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Fotografia: Tiago da Cunha
Publicado a: 22/03/2022

Optimismo e humor numa visão profundamente pessoal.

serge fritz: “Eu não preciso de muito para fazer música, apenas tempo e disponibilidade mental. O resto é uma busca pelas potencialidades”

Fotografia: Tiago da Cunha
Publicado a: 22/03/2022

Sem se dar muito por isso, o bracarense Sérgio Freitas tornou-se num nome muitíssimo presente no universo musical nacional das últimas décadas. No seu currículo encontramos créditos em temas de Mind da Gap, We Trust, Old Jerusalem ou, mais recentemente, PZ. É também co-fundador da histórica editora Meifumado, faz parte da altamente exploratória Zany Dislexic Band e, mais notoriamente, acompanha os Sensible Soccers desde a edição de Aurora. Em 2022, o músico sentiu que tinha chegado finalmente o momento de tirar um desejo antigo da gaveta, dar o passo em frente e apresentar-se a solo. gandulo é a estreia de serge fritz, um alter-ego que acompanha o imaginário de Sérgio Freitas desde a adolescência, mas que só agora teve tempo para ganhar vida própria.

O Rimas e Batidas foi, por isso, ao encontro do músico para perceber um pouco melhor como foi dar este passo em direção ao solo act, que mudanças isso trouxe consigo e de que forma se vê num disco que teve a pandemia como força impulsionadora. A importância do humor neste trabalho, as dinâmicas sonoras e a forma como com menos se faz mais, são também alguns tópicos de uma conversa que nos refresca a mente para um mítico programa de televisão dos anos 80. Tudo bons motivos para gandular com serge fritz.



Antes de falarmos dos sons que fazem este gandulo, este é um álbum que chama logo a atenção pelos nomes das músicas. Qual foi a ideia por detrás destes títulos tão curiosos?

Primariamente, este foi um álbum que nasceu de um processo de registo de tudo o que eram ideias e improvisos que ia tendo. E, nessa altura, quando tive de fazer o “save as”, acabei por dar estes nomes assim meio “estúpidos”. Há quem coloque datas. Eu também já fiz isso, mas, neste caso, talvez como um reflexo do confinamento, estavam-me a sair estes nomes. São nomes que acabam por ser um bocado irónicos, como é óbvio. Sei lá, o “putas&vinho verde” é uma expressão típica aqui do Norte, a “brava” é a alcunha da minha avó, outras tem a ver com a minha pessoa ou com o ambiente das músicas, como a “loboxofobia”, que acaba por refletir aquele ambiente muito denso, hermético. Mesmo o próprio nome do álbum é uma ironia porque eu adoro a palavra gandulo, mas ela não se adequa minimamente à minha pessoa. Apesar de, na altura de criação do disco, ter andado a “gandular” um pouco naquilo que são as minhas rotinas, andei muito à noite, houve duas que trabalhei umas 14 horas obsessivas nisto. 

Estes títulos acabam por demonstrar muito do que são o gandulo, um álbum com um certo humor, de improvisos, de momentos, não achas?

Acho que sim, e da minha maneira de estar também. Eu não quero ser um engraçadinho nem fazer um disco apalhaçado, mas também tenho esse lado de não me querer levar a sério. Eu procuro olhar para as coisas com um prisma optimista e, se calhar, o humor é uma arma para me defender das agruras do mundo, mas espero que não seja visto como uma piada. 

O gandulo é um álbum profundamente pessoal. Sou eu sozinho a tocar tudo, os temas foram gravados aqui em casa. Claro que fazer tudo isto fluir acabou por ser uma batalha muito grande, mas espero que este seja um disco que passe uma certa ideia de leveza, de um certo sentido de humor, de uma certa ironia. Nada disto foi muito pensado, foi tudo muito espontâneo. A maioria dos temas foram feitos em uns takes inteiros, por vezes até nem regravei certos defeitos que foram aparecendo porque achei que davam a textura e o feeling certo. Gosto muito dessa verdade. Mais até do que de um disco muito limpinho. 

Um momento humorístico marcante neste disco é aquele sample no final da “fila de trás”. De onde foi retirado aquele momento?

Aquela voz é do Alberto Pimenta, uma excelente pessoa e um dos meus heróis literários, um verdadeiro génio. É alguém em quem me revejo muito: naquele lado irónico, mas que ao mesmo tempo é sério. Ele tinha um programa de televisão nos anos 80, que foi imensamente criticado, chamado A Arte de Ser Português e está disponível no Youtube. Aquilo foi retirado de um momento em que ele finge que está a atender alguém que o critica. 

Essa música é uma homenagem a alguns mitos e alguns heróis da minha infância, e achei que fazia sentido, depois de tanta informação e de tantos synths, fechar com aquelas palavras sábias.

Uma coisa que senti muito no gandulo é que as músicas parecem ter personalidades, ideias, ambiências muito díspares entre si. Por vezes, parece um álbum de vida, feito durante uma carreira e que só agora viram a luz do dia. No entanto, o disco nasceu praticamente todo durante o confinamento.

