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Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 09/02/2024

Denso e profundo.

Silly sobre Miguela: “Foi uma coisa feliz, apesar de ter uma forma muito introspectiva de falar das minhas inseguranças”

Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 09/02/2024

Aos 25 anos, Silly edita o seu primeiro álbum Miguela, três anos depois do primeiro EP Viver Sensivelmente. Seria redutor atribuir-lhe o universo do hip hop: Maria Bentes, com a sua voz doce e a sua palavra-arma, toca nos mundos da pop, spoken poetry e electrónica sem aterrar em nenhum deles. E para a ajudar a construir o seu próprio universo neste álbum — agora feito a quatro braços — contou com o músico e produtor Fred (Orelha Negra, Banda do Mar, Buraka Som Sistema). Os dois sobem ao palco do Centro Cultural de Belém amanhã, 10 de Fevereiro, para apresentar ao vivo o LP.

Original de São Miguel, Maria cresceu no Alentejo e vive agora em Lisboa. Miguela fala exactamente sobre este percurso pessoal e musical, de onde faz parte o sentimento de não-pertença por ter crescido em vários lugares sem fazer propriamente parte de nenhum, num disco marcado pela vontade/necessidade da purga e de querer ser melhor. Se nas palavras e nas sonoridades encontramos densidade, Silly desfaz-se em sorrisos enquanto conta as histórias que fazem este álbum. “Isto é a nossa terapia”, diz sobre este processo de partilha. E que histórias são estas? 

A primeira passará certamente pela participação de David Jacinto dos TV Rural na canção “Disforma”. Numa espécie de aleatoriedade-circularidade, o convite foi rapidamente aceite depois de saber que Maria fazia parte de um vídeo enviado à banda com uma família de sete a cantar a alto e bom som TV Rural numa carrinha que viajava sempre em lotação máxima e onde os TV Rural faziam parte da banda sonora. Marcelo Camelo (Los Hermanos) ajudou a desenhar acordes, Alexandre Soares (Três Tristes Tigres) trouxe a sua influência experimental ao novo mundo de Maria e a fadista Aldina Duarte pegou na sua fragilidade e transformou-a numa emancipação da voz. Mas todas as pessoas que passaram pelo estúdio de Fred Ferreira, desde Branko a Criolo, contribuíram directa ou indirectamente para o disco que fecha este ano e meio de descoberta. Aqui fica a nossa conversa com a Silly. 



Já te referiste como uma “artista Covid” que brotou dessa realidade. Como foi crescer musicalmente neste novo mundo que lhe sucedeu? 

Eu digo isto porque foi exactamente aí que começou esse caminho, então ainda sou um bocadinho um embrião, e este disco é o primeiro momento em que existe uma coisa mais palpável e assumida nesse ponto. Tudo o que sucedeu daí foi o caminho, essa evolução de criar e fazer música, e na minha perspectiva houve alguma liberdade exactamente por isso. Não houve bem uma pressa ou pressão e isso também me permitiu ir fazendo ao meu ritmo as coisas que eu sentia na música, e acho que isso também se reflecte no trabalho. Acho que partires para as coisas sem essa pressa e obrigação de criar também te ajuda a ter essa liberdade. Foi muito ao longo do tempo, um à-vontade que se transforma também em necessidade naquilo que dizes, que escreves e que cantas. 

Miguela é o nome do teu primeiro longa-duração. É alguma referência a São Miguel ou há outra história por trás do nome? 

Tem uma relação com o meu nome, porque eu me chamo Maria Miguel e Miguela foi uma das hipóteses da minha mãe como nome alternativo para mim, mas toda a família chumbou essa ideia. Mas eu sou Maria Miguel, porque o meu pai também é Miguel, e sim, também nasci na ilha de São Miguel, mas tem mais a ver com o meu nome. E por acaso foi uma certeza rápida a que eu cheguei sobre o nome do disco, porque a Miguela eu imagino como se fosse uma persona, uma personagem que dá voz ao disco e o disco é muito sobre isso: sobre a minha vida até aqui e esse crescimento e esse processo. Então em vez de assumir isso como Maria Miguel, a Miguela (que é a criança que se calhar já viste na capa) é como se fosse a entidade que dá voz a essas coisas todas. 

