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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 01/10/2021

Mestres a manusear a sua própria ideia de nostalgia.

Sensible Soccers: “Encontrámos uma plataforma comum de entendimento que nos transcende e que dá resultado”

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 01/10/2021

A 1 de Outubro de 2011, os Sensible Soccers lançaram um pequeno EP de quatro músicas, estando entre elas ‘Fernanda’, que rapidamente empurrou a banda para a popularidade do panorama indie nacional. Exactamente 10 anos depois, muitos concertos dados em território nacional (e não só), três discos, uma compilação, até mesmo uma participação no Boiler Room — das primeiras por um projecto made in Portugal — e muitos corações conquistados, a banda celebra uma década de existência com o lançamento de Manoel, um disco criado para acompanhar dois filmes do realizador Manoel de Oliveira, Douro, Faina Fluvial, e O Pintor e A Cidade. A ideia deste projeto nasceu não só da paixão dos músicos pelo primeiro filme, como também por uma experiência semelhante, onde recriaram a banda sonora de O Homem da Câmara de FIlmar, documentário de Dziga Vertov de 1929. 

Após 8, Villa Soledade e Aurora, a banda olha com confiança para o futuro mas sem nunca esquecer o passado e “as pedras preciosas” que juntas criaram uma sonoridade tão emblemática e específica que decerto os incluiu nos anais da história da música portuguesa de culto.

Para que não existam enganos, os músicos esclarecem: o resultado não é apenas uma banda sonora de um filme, mas também um disco que respira por si só e do qual se orgulham enquanto o seu quarto longa-duração e a celebração da década de existência. O disco foi já apresentado no Auditório do Museu de Serralves, em formato cine-concerto, onde a banda acompanhou ao vivo ambos os filmes. O disco seguirá a sua apresentação para a Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão, dia 16 de Outubro, e para o gnration, em Braga, nos dias 12 e 13 de Novembro. Conta-se ainda a presença no festival Impulso, em Dezembro.

Para entendermos melhor este novo disco e a sua relação com aquilo que foi feito nestes últimos 10 anos, o Rimas e Batidas falou com André Simão e Manuel Justo, dois dos três membros que compõem actualmente os Sensible Soccers, numa tentativa de descodificar este grupo do Norte de Portugal que rapidamente se tornou um fenómeno tão singular e que persiste, resiste e está aí para ficar.



Em 2021, os Sensible Soccers assinalam 10 anos desde a sua estreia em lançamentos. Como olham para trás para a vossa carreira até agora?

[Manuel Justo] Acho que é, de certa forma, uma carreira consistente e independente. Começámos com ambição e com vontade de fazer as coisas bem, não sabendo bem onde é que nos iam levar, como é óbvio. Mas desde o primeiro EP, porque a primeira música que saiu foi logo a “Fernanda”, sentimos que causámos algum impacto, começámos a ser chamados para imensos concertos, entretanto gravámos o Fornelo Tapes passados três meses, em Janeiro de 2012, e as coisas continuaram a correr bem. Em 2013 lançámos a “Sofrendo (Por Você)”, uma música que teve grande hype, e desde 2011 a 2013 tocámos imenso, fomos tocar a Paredes de Coura ainda tínhamos um EP. No ano seguinte, lançámos o 8, que nos deu alguma robustez na banda, e a partir daí tentámos não ceder às pressas das Internets, fazer render um disco, e também demorar algum tempo a fazê-los, de dois em dois anos ou de três em três. Temos com alguma consistência lançado discos e acho que temos crescido de patamar, e sempre independentes, que é uma coisa que nos agrada bastante. Olho com muito carinho.

A verdade é que desde que apareceram que parece que explodiram logo, que não houve propriamente uma progressão, porque antes de chegarem ao 8, que já foi um álbum mais sólido, já tinham muito hype, e conseguiram mantê-lo a cada álbum.

[Manuel Justo] Nós sabemos isso: sentirmos que somos pertinentes passados 10 anos, e que conseguimos atrair os velhos fãs e os novos fãs, e que a base de fãs que se interessa pela nossa música continua a crescer… isso é altamente.

O que mudou nesta última década?