Ah, sim, e isso é capaz de fazer algum sentido, porque, repara, eu gravei todos os dias durante esse período, e com isso acaba por ser natural que certas coisas sejam mais uplifting, outras mais negras, umas mais rápidas, outras mais lentas. Uma pessoa nunca se sente igual. A grande tragédia foi mesmo fazer a triagem de todas essas horas de gravações, porque aquilo ainda eram um gigazitos. O enorme Zé Nando Pimenta, a quem entreguei a mistura do disco, e que foi uma das pessoas com quem formei a Meifumado, chegou mesmo a dizer que eu tinha, perfeitamente, quatro discos diferentes.

Eu fiquei muito naquela do talvez sim, talvez não, vamos ver. Depois, passado um tempo lá acabei por escolher umas 15 faixas, mas estava com medo daquilo parecer uma manta de retalhos. Lembro-me que o Zé Nando nessa altura disse, “esquece isso, veio tudo da mesma cabeça, se encontrares o alinhamento certo, o álbum vai soar coerente”. Foram palavras que me tiraram um pouco a insegurança e a verdade é que quando cheguei a este alinhamento tudo fez sentido. Há uma coerência tímbrica e sonora, mesmo tendo estilos e carácteres diferentes. 

Eu confesso que se tivesse orçamento para isso, teria feito os quatro álbuns, mas, como só tinha dinheiro para um, saiu um gandulo mais eclético, e que no fundo é um diário deste período. 

Essas gravações que ficaram de fora podem sempre ser usadas no futuro ou não consideras tal? 

Uma excelente questão. Se calhar há por lá coisas que merecem ser olhadas com outros olhos. Também devo ter muito lixinho… Agora, não é algo que me agrada muito fazer, não sou muito de ficar preso às coisas, de voltar atrás. Gosto mais de espremer ao máximo as possibilidades, de tentar coisas novas. Se calhar daqui a uns anos, quando quiser fazer algo mais próximo do gandulo, faça sentido. Talvez algo com banda, que é algo que gostaria de fazer. Até já tenho uma ideia de pessoas que podiam tocar. 

Tu fazes parte dos Sensible Soccers, tocas com o PZ, estás também envolvido na Zany Dislexic Band, sentes que a tua presença nessas bandas acabou por influenciar o som do gandulo

Não, de todo, nisso não concordo contigo. Pode haver alguns sons que fazem lembrar porque sou eu que os gravo e que ponho lá, no caso dos Sensible Soccers, em que estive envolvido nos dois últimos álbuns, e toco ao vivo com eles e isso. No caso do PZ, não há lá nada meu, eu apenas acompanho ao vivo. Pode ser natural haver aqui e ali algum momento, mas inspiração ou influência não, não acho. Talvez enquanto pessoas, porque somos todos amigos, temos o mesmo sentido de humor, uma forma muito parecida de ver o mundo, mas apenas isso, acho eu. 

E agora, tens um disco a solo. Como é que foi esse processo de te chegares à frente e trabalhar sozinho?

Senti-me mal, porque a minha vida na música foi sempre em conjunto, e eu gosto muito disso, sou muito comprometido com essa ideia. Gosto muito de procurar as pessoas, de juntar uma equipa, de ceder, mas também de convencer. A minha primeira banda foi aos 11 anos.

O confinamento acabou por dar-me uma oportunidade de tempo que nunca antes tivera, os Sensible Soccers estavam parados, o PZ parado, não havia concertos, eu tinha as aulas suspensas. Também consegui um financiamento de apoio à edição discográfica da Câmara de Braga. Tudo isto obrigou-me a trabalhar sozinho, algo que na verdade sempre quis fazer mas que nunca fiz. O alter-ego serge fritz já existe desde adolescência, meio na brincadeira,  em que dizia que ia fazer uma álbum de electrónica [risos]. Cheguei à conclusão que não tinha desculpa para não fazer isto. Agora, honestamente, retiro muito mais prazer em trabalhar com outros, aprendo muito e vou a sítios que não estava à espera. Sozinho já sei desde o início que caminho as músicas vão tomar. 

Sentiste muita falta desse feedback na altura de criar?

Eu não senti falta nenhuma, mas não tenho dúvidas que se tivesse o disco teria ficado muito melhor. Várias cabeças a pensar dão sempre melhor resultado, desde que sejam bem-intencionadas. Mas foi a minha decisão, queria que fosse feito assim. 



É fácil então encontrar o Sérgio Freitas no meio deste gandulo tão maquinal?

Acho que sim. Este é um álbum que acaba por reunir um compêndio de sons e características que marcam o meu trabalho enquanto teclista. Há muitos sons, que poderia chamar de assinatura, neste disco. Sons que já usei em vários projectos, mas que vão tendo sempre as suas variações. Eu sou muito chato e rigoroso com os sons, tenho um banco muito reduzido, para mim menos é mais. Gosto de explorar até aos limites as capacidades sonoras de um som. Se um timbre me agrada, eu vou usá-lo ao máximo. Alguns deles já me acompanham há uma década e este álbum acaba por ser uma vinculação dessas sonoridades. 

