell e Charlie Beats, uma equipa de elite de craques que parecem só saber marcar golos. E nesse campo da produção, Slow J também se coloca aqui em jogo, pois claro.

O som, cristalino, com uma noção aguda do espaço que a voz de Slow J exige e merece, tem a marca autoral de Charlie Beats que é cada vez mais nome incontornável do nosso presente e certeza absoluta do nosso futuro. Charlie Beats é, sem dúvida, nome que merece um lugar ao lado da nobre linhagem que nos deu Hugo Ribeiro, José Fortes, Tó Pinheiro da Silva ou, entre outros, Nelson de Carvalho… Se You Are Forgiven soa tão contemporâneo como as melhores produções que vão assaltando os nossos ouvidos vindas de Londres ou Toronto, de Los Angeles, Nova Iorque ou Nashville, parte importante do mérito é mesmo de Charlie Beats. E esse não é, certamente, um detalhe de somenos num trabalho que se percebe ter sido ponderado, em que cada detalhe foi burilado até à perfeição. Não há uma tarola, um delay, um synth, um sub-grave ou uma malha de guitarra fora do sítio neste alinhamento. A lentidão que este artista reclamou no nome é afinal a qualidade de quem sabe exactamente o quanto deve esperar pelo que quer realizar.

E é sobre esse cenário cuidado e de nível superior que Slow J dispõe enfim a sua voz, as suas palavras e histórias, com um preciosismo melódico que o eleva também às mais altas esferas dos nossos intérpretes. Slow faz coisas muito sérias com o seu principal instrumento: há pequenos twists nas linhas melódicas da sua voz que lhe evidenciam uma fina inteligência musical, como aquela com que gargantas iluminadas como Amália e Carlos do Carmo, como Variações e Zeca, como Sérgio Godinho e JP Simões, como Camané ou Ana Moura e até Conan Osiris ou Allen Halloween já tantas vezes nos cortaram a respiração fazendo-nos perguntar uma e outra vez quando escutamos os seus discos “como é que se lembrou de virar para ali?…” Exemplo claro disso mesmo é a belíssima “Onde é que estás?”, tema em que nos confessa que tem dentro uma ferida por sarar mas em que a sua voz soa capaz de curar todas as maleitas.

O rapaz tranquilo que um dia disse que queria fazer ao Rui Veloso o que Ronaldo fez a Figo agora confessa que “queria ser melhor pai“ do que o seu pai, mas também reclama que tem que “continuar a sonhar”. O sonho é, aliás, uma das ideias-chave do álbum a par da família que será uma espécie de contraponto, o que o obriga a manter os pés assentes na terra. “FAM”, que inclui fantásticas prestações de Papillon e GSon, é uma celebração desse sítio onde há sempre lugar para mais um, um lugar em que se dança e que por isso não tem espaço para a pobreza. As palavras são parte crucial deste álbum, parte importante do que Slow J quer dar ao mundo. E quem escreve “tirava-te a dor e ficava eu com ela/ Eu dava-te a flor e ficava com o espinho/ apertava e com o sangue pintava uma tela”, ainda por cima num belíssimo fado como é “Lágrimas”, tem alma funda, sim, mas tem também caneta iluminada. A quantidade de pérolas poéticas neste disco serve para confirmar Slow como grande escritor de canções, alguém que justamente nos diz que “enquanto eles constroem muros, manos/ Eu moralizo manos p’ós mandar abaixo”, apontando, portanto o caminho, como na espantosa “Muros”, o tema em que nos lembra que “nasceu à beira do rio” mas que há-de “morrer à beira mar”. Ele quer ir longe, de facto, mas não quer mesmo ir sozinho.

“Só Queria Sorrir” é neste alinhamento um caso especial: o tema servido por uma melancólica linha de guitarra tem uma interpretação arrebatada de Slow J que parece tirar do mais fundo de si mesmo sentimentos de afirmação, ideias de força que ele sabe que o empurram para cima, sempre para cima. E faz isso com um refrão que parece surgir doutro tempo, que soa tocado pela inspiração de Fausto ou Sérgio Godinho ou algo assim, nobre e clássico. E o curioso é que esse tema surge antes do assomo trap que é “Mea Culpa”, tema que fala de “dores que viraram cores” num jardim e que prova que mesmo em cima de graves pesados e pratos nervosos é possível dispor palavras com significado. Slow J olha para trás e para a frente ao mesmo tempo, “both directions at once”, como Trane…

E no fim, “Silêncio”, uma vez mais com guitarra a apontar o caminho melódico, e a voz de Slow coberta de fumo digital, a querer “cumprir o silêncio”. Aqui ouve-se alguém que nos confessa que queria ser “a lâmpada que acende” e que nos guia no escuro. Slow pode descansar, no fim, porque ele é mesmo o brilho de que precisamos para nos encontrarmos. E agora? É carregar de novo no play porque na próxima audição vamos todos descobrir muito mais. Slow J tem tantas, mas tantas camadas que vamos andar aqui muito tempo a escutá-lo a romper o silêncio. Como tem que ser.


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