[André Simão] Em relação à banda, há uma série de mudanças ao longo do trajecto da banda que tem a ver com questões mais prosaicas, desde logo a mudança de elementos, que faz com que a sonoridade mude, e com que as abordagens sejam diferentes. Eu, que estive fora dos primeiros passos de Sensible Soccers, apesar de ter tido a minha primeira colaboração com a banda ainda nas gravações do 8, diria que a sonoridade numa fase inicial era mais indie, mais pop, e que foi amadurecendo. um bocado como as pessoas que foram ficando, e as mudanças que houve na banda também estão muito refletidas nos discos, desde os EPs até aos sucessivos álbuns. Acho que o facto das formações terem mudado, e os músicos terem mudado também, fez com que existisse um reflexo disso no som da banda. E isso é o melhor que pode acontecer a uma banda: ir tendo formas de evoluir, formas de se reinventar, e acho que isso acontece com Sensible Soccers.

O que eu acho interessante nesta banda é que, desde a “Fernanda” até à “Cantiga da Ponte”, a sonoridade é super específica e difícil de ouvir em mais algum lado, quase como se Sensible Soccers fosse um género por si só, apesar de terem passado por várias mudanças no núcleo da banda. Como é que conseguiram manter esta mesma sonoridade mesmo havendo introdução de novos inputs? Qual é o vosso processo criativo e as vossas inspirações?

[Manuel Justo] Para já fico contente por aquilo que estás a dizer porque quando fizemos o Aurora, aquando da saída do FIlipe e quando o André entrou, começámos a fazer músicas novas e não sabíamos onde aquilo nos ia levar, nem sabiamos sequer se no final, com o produto acabado, iríamos sentir que aquilo era Sensible Soccers. Claro que no meio do caminho começámos a perceber que sim, que havia ali um filão que continuava a passear pela banda e que, apesar de diferente, com uma abordagem se calhar mais tropical, por exemplo, com diferentes instrumentos utilizados no Aurora, acabámos por reconhecer Sensible Soccers ali. 

De resto, em relação à forma como isso se faz, eu não sei propriamente responder. Acho que somos sinceros, exigentes, e gostamos de fazer as coisas à nossa maneira, e somos todos nessa procura, e muito picados nisso. Nós continuamos a fazer as coisas pouco engajados em coisas que para nós não interessam, mas ao mesmo tempo com um grande senso de realidade. Não sei como é que a gente consegue manter esse filão, certamente será pelas nossas influências, pela maneira da gente pensar, porque encontrámos uma plataforma comum de entendimento ao fazermos as coisas que nos transcende, e que dá aquele resultado. Acho que é isso.

[André Simão] E acho que tem a ver também com os pressupostos desse ouro que procuramos quando estamos na mina à procura das pedras preciosas que precisamos para fazer a música. Esse ouro tem uma cor específica que nós fomos aprendendo a identificar, e tem uma cor mesmo muito específica, que terá a ver com influências comuns e com uma espécie de consciência estética da cor desse ouro. Nós muito facilmente estamos num processo criativo e escavamos coisas que sentimos que não são dessa cor, e às vezes até gostamos delas. Na verdade, a música de Sensible Soccers até é muito diversa, é muito heterogénea, mas há uma espécie de um tronco comum dessas coisas que andamos à procura, que acho que é completamente identificável e que tem a ver com o facto de ouvirmos música que se toca em muitos pontos, uma certa nostalgia que procuramos imprimir. Mas é algo bastante abstracto, lá está, não há nenhuma banda que possamos usar como referência, não há nenhum autor que nos sirva de farol, é uma procura um bocado às escuras, mas o que parece ter sido caso é que normalmente acertamos na cor dessas pedras.

Normalmente, no progresso das bandas, é possível notar a influência do presente na sua mudança de sonoridades, a sua adaptação a trends, e, apesar de em Sensible Soccers se notar um progresso, este é bastante singular e não tão ligado ao mundo exterior.