Dirias que há um lado muito humano no meio das máquinas? 

A parte mais maquinal do disco está nas batidas, onde usei caixas de ritmos e isso, mas o resto é tudo tocado e, sendo assim, há sempre uma parte de interpretação. Esse lado humano vai estar sempre presente nas harmonias, nos acordes, nos timbres que escolhes, porque é pensado. Mesmo as batidas! Tu podes escolher a intensidade e o ataque com que o dedo afecta o teclado e isso influencia a forma como as coisas são gravadas. Depois tudo o que é improviso é rédea solta e não há nada mais humano que isso. 

Não sentes que a forma como usas o humor, como colocas esse lado humano nos synths, como trabalhas e compões as tuas linhas, fazem do gandulo um álbum que procura no mundo uma certa subtileza?

Acho isso interessante. Nunca tinha pensado nisso, mas faz sentido. O álbum acaba por ser subtil, porque foi programado para ser dessa forma. Eu já gravo as coisas com os efeitos que quero. Se eu quiser uma frase com delay, já o faço antes, não em pós-produção. Eu acabo a perder mais tempo na procura de um som do que propriamente a gravar. Normalmente faço poucos takes, porque senão perco a espontaneidade que quero que esteja presente. Agora, sou capaz de perder uma tarde na procura do som que quero. E se calhar a forma como os timbres são conjugados e isso, criam essa ideia de ser algo subtil. 

Que sintetizadores usaste para este disco? 

Um [Behringer] Deepmind. Acho que é o único sintetizador que lá tem. Devo ter usado uns três teclados além do sintetizador. Isto foi mesmo gravado com meios muito parcos. Agora, lá está, menos é mais. O Deepmind até é um sintetizador baratucho, mas ele já me oferece um mundo de possibilidades. Isso do equipamento é secundário, eu podia ter muitos synths icónicos, mas se calhar estava à procura dos mesmos timbres. Isto tudo é muito queres fazer ou não queres fazer.

Eu não preciso de muito para fazer música, apenas tempo e disponibilidade mental. O resto é uma busca pelas potencialidades. 

E sendo pianista, não pensaste em usar o piano acústico em algum momento?

Não consegui. Tenho um piano óptimo aqui em casa, mas não tenho microfones suficientemente bons para o gravar. É algo que gostaria de fazer no futuro. Um disco só de piano acústico. É o meu instrumento de formação, e tenho já muitas ideias na cabeça. A “brava”, inclusive, estava pensada para algo desse género, mas agora acho que não vou usar. É o instrumento da minha vida, gostava muito de fazer um disco assim.

Por falar na “brava”. Foi interessante a escolha do tema para ser o “single”. 

Para mim foi algo muito lógico. Tinha de ser assim. Foi a primeira a ser gravada, a primeira a ser composta porque já tem anos na minha cabeça, foi sempre a primeira do alinhamento, mesmo antes sequer de haver disco. Quando chegou a altura de lançar a primeira amostra, nem discuti muito comigo. Agora, quem houve a “brava” e a seguir houve a “putas e vinho verde” acha que este gajo é maluco. Mas se ouvir o disco todo, se calhar, quando chegar à “putas e vinho verde” já não estranha. E este é um disco que foi feito para se ouvir do início ao fim. 

O vídeo é belíssimo.

Foi um acaso também. Foi feito pelo meu amigo André Tentugal. Eu estava nas redes sociais e vi uma foto que ele postou e, na altura, até pensei que estivesse a filmar nos Açores. Só depois é que percebi que ele estava na Islândia. Mandei-lhe uma mensagem a dizer, “eras um amor se, quando estivesses a tomar um cafézito, apontasses a câmara para qualquer lado, durante uns quatro minutos certos e depois mandavas-me o vídeo”. Quando ele me enviou a primeira amostra, comecei a chorar que nem um menino. Aquilo é mesmo bonito, é uma obra-vídeo, não um videoclipe, mas assenta perfeitamente com aquela música. Foi incrível, estou mesmo super agradecido pelo seu trabalho.. 

E agora o gandulo vai ganhar vida ao vivo? 

Agora é pensar seriamente nisso. Nesta altura as minhas energias estão muito apontadas para o Manoel [álbum dos Sensible Soccers]. Temos andado a tocar o disco. Mas eu gostava muito de poder amiúde ter umas novidades. Até porque o desafio maior, mais do que criar o álbum sozinho, é tocá-lo ao vivo apenas comigo no palco. Era fácil convidar umas duas ou três pessoas e cozinhar um concerto aprazível. No futuro até gostava de fazer isso, mas para já eu tenho esse desafio de montar um espectáculo totalmente sozinho. Eu estou habituado a tocar sozinho, mas no âmbito da música erudita. Não tem nada a ver com tocar estas músicas. Neste momento tenho duas partes a digladiar-se. Uma quer fazer algo mais livre e espontâneo, porque eu gosto de concertos assim, de ser surpreendido, de não esperar ver uma reprodução fiel do disco, mas também há outra parte que acha que se devia reproduzir mais o disco para que este não seja um objecto estranho. Talvez o caminho seja o meio. 


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