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Fotografia: Adriano Ferreira Borges / Semibreve
Publicado a: 25/10/2025

Sem conformismos.

Semibreve’25 — dia 2: movimentos perpétuos

Fotografia: Adriano Ferreira Borges / Semibreve
Publicado a: 25/10/2025

Um festival como o Semibreve levanta um complexo conjunto de questões: a música como um lugar de desafios constantes, que é uma ideia contrária à mercantilização pop desta forma de arte; a cidade como um palco em que os lugares e as pessoas que os habitam são variáveis indissociáveis de um todo que importa defender para lá do seu potencial monetizável; o momento irrepetível como uma forma de oposição à padronização da matéria experienciável neste presente de absurdo capitalismo tardio. E tanto mais…

Ontem, na segunda jornada do seu sempre desafiante programa, o Semibreve sublinhou todas essas importantes questões e, porventura, inventou até mais algumas. Para lá das obras e instalações visitáveis no gnration, a dimensão estritamente musical do cartaz começou por se manifestar com a segunda apresentação de sempre do novíssimo lançamento de Rafael Toral, Traveling Light — a estreia no nosso país (a última das três performances planeadas desta obra terá lugar em Lisboa, na Culturgest, no próximo dia 21 de Janeiro) —, que decorreu no sempre deslumbrante Theatro Circo.

Em palco, inicialmente, apenas Rafael Toral, com uma demonstração inicial do seu passado, com as “ferramentas” electrónicas que desenvolveu para o seu Space Program a servirem para construir a introdução à viagem que agora propõe com Traveling Light. Uma espécie de “isto é de onde vim” antes do inevitável “isto é onde estou agora”, que até pode ter precedido um talvez até mais importante “e isto é para onde pretendo seguir depois”. Há um desígnio calculado em cada gesto performativo de Rafael Toral. A obra que ele nos apresenta funda-se num sólido pensamento e isso não é coisa de somenos.

O clarinetista Bruno Parrinha foi o primeiro convidado convocado para o palco, seguindo-se depois o saxofonista tenor Pedro Sousa (aqui em substituição de Rodrigo Amado, que participa no disco, mas que se encontra ausente de momento por compromissos artísticos na China), o fliscornista Yaw Tembe e, finalmente, a flautista Clara Saleiro. Os músicos foram chamados por Rafael Toral para o ajudarem na exploração da matéria que inspira o sucessor de Spectral Evolution, registo de 2024 amplamente aclamado em que já se partia de um par de standards de jazz — “I Got Rhythm” e “Take The A Train” — para se investigar a distensão do tempo e a elasticidade dos conceitos de harmonia. Esse foi o registo que, neste último verão, levou Toral a assinar uma das melhores prestações no festival Jazz em Agosto da Fundação Calouste Gulbenkian e que motivou um inédito consenso da mais relevante crítica internacional.

Em Traveling Light, Rafael Toral parece colocar-se diante de uma questão fundamental: o que resta de um standard de jazz quando a sua superfície é submetida a um processo de erosão eletroacústica num movimento (quase) perpétuo de distensão estrutural? O disco não se limita a transpor melodias para um novo contexto; antes, evidencia o que na tradição pode ser mobilizado como estrutura latente, como espectro harmónico que persiste mesmo quando os contornos familiares já se dissiparam. O resultado é um espaço sonoro onde a memória do jazz coexiste com a experiência do indeterminado, um “entre-lugar” em que o ouvido reconhece e estranha simultaneamente.

Esse gesto tem implicações que ultrapassam o campo da improvisação ou da música experimental. Toral desmonta a lógica da catarse fácil e da progressão narrativa — tão presentes em grande parte da música ambiente contemporânea — para explorar a possibilidade de uma escuta que não se resolve, mas se prolonga. A ausência de dramatização é aqui uma opção estética e política: recusar a manipulação emocional em favor de um cinema sonoro que se move por subtis deslocamentos de timbre e textura. Assim, Traveling Light inscreve-se numa linhagem que pensa a música não como veículo de sentimentos imediatos, mas como campo de forças, de relações e de possibilidades de sentido, onde tradição e experimentação não se excluem, antes se refratam mutuamente. Ou algo do género…

Em palco, a dimensão perfomática sobrepõe-se, talvez, à mais cerebral conceptualização apresentada no seu laboratorial registo fonográfico. A maneira como Toral cruza o palco quando entra em palco, com uma espécie de coreografia espontânea, mas ainda assim calculada, pretende deixar claro que aquele é o espaço em que a música vai existir durante a próxima hora, uma mapeação activa de um lugar, com o dispositivo electrónico que o músico manuseia a funcionar como uma espécie de sonar que realmente nos apresenta aquele sítio em termos acústicos.

E depois do desenho da coordenada espacial ser apresentado, Toral investe mais energia a interagir com o tempo — o que o relógio representa, claro, já que a sua música de progressão lenta e magmática se estende como uma manta sobre a nossa noção de progressão temporal, mas também sobre o tempo rítmico, desacelerando o natural pulsar das peças até que expõe o próprio mecanismo de propulsão melódica, harmónica e orquestral de cada uma das peças. Como um paciente relojoeiro que desmonta uma máquina complexa sob uma lupa expondo a intrincada arquitetura mecânica que, na verdade, sustenta o próprio universo.

Os músicos — Parrinha e Sousa, Tembe e Saleiro — são elementos chave na abordagem a essa matéria primordial, ligações directas a uma tradição que depois a guitarra esboroa, delapida e fragmenta com precisão laboratorial. Um prodígio sem a menor sombra de dúvida que impôs uma fasquia impossivelmente alta para as restantes propostas do programa do segundo dia de Semibreve.



A proposta seguinte do cartaz, a cargo da artista italiana Marta De Pascalis e com o contributo visual de Marco Ciceri, optou por um caminho bem diverso daquele proposto pelo guitarrista português: o da imersão gradual, em que os loops se expandiam e contraíam como respirações cósmicas, e as imagens em palco funcionavam como estímulos para a imaginação. A intensidade foi realmente traduzida pela pressão decibélica, com a tensão a crescer em ondas sucessivas que envolveram o público, mas a simplificação performática — centrada na manipulação meticulosa de camadas sonoras e na sobriedade gestual — acabou por reduzir o impacto do desfecho. Talvez injustamente, esse minimalismo contrastou com a exuberância conceptual e musicalmente sofisticada da apresentação de Traveling Light, acabando por deixar a sensação de que a sua potência se dissipou mais depressa do que poderia.

A segunda noite do Semibreve não terminou, no entanto, no Theatro Circo, tendo-se prolongado com quatro intensíssimas actuações em dois espaços do gnration. De formas diferenciadas, João Galante, NAH, aya e Zancudo Berraco, recorrendo a diferentes ferramentas — da bateria atomicamente aditivada do artista de Filadélfia agora baseado na Bélgica ao sintetizador modular do alter ego do português Henrique Apolinário passando pelo microfone da artista britânica que assinou o extraordinário hexed — destruíram efectivamente qualquer noção de conformismo com performances que exploraram as mais extremas possibilidades do corpo e levaram o público aos limites da capacidade de encaixe da pressão acústica, exigindo efectivamente dos sistemas de som das duas salas do gnration o seu máximo de desempenho.


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