[Manuel Justo] Concordo. Já não somos aqueles rapazes que éramos há 20 anos, de acompanhar as coisas que iam saindo, se calhar descobrimos que no passado também há muitas coisas interessantes e diferentes latitudes, e se calhar ligámo-nos mais à universalidade da música e à pluralidade da mesma, o que nos dá uma sensação no produto final que não andamos ao sabor do que anda a ser feito. Não que isso tenha algum mal! Por exemplo, no início da banda, a “Fernanda”, aquilo é chillwave, não é? Estávamos em 2010 a fazer aquilo e nota-se e não tem mal nenhum.

Apesar de já participares de certa forma neste projeto desde o 8, como foi integrares-te numa banda com uma sonoridade tão específica, André?

[André Simão] Foi um processo bastante natural, não foi uma coisa que sequer me tenha levantado muitas questões. Na verdade, até costumo um bocado na brincadeira dizer que já estive em todos os papéis que dizem respeito a Sensible Soccers: lembro-me de ver o primeiro concerto e de não ter ficado assim tão entusiasmado, depois fui vendo e comecei a gostar muito, depois conheci-os e convidaram-me para gravar baterias no 8, e depois também gravei no Villa Soledade e passei a tocar ao vivo quando sai o Emanuel. Portanto, eu estive no papel de interesse moderado, de fã, depois colaborador, depois comecei a tocar ao vivo com a banda, e depois comecei a compor com a banda. Ao longo destes 10 anos fui estando progressivamente num papel cada vez mais próximo do núcleo duro, até ao terceiro disco, onde lancei ao espelho algumas questões, que partilhei com o Né e com o Hugo claro, que é: não sei o que vai acontecer quando fizermos um disco os três, e a única coisa que temos de ter em atenção é chegar ao fim e perceber se, de facto, isto continua a ser Sensible Soccers. Esse foi o único momento em que eu pus a questão de como encaixar aqui. Em todos os outros momentos foi tão orgânico e natural, evoluiu um bocado como uma amizade.

Vêm em Manoel uma boa forma de celebrar a vossa carreira? O que é que este álbum simboliza para vocês?

[Manuel Justo] Falando por mim, sem dúvida, mesmo. Acho que, neste disco, depurámos o que tínhamos feito no Aurora, mantivemos a mesma formação, fomos buscar novamente coisas ao passado — às vezes vejo um bocado do 8 neste disco, não sei bem explicar onde, no lastro que fica dele, numa certa melancolia que se calhar nos outros discos já era uma nostalgia mais infantil e alegre. Eu vejo neste disco uma espécie de síntese do que fizemos até hoje, e também coisas a apontar ao futuro. Acho que sim, é uma forma excelente de celebrar uma década de existência. E, claro, o facto de estar aliado a um projecto muito específico, que parte da composição [da música para] dois filmes do Manoel de Oliveira, é um disco com um conceito completamente diferente do que havíamos feito até agora. É um disco robusto e que acho que faz jus aos 10 anos de carreira.

[André Simão] Concordo com o Né, acrescentava só que é um bom disco que é uma súmula da carreira pelas razões que ele disse, por parecer ter havido “repescagens” de momentos passados da banda, que também não sei muito bem explicar o que é, mas existe. É um disco mais espartano que o Aurora, que é dos quatro o mais histérico, no bom e no mau sentido, e, para além dessa sensação de resumo do trabalho feito, aponta para um futuro, e tem uma terceira coisa que também é típica e que também foi acontecendo ao longo da carreira, que é ter momentos que parecem exóticos e circunstanciais, coisas que talvez sejam actos isolados na carreira. No Aurora tinha a “Bicho do Soto”, que é uma música que nunca chegámos sequer a tocar ao vivo, que é um objecto estranho no Aurora, e este tem a “Avenida Brasil”, que é uma música que também é um objecto estranho à linguagem de Sensible Soccers. É fixe haver essas três componentes que são bastante fortes quando se chega a 10 anos e quatro discos, e se pensa até que ponto é que este disco representa ou não o trajecto: coisas que bebem do passado, coisas que apontam para a frente e coisas que se calhar vão ficar para sempre ligadas só àquele disco, só àquele momento.

Outra coisa que noto é que nos primeiros discos pareciam ter composições mais ligadas a cada um fazer a sua parte e somar o todo, enquanto agora parece ter um um trabalho muito mais conectado ao estúdio, onde vão buscar sem medo qualquer instrumento que seja necessário para atingirem o vosso objetivo.