O alter-ego que nunca chegou a nascer. 

Nunca chegou, porque foi só um devaneio de grávida da minha mãe, mas fiquei Maria Miguel e fiquei um bocadinho mais segura… 

A produção deste disco é feita pelo Fred. Achas que o processo de criação continuou a ser individual ou neste disco houve uma relação mais a dois? 

Foi 100% uma criação a dois. Ou seja, a forma como nós iniciamos o processo, sobre aquilo que te estava a falar de não haver uma pressa nem uma ideia muito concreta. Começámos primeiro por trabalhar um tema que eu tinha trazido, que é o “Água Doce”, que também faz parte do disco, e depois conectámos um com o outro e aos poucos fomos construindo, partindo para mais ideias e mais músicas… “E se fizéssemos um disco?” Fomos com calma, pensando nessa ideia, mas logo a partir do primeiro tema que fizemos foi sempre a dois. Não sinto de todo que seja um trabalho individual, foi uma coisa que nós fomos construindo juntos, e acho que o Fred ouve o disco e também sente isso, também sente que lhe pertence. Eu sinto e falo sempre no plural. O nosso disco.  

Porque tu antes fazias primeiro os instrumentais e depois é que partias para a letra. 

Sim, nunca tive essa experiência de estúdio e de produção e isso tem muito a ver com o Covid e o isolamento… Por exemplo, no primeiro EP foi o Pedro da Linha que produziu, mas eu mandei as coisas para ele, nunca estive presencialmente com ele — foi uma coisa à distância. Eu tinha as ideias mais básicas e ele fazia os beats… Mas a primeira vez que tive este processo de produção mesmo, foi aqui neste estúdio. 

Sobre o EP, dizias que te conseguíamos conhecer, mas parece haver ainda mais de pessoal neste álbum. As gravações da tua infância, os clipes que puseste no site, até os videoclipes que são filmados tanto nos Açores como no Alentejo. O que há de ti neste disco? Tudo? 

Sim. O conceito, se tivesse de o explicar, tem muito a ver com isso. Toda a minha história, de ter nascido nos Açores, de depois ter crescido no Alentejo, de viver numa família grande… então acho que essa ideia ficou mais clara para mim, do que é que eu queria traduzir no disco, e vai sendo alimentada por tudo isso que estavas a dizer. Então é fixe fazer um videoclipe nos Açores, que é a minha raiz, ou no vídeo do “Cavalo à Solta” ter excertos de mim em miúda com os cavalos na equitação. Acho que tudo isso (e esses áudios do disco) ajudou a contar a história. Mas acho que aqui existiu ainda mais transparência.  

Todo o teu eu, o teu alter-ego. 

Sim. Da criança. Da Miguela, no fundo. 

E há alguma referência musical que te tenha influenciado neste disco e neste percurso? 

Muitas. Até é difícil dizer só uma. É um dos trabalhos que nós também fizemos muito aqui, juntos, durante este ano e meio: absorver e ter contacto com muitas referências musicais diferentes. Claro que se calhar já tinha as minhas, mais óbvias ou maiores, que são o hip hop, a música popular brasileira e o jazz. E depois outras coisas que foram um plus do Fred de me mostrar outras coisas. Por exemplo a Feist. Eu sabia quem era, mas não estava muito dentro do universo dela e o Fred é muito fã dela. Então ouvir os temas dela constantemente… e termos visto ao vivo e termos estado um bocadinho com ela… Não sei se influenciou muito o disco ou não, mas influenciou-me a mim de forma mais ou menos directa. Não era uma referência para mim, mas de repente descubro uma coisa que ecoou em mim de alguma forma. Foram muitas referências.



Senti que estas músicas eram também mais negras. Achas que há mais escuridão? 

Não. Mas entendo o que tu estás a dizer. Acho que são densas e profundas, porque acho que consegui chegar a esse sítio e acho que isso também tem a ver com essa evolução. Acho que há uma certa confiança de conseguir chegar a sítios, seja na escrita ou na voz, aonde não tinha chegado. Não sei se é negro, porque como para mim foi uma coisa feliz, apesar de em grande parte das letras ter uma forma muito introspectiva de falar das minhas inseguranças. Entendo super bem o que estás a dizer, mas não sinto esse lado negro, só porque é uma exposição de uma coisa que é intrínseca em mim. Por um lado até pode ter alguma luz por isso.  

