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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/10/2025

Um programa que insiste na diferença, na escuta atenta, na experiência situada.

Semibreve’25: o futuro regressa a Braga

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/10/2025

Braga prepara-se para acolher, de 23 a 26 de Outubro, a 15.ª edição do Semibreve, um dos festivais mais interessantes do panorama europeu na forma como aborda a música electrónica e as artes digitais, facto que, aliás, ecoa a declaração de intenções que a artista Grand River fez na sua entrevista ao Rimas e Batidas: “É um festival em que sempre quis tocar, por isso estou muito feliz por participar pela primeira vez este ano”. O título, como o próprio programador do Semibreve Pedro Santos ressalva na entrevista que igualmente nos concedeu, “diz muito, ou até quase tudo: festival de música electrónica e artes digitais”. Mas importa compreender que essa aparente simplicidade é apenas o limiar de uma experiência que, há década e meia, insiste em expandir-se para “um sem-número de separações, pequenas caixas-surpresa, divisões secretas”, como ele igualmente acrescenta. O Semibreve não se reduz a uma sucessão de concertos: é uma narrativa em quatro dias, um “guia para uma fruição artística muito particular” que articula música, instalações, conversas, workshops, filmes e, sobretudo, a cidade de Braga como palco e laboratório experiencial.

No centro desta narrativa estão, naturalmente, os concertos. Pedro Santos não esconde que “os concertos são sempre o principal ingrediente destes dias, e a principal razão para o nosso público aparecer”, mas sublinha que a curadoria nunca se limita ao óbvio. A 15.ª edição é marcada por um leque de propostas que ilustram bem a filosofia do festival: artistas históricos a dialogar com criadores emergentes, experimentação formal a coexistir com melodias de impacto imediato, propostas “que parecem encaixar facilmente na noção de beleza que temos, mas também algumas que parecem ásperas à superfície”. Essa tensão é programática e deliberada: “Qualquer novo visitante verá que existe essa curiosidade do público pelo desconhecido, aceitando com interesse e sentido crítico o que está em palco, e isso, diríamos, é a mais gratificante dádiva que temos. E, por isso, o estímulo para continuar a querer ser amplo, diverso e rico”, sublinha também o programador.

Entre os momentos mais aguardados do cartaz desenhado para 2025 está o encontro inédito entre Suzanne Ciani e Actress (domingo, dia 26, Theatro Circo). Pedro Santos classifica esta proposta como um dos “bonitos acidentes” que surgem do processo curatorial: “Quando uma das propostas é, justamente, o encontro entre a Suzanne Ciani e Actress: duas gerações de tempos muitos diferentes a dialogarem entre si. O que se pretende destes encontros é justamente o vislumbre de novas ideias”. Ciani, pioneira da síntese modular que já antes passou pelo Semibreve e cujo trabalho desde os anos 70 do século passado tem influenciado gerações de criadores, carrega consigo uma singular história de emancipação tecnológica e sensorial. Actress, por seu lado, é um dos nomes mais intrigantes da electrónica contemporânea, reinventando-se a cada disco na desconstrução de linguagens das múltiplas mutações da club music, do grime ao ambient. A união destes dois mundos não é apenas simbólica — é um gesto de risco, de confiança na possibilidade de que temporalidades e estéticas divergentes possam encontrar um terreno comum. O Semibreve, ao provocar este encontro, demonstra a sua ambição de ser lugar de genealogias vivas, onde “tudo faz parte da música: os consagrados e a sua história com os novos nomes”, como salienta o seu programador.

Outro nome incontornável do cartaz é µ-Ziq (sábado, dia 25, gnration), alter ego de Mike Paradinas, a cabeça pensante do importante selo Planet Mu que, como relembra o Semibreve no seu programa oficial, completa este ano 3 décadas de existência. Figura central da IDM e um dos responsáveis pela criação de um cânone que influenciou boa parte da música eletrónica experimental dos anos 90 em diante, Paradinas carrega a herança da Warp Records e de uma geração que colocou a inteligência artificial da máquina ao serviço da emoção humana, uma figura chave, portanto, do chamado hardcore continuum. O regresso de µ-Ziq a um palco como o do Semibreve é mais do que uma revisitação nostálgica: é uma oportunidade para aferir como ressoa hoje esse legado num público que, segundo Santos, traz sempre consigo “curiosidade pelo desconhecido”. Ao colocar µ-Ziq lado a lado com artistas que exploram linguagens radicalmente diferentes, o festival convida o público a encarar a história não como monumento estático, mas como matéria viva e em permanente transformação. Paradinas levará a Braga uma performance em torno de Grush, 465ª (!!!) entrada no expansivo catálogo da Planet Mu, que contará com a colaboração do artista visual ID:Mora.