[Manuel Justo] É provável que isso tenha acontecido neste disco, se bem que nós sempre fomos um pouco assim, nunca fomos aquela banda em que um toca bateria, outro guitarra, outro baixo, outro canta e cada um faz a sua cena. Nós somos muito curadores da nossa música, vamos sempre opinando muito em relação ao todo, ao que os outros fazem na música, somos muito chatos uns com os outros, do tipo, “não gosto disso que estás a fazer”. E isso é fixe, com ligação à realidade é fixe, e acho que fazemos isso. Diz aí o que achas, André, é que eu sinto-nos iguais.

[André Simão] Acho que, apesar de ser muito difícil perceber exactamente do que estamos a falar, o nosso método, até onde ele é possível ser explicado, não é difícil de fazê-lo: estamos os três juntos, quase sempre aparece quando estamos juntos, somos, como o Né diz, muito chatos uns com os outros, cada um de nós tem de ter o estômago para perceber que tem dois chatos ao lado a dizer tudo e mais alguma coisa, às vezes uma nota pode ser um problema de uma tarde. Esse método é muito calibrado no sentido em que se houver dois que dizem que este é o caminho, com toda a naturalidade o outro mete a viola ao saco e a música continua. As decisões são tomadas muito assim, e para isso obviamente é preciso estômago para nos aturarmos uns aos outros, conseguimos ser intensos, e como estamos a fazer sempre tudo juntos, é quase como se estivessemos os três a tocar baixo e os três a tocar bateria e os três a tocar teclado e os três a programar etc. Funciona muito como um todo, e isso faz com que as fases das músicas vão evoluindo sempre com um carimbo de aprovação, e o que distingue neste disco, se calhar mais até que aquilo que dizias, é termos decidido que íamos tentar ser não só criteriosos na forma como procuramos as pedras preciosas que falava há um bocado, como decidimos neste disco lapidar mais as pedras, ou seja, usar menos coisas, vamos ser mais criteriosos e ser também mais chatos nesta lapidação e esculpir a coisa em vez de sermos tão histriónicos como fomos no Aurora. Estivemos sempre muito juntos neste disco, a pandemia também ajudou a que não houvesse tantas distrações, o processo de composição foi relativamente simples, e essa decisão de tornar as coisas mais austeras, no sentido da quantidade de elementos e da quantidade de soluções que encontramos para cada música. Onde se acaba por se refletir mais essa diversidade tem a ver com os temas cada um por si. Neste disco há pelo menos quatro ou cinco direcções diferentes para onde cada um dos temas vai apontando: há um tema rigorosamente ambiental, há temas mais de câmara, há quase techno, há quase jazz, é um sortido.

[Manuel Justo] Acho que neste disco as coisas vivem mais de arranjos concisos e de frases que são levadas do início ao fim, e que fazem o seu trajecto, e acho que recorremos menos a artifícios, não achas, André?

[André Simão] Sim, acho que as… eu estou sempre com esta imagem, mas acho que a pedra levou cortes mais largos e mais incisivos, ou seja, em vez de ser um caleidoscópio de cortes, tem cortes à faca de momentos muito decisivos que quisemos apostar mais que em complexificar e tornar as coisas labirínticas, o que às vezes também é bonito, mas neste disco a opção foi diferente.

[Manuel Justo] É um álbum mais limpo nas ideias e na maneira como estão expressas ali. Recorremos muito menos a artifícios que nos discos anteriores.

[André Simão]  A “Cantiga da Ponte” é um bom exemplo dessa ligeira mudança metodológica. A música é a única que já tinha alguma existência antes do disco, e era uma linha de baixo, que estruturámos e pensámos que no meio ia levar com uma parte com piano. Quando a música se decidiu nessa duração e estrutura, ela de certa forma ficou feita, e fizemos outra coisa que foram os arranjos. Em vez de, como em outras alturas, estarmos a tentar construir a música, os arranjos, as harmonias, as melodias, a estrutura, tudo ao mesmo tempo, e de forma mais labiríntica, aqui a música foi estruturada, a duração, as suas partes, o que ia acontecer em cada uma, e no final fizemos o arranjo. Isto é um método de composição absolutamente clássico, é assim que se faz by the book, trabalhar a estrutura, trabalhar a melodia, e depois trabalhar os arranjos, e a “Cantiga da Ponte” foi feita assim, um bocado à moda antiga nesse aspecto.