Foste buscar a profundidade e a purga é um processo feliz. 

Sim, acho que é isso, e sem dúvida existe uma densidade e profundidade. Mas parti para coisas mais melódicas, mais cantadas. 

Senti que no EP tinhas talvez uma proximidade maior ao hip hop, no álbum sinto que encontramos um estilo muito próprio, mais melódico, como disseste. 

Sim. Ainda há bocadinho estava a falar sobre isso. Se calhar também não tinha explorado antes por essa questão da insegurança. “Eu não canto bem, então não devo cantar”, e se calhar nunca parti para fora de pé por causa disso. Então a rima, que até era mais falada e mais contida, e mesmo o facto de o lugar da voz na música estar mais recolhido, tinha mais a ver com o não me sentir confiante ou segura para poder cantar ou ter refrões super melódicos. Por exemplo, no processo deste disco, uma pessoa importante e de quem nós falamos sempre é a Aldina Duarte. Como eu tenho alguma dificuldade na dicção e na projecção da voz, porque canto muito baixo, para dentro, por causa desse medo, e que logo desde início o Fred tinha notado em mim, uma das propostas que ele fez foi convidar a Aldina para fazer essa primeira aula de voz em que ela me ajuda a pôr as coisas cá para fora. Ela também se conectou comigo e gostou muito de estar aqui connosco e esteve também presente em algumas sessões de voz enquanto estivemos a gravar o disco. E eu acho que o ter partido para essa parte melódica é porque era uma coisa que existia em mim, mas que estava abafada por inseguranças. Então entender com esse encontro com a Aldina que eu consigo chegar àquele sítio e consigo fazer isso, também me foi deixando cada vez mais confiante de mim e deixou-me mais desligada sobre o que é certo e errado… 

No álbum falas muito de caminhos, achas que encontraste o teu? 

Eu acho que ESTOU no meu caminho! Não sei como é que ele é, não vejo muito para a frente, mas sinto-me na minha pele. Sinto esse caminho que há para fazer e sinto que estou no sítio certo, mas é um caminho na mesma. Não é tipo “eu cheguei”. Não cheguei a lado nenhum. 

Apesar de teres encontrado um registo mais próprio

Sim, acho que estou na estrada certa, mas há muita estrada para a frente, mas acho que acertei no trilho.  

E achas que esta presença electrónica ajudou nesse trilho? 

Na produção do disco? Claro, sem dúvida. E a forma como nós fomos construindo o disco foi muito a proteger isso, a delinear as coisas. Acho que o Fred entendeu as fragilidades e as coisas menos boas que existiam, como é que as podíamos trabalhar e potenciá-las. Por isso é que não há grandes sobreposições de nada e existe um equilíbrio entre a minha voz e os instrumentais que estão atrás. Houve esse cuidado, de prepararmos as coisas para o meu registo. 

E o álbum termina com uma música com os dois. É um culminar da relação que tiveram neste disco? 

O “Vento Forte” é a minha música preferida. Não devia dizer isto, mas é a música mais especial, que me diz muito. Na minha playlist da vida, essa é uma música muito importante para mim. Está no fim do disco exactamente por isso e também porque é o fechar do disco, mas abre a janela para o que vem para a frente. Para esse registo mais acústico que também sou muito eu e que acho que vai acontecer para a frente. Eu fiquei muito feliz quando o convidei… O Fred canta noutras músicas, faz muitas dobras noutras músicas, mas no “Vento Forte” convidei-o para cantar comigo do início ao fim, e o Fred aceitou isso, que é um sítio novo para ele. Mas porque essa letra que eu escrevi, e essa ideia de ir diante o vento forte, “segue em frente”, ecoou no Fred, e por isso é que também lhe fez sentido arriscar e cantá-la comigo. É uma música muito especial e acho que para o Fred também é. É uma música que também traduz muito o nosso caminho juntos no processo do disco.


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