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Fotografia: Adriano Ferreira Borges / Semibreve
Publicado a: 03/11/2024

Pausa para reflexão em tempos velozes.

Semibreve’24 — Dia 4: e no fim, o princípio

Fotografia: Adriano Ferreira Borges / Semibreve
Publicado a: 03/11/2024

O tempo da crítica é o tempo da crítica, mas é bem verdade que nos acelerados dias digitais esse tempo é muitas vezes encurtado em favor de um suposto imediatismo que o agora exige. Fazer eco tão rápido quanto possível dos eventos a que assistimos tem sido marca d’água desta publicação, um dos seus factores distintivos numa época em que já são poucas as vozes que reportam o que acontece em palcos e clubes. Mas por vezes — nem sempre, mas por vezes — pode justificar-se a pausa para reflexão, ou o simples deixar marinar de ideias que nos assaltam quando algo de extraordinário sucede. E foi assim, no derradeiro momento da programação de 2024 do festival Semibreve de que o Rimas e Batidas deu por aqui conta diariamente.

Na Basílica dos Congregados, edifício cuja construção se iniciou no arranque do século XVIII, mas que só foi concluído há 60 anos, Moritz von Oswald apresentou “Silêncio”, resultado do programa TIMES que congrega (lá está…) 10 festivais europeus — incluindo o Berlin Atonal, que co-programou este espectáculo, Le Guess Who, Sónar e, pois claro, o próprio Semibreve. A ambiência solene da pequena, mas ainda assim imponente basílica serviu na perfeição para a apresentação de uma peça que combinou a diáfana electrónica de Moritz com elementos do Coro de Câmara da Universidade do Minho dirigidos por André Carvalho. Sopranos e contraltos, mais tenores e barítonos conjugaram-se de forma absolutamente celestial e sublime para uma hora de puro refinamento coral que elevou uma assistência absolutamente rendida.

Von Oswald ocupou o centro, de costas para o altar e de frente para a congregação, mas não foi uma missa o que apresentou, antes um estudo fundo sobre os mundos interiores, aqueles que o silêncio amplifica. Com um teclado, efeitos e mesa de mistura e uma postura de absoluta dignidade (são já visíveis as dificuldades de locomoção do artista alemão), Moritz conduziu-nos elos labirintos do seu pensamento musical, com uma planante e panorâmica peça em que ainda é possível identificar espectrais ecos de techno e em que se percebe que as leis da física do dub continuam a explicar a sua sábia construção de abóbodas reverberantes de pulsares e drones que se conjugam como uma longa suite de lenta progressão.

A peça arrancou em modo solitário, com a presença de todos aqueles corpos cantantes, nas naves laterais do espaço da basílica e também de frente para o público, a fazer crescer a antecipação de como se iriam as suas vozes conjugar com o denso rendilhado electrónico entretanto tecido por Moritz. E quando finalmente se escutaram, em perfeito equilíbrio com a névoa electrónica, o tempo desapareceu: a música coral remete-nos para uma dimensão religiosa e para os primórdios da tradição clássica europeia, para as solenes criações de autores reverenciados como Carlo Gesualdo; e a electrónica, que de Cage a Berio e mais além tem sido recurso igualmente usado nos domínios mais eruditos, puxa-nos irremediavelmente para uma ideia de futuro, ainda que há décadas seja uma realidade. Dessa harmonização de tempos resulta o que se pode ler como uma reflexão sobre o presente, uma forma de meditação — talvez de escape… — de um mundo que parece a cada instante travar com o seu mediaticamente amplificado ruído essa fuga para dentro, para o silêncio.

A espaços, o sorriso na cara de Moritz von Oswald revelava bem a satisfação perante o resultado da sua criação, perante a perfeita junção de dois mundos de tradições diversas, mas perfeitamente comunicantes. O coro soava como uma espécie de Mellotron inverso, quase remetendo para algumas peças de funda espiritualidade no cânone dos Popol Vuh, o grupo de Florian Fricke que tão bem explorou a dimensão coral do mítico instrumento electrónico. E a componente musical electrónica, por seu lado, revelava a cada momento uma densidade orquestral plena. O arrebatamento final do público foi, pois claro, plenamente justificado.



Antes do último dos concertos no programa do Semibreve, o Theatro Circo recebeu ainda apresentações de Carmen Villain e do trio de Saint Abdullah, Eomac e Rebecca Salvadori. A primeira presenteou-nos com “Music From The Living Monument”, estreia mundial de uma peça concebida para uma performance criada pela coreógrafa húngara Eszter Salamon que, diz-nos o programa, se faz de “quadros vivos em que os bailarinos se movem quase impercetivelmente, como se estivessem suspensos num estado de vigília motora, entre o estático e o movimento super-lento”. A peça de Villain ecoa essa lentidão e impõe-se como um pesado manto harmónico que nos envove e transporta para outra dimensão.

Por sua vez, o trio de Saint Abdullah, Eomac e Rebecca Salvadori apresentou “A Forbidden Distance”, espectáculo multimédia que se apresenta como um estudo sobre a noção de fronteira. “Em particular”, esclarece uma vez mais o programa oficial, sobre “os seus aspectos políticos, como divisão arbitrária de um território que cria uma linha de demarcação impenetrável. Que histórias nos podem contar estes espaços e a sua suposta impenetrabilidade? Que medos assombram aqueles que tentam sobreviver? ‘A Forbidden Distance’ coloca as questões sobre o sentido da vida de um indivíduo quando confrontado com a necessidade de se deslocar, forçado pelas correntes nómadas do nosso tempo. O projeto audiovisual em si é um exemplo de colaboração que transcende fronteiras e nacionalidades — os irmãos Mohammed e Mehdi Mehrabani-Yeganeh (Saint Abdullah) são iranianos-canadianos, Ian McDonnel (Eomac) é irlandês e a cineasta londrina Rebecca Salvadori é italo-australiana — todos trabalhando juntos pela primeira vez”.

As imagens que documentaram a história pessoal dos irmãos Sain Abdullah e que revelam a normalidade do “outro”, do “estrangeiro”, são o fio condutor de música que, através do sampling, se entrelaça com a memória e a realidade, convocando para o seu centro de forma constante essa biografia real dos seus criadores. E os pulsares, entre a rave e o hip hop, parecem um comentário ao ritmo dessas próprias memórias. Comovente e entusiasmante, o espectáculo.

Uma palavra final. Esta edição do Semibreve arrancou no passado dia 24 de Outubro noutra basílica, a do Bom Jesus do Monte, com um concerto de Kalia Vandever. E para lá dos espaços centrais do Theatro Circo e do gnration, houve também — como de costume neste festival, aliás — um concerto de Giovanni Di Domenico na Capela Imaculada do Seminário Menor. E é de louvar que uma instituição como a Diocese de Braga abra estes espaços para música de cariz desafiante que em muito extravasa âmbitos religiosos. Só isso.


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