São fãs de Manoel de Oliveira?

[André Simão] Sim.

[Manuel Justo] Sim, mas não sei se conheço um quinto da obra de Manoel de Oliveira. Mas gosto muito, éramos já muito fãs, e muito fãs especialmente do Douro, Faina Fluvial, conhecíamos todo e gostávamos mesmo muito. Há um filme do Manoel de Oliveira que me bateu mesmo muito, que vi ainda em miúdo, que foi A Caixa, e sou fã, do que conheço sou muito fã.



Sei que a ideia surgiu de já terem recriado a banda sonora de Man with a Movie Camera, mas de onde apareceu a ideia de recriar a banda sonora destas duas obras de Manoel de Oliveira? E porquê estas obras?

[Manuel Justo] Para ser sincero, nós tivemos a ideia de musicar o Douro, Faina Fluvial, e de repente lembrámo-nos que o filme só tinha 18 minutos e qualquer coisa, e achámos curto [risos], manifestamente curto para um espectáculo. Mas não queríamos abandonar essa ideia por nada, era algo que queríamos muito concretizar. Entretanto, estávamos a ver opções, e esbarrámos com O Pintor e A Cidade, começámos a ler sobre os dois e achámos que musicar os dois, como são no fundo o contraponto um do outro, seria uma viagem altamente. Um filme é super rápido, o outro é lento, um a preto e branco, outro a cores, o Douro, Faina Fluvial é um filme mais sofrido, que visa mais a classe trabalhadora e as dificuldades, a pobreza, O Pintor e A Cidade é um filme na sua maioria de classe média. Começámos a achar que a ideia era excelente, começámos a desenvolver o projeto, e lembrámo-nos de participar no Criatório, um programa de apoio à criação artística da Câmara Municipal do Porto. Nessa altura, quando fizemos o projeto, apontámos para no fim ele ser um bicho de duas cabeças, um disco independente das imagens, e por outro lado um espetáculo em formato cine-concerto onde os dois filmes seriam projetados e tocaríamos a banda sonora em directo. Ganhámos o apoio, e a partir daí começámos a trabalhar. Olhando para trás, é bonito ver como a ideia nasce e as coisas começam a surgir.

[André Simão] É daquelas coisas que se puxa um fio, e depois começou a sair mais fio, e nunca mais parou de sair fio [risos]. O choque entre os dois filmes era uma coisa que nos entusiasmou logo, porque tomámos a decisão. Mais uma vez o método de compor a olhar para os filmes. Pensámos que era fixe porque cada filme dá sugestões diferentes, e aconteceram coisas muito interessantes à conta disso. Por exemplo, começámos a trabalhar com o Douro, Faina Fluvial e surgiram naturalmente composições mais densas, mais melancólicas e mais românticas, e quando abrimos pela primeira vez o ficheiro d’O Pintor e a Cidade e começámos a vê-lo tivemos a sensação de estar em São Paulo! Vai para aqui uma frescura, vai para aqui uma ligeireza, um quotidiano, e tivemos até a ideia de, na primeira música que trabalhámos para esse filme, que foi a “Avenida Brasil”, nós dissemos que o que ia bem ali era o “Take Five” do Dave Brubeck, então começámos a fazer um ritmo 5/4 e construímos a música a partir disso. Cada filme deu sugestões diferentes, e a forma como os trabalhámos, que fez com que surgissem músicas que não estão no cine-concerto — o álbum tem pelo menos duas músicas que não são apresentadas — e fez também com que o cine-concerto tenha músicas que não estão no álbum. No final, quando acabámos o disco, voltámos aos filmes, levámos as músicas já feitas e desenvolvidas noutro formato e, se a “Cantiga da Ponte” é praticamente igual nos dois lados, outras são completamente diferentes. Umas que só se ouve o início, outras que só o fim, outras tocadas de maneira diferente. Este projecto todo aconteceu um bocado sempre naquela relação de acharmos ter encontrado um bom mote para trabalhar e, ao mesmo tempo, um terreno fértil para que isto pudesse, na prática, acontecer. Fomos puxando a corda e cá estamos. 