O duo emptyset (sábado, dia 25, Theatro Circo) representa outra face dessa pluralidade. O seu trabalho centra-se na exploração da fisicalidade do som, na desconstrução da acústica e na criação de ambientes em que o ruído se torna arquitetura. A experiência de emptyset não se limita à escuta, é corporal, quase táctil — e aqui a escolha dos espaços em Braga torna-se decisiva. Como explica Pedro Santos, “diferentes espaços informam as experiências de modo diferente, e também por isso interessa-nos ampliar a riqueza das apresentações”. A apresentação de emptyset no contexto cénico particularíssimo do Theatro Circo pode ser encarada como um exercício de reinvenção: o espaço em que a peça Dissever vai ser apresentada torna-se parte integrante da performance, sobretudo quando transformado pelo desenho de luzes da responsabilidade de Marcel Weber. O Semibreve tem tornado essa prática da relação pensada com os espaços uma das suas marcas distintivas: “Algumas das igrejas sempre tiveram música nestes séculos todos, e o Semibreve perpetua essa ligação afectiva”, nota o programador, lembrando que o festival não acontece numa redoma, mas numa cidade com história e carácter próprios.

Lucy Railton (sábado, dia 25, Theatro Circo), em colaboração com Rebecca Salvadori (imagens) e Charlie Hope (luz), introduz uma outra camada no programa: a intersecção entre instrumento, imagem e performance. Railton tem-se destacado como violoncelista que expande o território do seu instrumento para campos de experimentação sonora e electrónica, mas neste contexto o gesto amplia-se à colaboração interdisciplinar. Aqui a música surge contaminada pelo olhar, pela performance, pela hibridização de linguagens — aquilo a que Santos se refere quando fala em “criar novos caminhos, novas propostas, novas vozes, paralelos ao programa de concertos, olhando para a realidade de outra forma”.

A presença de Rafael Toral (sexta-feira, dia 24, Theatro Circo) reforça o gesto de inscrever o experimentalismo português neste mapa global. Ao longo de décadas, Toral construiu uma linguagem singular em torno da manipulação do som eléctrico, com atenção ao gesto improvisado e à espacialização. A sua inclusão no programa é também um comentário crítico: um festival internacional não deve ignorar a riqueza da produção nacional, sobretudo quando ela dialoga com a cena global em condições de paridade estética. “O festival é em Braga, de Braga, e esse contexto é determinante para tudo”, insiste Pedro Santos, lembrando que o Semibreve pertence à cidade mas também a um ecossistema cultural português que precisa de ser representado. Rafael Toral leva a Braga o seu mais recente registo, Traveling Light, sucessor do aclamado Spectral Evolution, de 2024, que propõe uma originalíssima abordagem a um conjunto de históricos standards de jazz. Prova de que a memória e a história não são matérias encerradas no âmbar do passado remoto.

Este gesto de articular gerações, geografias e linguagens confirma a filosofia curatorial do festival: “Não existe concretamente um plano de mistura no programa para que exista um equilíbrio. De certo modo, é uma intuição ir avançando por múltiplos percursos e hipóteses”. Essa intuição, no entanto, é informada pela experiência de 15 edições, pelo diálogo contínuo com o público e pelos “bonitos acidentes” que revelam como a história e a inovação se encontram num mesmo palco. O festival sabe que a sua força não está na escala ou no crescimento medido em números, mas na qualidade das relações que cria: “O sucesso empurra-nos sempre para a concretização de um qualquer crescimento. Mas nem sempre isso é interessante ou sequer mensurável. (…) Crescer, neste caso em concreto, teve mais a ver com a possibilidade de pensar bem num projecto e dar-lhe as condições necessárias para ser bem executado”, salienta Pedro Santos.

É aqui que o Semibreve se torna exemplar num sentido mais amplo: num tempo em que os festivais tendem a ser absorvidos pela lógica do entretenimento de massas e pela mercantilização da experiência cultural, o evento de Braga insiste em recusar o crescimento como fim em si mesmo. A sua força está na escala humana, na possibilidade de o público se deslocar a pé entre espaços, na experiência de uma cidade que se deixa habitar e transformar pelo som. Isso coloca o Semibreve numa posição de resistência subtil: em vez de alinhar com a competição pela visibilidade global, escolhe a profundidade local; em vez de inflaccionar o cartaz, aposta na coerência do percurso; em vez de transformar a música em mercadoria, insiste na música como experiência, como encontro, como partilha. O desafio, naturalmente, é manter esta posição crítica sem se fechar numa redoma, e Pedro Santos mostra estar consciente disso quando refere que o festival integra redes cooperantes europeias, como a Re-Imagine Europe e a TIMES, onde partilha e aprende em igualdade de circunstâncias.

Se quisermos pensar o Semibreve como ensaio, ele é sobre a possibilidade de um festival ser simultaneamente local e internacional, histórico e futurista, acessível e exigente. A cada edição, o que está em causa não é apenas a programação, mas a formulação de uma hipótese: a de que é possível viver a música electrónica e as artes digitais para lá do consumo imediato, numa dimensão de comunidade, crítica e pertença. “A identidade do festival acaba por ser construída pela experiência das pessoas que o vivem de perto e muitas vezes somos generosos na sua descrição porque essa generosidade chega-nos do público e artistas”, confessa, enfim, Pedro Santos. Talvez seja essa generosidade — rara, mas vital — que garante ao Semibreve a sua relevância.

No final, a 15.ª edição não é apenas mais um capítulo: é um momento de prova de que um festival pode resistir às pressões da indústria cultural e, ao mesmo tempo, reinventar-se continuamente. O Semibreve insiste, como faz questão de manifestar no seu programa oficial, na diferença, na escuta atenta, na experiência situada. E é precisamente aí que se joga o seu intrínseco valor: na sua absoluta e orgulhosa singularidade.


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