Foi muito difícil fundir o universo sonoro dos Sensible Soccers ao mundo cinematográfico do Manoel?

[André Simão] Não.

[Manuel Justo] Não senti nada, por acaso.

Então qual foi o vosso maior desafio neste projeto?

[Manuel Justo] A responsabilidade. Nós falámos disso no início, “estamos para aqui a dizer que vamos musicar o Douro, Faina Fluvial mas isto não é assim”, estamos só a falar do maior cineasta português de todos os tempos. E também tivemos que pensar as coisas nesse sentido, por exemplo, não nos fazia qualquer sentido estarmos a fazer um projecto deste calibre e não termos a Casa Manoel de Oliveira como um aliado no projecto. Para isto também tínhamos de contar com a boa vontade e o entusiasmo para com o projeto por parte dos zeladores da obra, nomeadamente o filho do Manoel de Oliveira, Manuel Casimiro de Oliveira. Felizmente, a instituição e o Manuel Casimiro interessaram-se pelo projeto e apoiaram-nos imenso, e as coisas foram para isso. Primeiro isso não foi uma dificuldade, mas sim uma responsabilidade. 

As dificuldades foram segmentar os filmes, ver claramente artes distintas dentro do filme, às quais iríamos casar determinados temas, e isso foi um trabalho complicado. Pensar no acabar de um tema e no começar do outro são coisas sensíveis e têm essa responsabilidade acrescida por estarmos a falar de sonorizar um filme, mas, em tudo o resto, senti que a nossa música se fundia com o cinema dele de uma forma completamente natural, e depois, falando do disco propriamente, depois de nos abstrairmos dos filmes e passarmos a trabalhar só nele, foi um disco normalíssimo para nós, não é uma coisa paralela à carreira de Sensible Soccers, é o sucessor de Aurora, sentimos isto.

[André Simão] O Manoel de Oliveira falava muito do seu próprio atrevimento, falava de ser atrevido na forma como se atirava às coisas, e isso também nos inspirou. O simples facto dele ter dito isto foi quase como se estivesse a falar para nós, uma espécie de “siga rapazes, sem medo!”. Ou a relação, como o Né dizia, com o filho dele. Aquilo começou com uma conversa muito assustada e evoluiu para muitas conversas de uma hora para cima a falarmos sobre tudo e mais alguma coisa, a dizer que gostava muito da música, e a falar dos dilemas entre a arte e o artista. Ter este contacto com o filho dele, que é o zelador da herança do Manoel de Oliveira, ter esta mão a dizer que está a gostar do que está a ouvir, fez com que aquilo se podia ter transformado em pequenos bloqueios fosse exatamente o contrário. Aqueles primeiros tremores que pudessem surgir nas primeiras conversas que tivemos sobre isto desapareceram muito cedo no processo.

A banda sonora foi criada numa tentativa de respeitar o ambiente de cada cena ou mais numa de arriscar e criar novos contextos? Ouviram muito as bandas sonoras anteriores feitas para os filmes?

[Manuel Justo] Foi tudo do zero, não usámos referências das bandas sonoras, ou quase nada, até porque uma banda sonora sugere sempre quadros e capítulos do filme, e queríamos que os nossos não fossem necessariamente os mesmos que já foram contados nas bandas sonoras anteriores. E é curioso que, lá está, para nós que vemos a coisa de dentro, sentimos que, apesar de haver momentos que imaginamos que possam ser lidos como confrontacionais para com os filmes, na verdade para nós não nos sentimos assim. Sentimos que a resposta que demos musicalmente a cada momento era aquela que achávamos exactamente que devia ser. Há um momento em O Pintor e A Cidade em que ele deambula muito rapidamente pela rua e passa por uma multidão de pessoas, que por sua vez também estão agitadíssimas, e a música que se sobrepõe na banda sonora quando apresentamos ao vivo, que é uma versão da “23:16,” transformou aquilo quase numa espécie de perseguição policial, aquela agitação toda, mas no entanto é exactamente aquilo que vemos ali, vemos uma agitação num determinado momento do filme em que achámos que era o que ele precisava e o que pedia. Nunca tivemos muito aquele ímpeto de dizer “aqui vamos jogar mais contra ou mais a favor do filme, ou mais em respeito, ou mais em complemento, ou mais em oposição”. Foi sempre um processo muito natural e é engraçado, nas primeiras reações que temos ao cine-concerto, que vêm da primeira apresentação em Serralves, ouvimos opiniões que já parecem apontar certas coisas que nem sequer previmos. O Ricardo Lisboa, uma das personagens principais que trabalha na Casa Manoel de Oliveira, disse, em relação ao Douro, Faina Fluvial, que aquelas pessoas pobres, desdentadas, sujas e trabalhadoras, ao som da banda sonora lhe pareciam heróis, uma coisa que nunca pensámos muito quando estávamos a fazer o filme. As respostas foram muito intuitivas. O António Preto, o diretor da CMO, dizia que estava ansioso por ouvir uma reinterpretação de O Pintor e A Cidade porque não era muito fã da banda sonora original, e que estava ansioso para saber como resolvíamos alguns momentos dentro do filme. Nós nunca tivemos em mente responder à banda sonora original porque não se incorporava no processo de fazer o cine-concerto, portanto diria que a nossa resposta é muito mais conceptual a cada momento do filme e muito mais intuitiva. Músicas bonitas que tornaram aqueles momentos mais bonitos, não necessariamente músicas pensadas para criar um determinado condicionamento emocional, não foi tanto assim.

Como foi a recepção ao espectáculo de estreia?

[Manuel Justo] A reação foi óptima, mesmo. A sala estava cheia, sentimos também a ansiedade das pessoas em ver aquilo, estava uma sala muito bonita composta por público dos 16 aos 80, e tivemos aplausos super enérgicos, algumas pessoas confessaram-me terem-se emocionado em algumas partes do espetáculo, e acho que a estreia não podia ter sido melhor. O que senti, particularmente, foi que todas aquelas coisas que nós achávamos que iam funcionar, funcionaram a 100%, e que no seu todo o espetáculo fazia sentido. Depois de estar um ano metidos na casota a fazer aquilo, não temos bem consciência, achamos que sim, mas não temos, e a reacção das pessoas, os comentários que nos fizeram chegar, foi o melhor que podíamos esperar.

Alguma música que seja particularmente especial para vocês?

[Manuel Justo] Tal como em todos os discos, acabo por ter as minhas preferências. Se falarmos no Aurora, tenho de falar da “Como Quem Pinta”; falando neste disco, talvez tenha de falar da “Cantiga da Ponte” e da “Fim”, mas as minhas preferências recaem sempre em músicas deste género, batem-me mais.

[André Simão] Em relação a este disco, se há coisa que eu gosto nele é, apesar de eu no contexto da banda estar no outro extremo do Né, porque sou mais ligado ao ritmo, portanto mais sensível a essas questões e mais atraído pela complexidade, sinto que, se há uma força neste disco, é ele funcionar na minha cabeça como um bloco. Eu não sei se este disco ficava pior sem a “Fim”, que talvez seja a minha preferida, ou se ficava pior sem “A Noite Inteira”, ou sem a “23:16”. As músicas são muito interdependentes e há uma viagem na narrativa do próprio disco, nos cantos escuros e mais luminosos, nas zonas rítmicas e mais ambientais, que me faz ter muita dificuldade em imaginar esse disco sem alguma das músicas.

[Manuel Justo] Concordo plenamente.

[André Simão] Posso ter algumas preferências muito mais baseadas no processo do que propriamente no resultado. Gostei muito de compor os arranjos dos sopros da “Avenida Brasil”, gostei muito do processo de composição da “Bali Hai”, que foi das que se fez mais depressa e naturalmente do disco, e que por acaso tem uma história. A “Fim” tem uma guitarra que é tocada de uma determinada forma com um determinado efeito, e essa guitarra é praticamente igual à que começa a “Bali Hai”. Praticamente a mesma guitarra praticamente tocada da mesma maneira. Quando ouvimos a guitarra isoladamente, decidimos fazer uma música a partir dela, e levou a coisa para um caminho de tal maneira diferente que, provavelmente, se não for dito por nós, dificilmente alguém irá perceber que são a mesma guitarra.

Como é que, num disco feito pelos Sensible Soccers, como interpretação de um filme de Manoel de Oliveira, cabe uma música que tem uma referência aos “Jardins Proibidos” do Paulo Gonzo?

[Manuel Justo] [risos] Nem sei o que dizer sem relação a isso. Sei lá, achamos mesmo que aquela música é um jardim onde só vai quem tu quiseres, não vai qualquer outra pessoa, e achávamos a referência cómica e somos ligados ao sentido de humor. E, ao mesmo tempo, que cómica, bonita! É difícil, mas acontece-me agora já nem me lembrar do Paulo Gonzo quando penso no título da música.

[André Simão] Até porque podes ver as coisas ao contrário. Nós podemos achar que “nesse jardim onde só vai quem tu quiseres” é uma frase que tem de ser recontextualizada, não pode ficar só para o Paulo Gonzo [risos]. Tem que ganhar outro caminho.

Eu pessoalmente acho a “Jardins Proibidos” uma música linda, mesmo não sendo especialmente fã do Paulo Gonzo.

[Manuel Justo] Os versos dela são…

[André Simão] São de génio.

[Manuel Justo] É, é verdade. E esse verso é um verso bonito! Eu acho bonito e, pronto, gosto do título da nossa música. Mas lá está, não tem grande explicação. No início estávamos a pensar em “Jardim” para a música, não era, Simão?

[André Simão] Sim, e depois passou para “Nesse Jardim”, para não ser um jardim qualquer.

[Manuel Justo] Porque, para além da música realmente ser um jardim, ela, n’O Pintor e A Cidade, surge numa altura em que as pessoas estão a passear num jardim. Daí começou a evoluir e não parámos mais [risos]. Tinha que ser.

10 anos findados, o que esperar dos próximos 10?

[Manuel Justo] A ideia é sempre aguentarmos mais 10 anos, se sentirmos que continuamos a ser pertinentes, que não andamos a chover no molhado nem com pouca pica ou com pouca raça a fazer as coisas, ou que já estamos a fazê-las por razões que não são as que devem levar as pessoas a fazer música e fazer discos… que é fazer música e fazer discos. Enquanto sentirmos isso, vamos continuar. Se começámos sem saber minimamente onde é que isto nos ia levar, assim que o mundo nos começou a dar coisas de volta nós começámos a corresponder e acho que, neste momento, criámos uma carreirazinha e condições e uma equipa que nos permite pensar em continuar com muita vontade. Eu acho que tenho mais vontade agora de continuar com a banda que tinha quando tínhamos quatro anos de existência. E vejo-nos mais afoitos, abraçamos desafios que antes rejeitávamos, somos muito mais arriscados. Sinto que o mindset da banda mudou, e que mudou muito com a entrada do André Simão, que é alguém muito dinâmico e que atira a banda para a frente. E, pronto, tem sido sempre a aceitar coisas loucas, e a pensar fazer coisas mais loucas, e enquanto sentirmos isso, que não andamos aqui a ser chatinhos, vamos continuar, e temos condições para repetirmos mais 10 anos, se tivermos saúde.

[André Simão] Posso parecer um bocado cor de rosa na resposta, mas não estou a tentar ser fofinho. Acho que há uma coisa muito fixe nesta banda que é trabalhares com a certeza que nenhum de nós, se tivesse a sensação de estar a chover no molhado, ficava lá mais um minuto. E por isso acho que é isso que vai acontecer. É como o Né disse, enquanto houver entusiasmo que vem do sítio certo e vai para o sítio certo, a banda vai continuar a existir e perseguir as coisas que gosta, e tenho a certeza que, se isso deixar de acontecer, é com muita naturalidade também que ela deixa de existir. Não há nenhuma razão para acharmos, pelo menos nesta altura, que isso vá acontecer, mas não deixa de ser um sossego saber que, se não for pelas razões certas, a banda não continua. É garantia que, quando começamos a fazer um novo disco, que é uma coisa que nos próximos tempos não vamos pensar, porque estamos a acabar de editar o último, ele vai ser feito neste pressuposto, que são os melhores.


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