Dizem-nos os filósofos seguidores do Hermetismo que, segundo o Princípio do Ritmo, “tudo tem fluxo e refluxo; tudo tem as suas marés, tudo sobe e desce; tudo se manifesta por oscilações compensadas; a medida do movimento à direita é a medida do movimento à esquerda; o ritmo é a compensação”. Uma figuração deste ritmo no sentido físico pode ser encontrada no movimento pendular. Já nas notações do ritmo na música, tem-se precisamente no maior tempo de duração de todos a semibreve como figura. No terceiro dia, 26 de Outubro, deste Semibreve, deu-se conta da cadencia dos ritmos, como demonstrado pela experiência dos concertos celebrados nesta penúltima sessão do festival — uma eloquente revisão da matéria dada aos tempos em que se parte e reparte o som.
O dia de programação começou ao inicio da tarde com a palestra, na forma de relato de expedição pelo Mississippi, pela investigadora e activista Margarida Mendes. Navegadora à pagaia de diversos rios, trouxe ao festival a perspectiva estimulante da percepção e estudo da ecologia da acústica, neste caso do rio e das comunidades nele envolvidas. Numa das salas do Museu Nogueira Silva, lugar predestinado a ouvir as histórias penduradas nas paredes e apoiadas nos plintos, Margarida pôde dar a conhecer as pesquisas que tem conduzido rio abaixo, rio acima. Desta palestra soube acompanhar visualmente e sonoramente a sua narrativa que em muitos momentos assumiu laivos de crónica de expedição. Dela retivemos os sons e os fluxos dos meandros do Mississippi, nas incursões no tempo distante pelo espaço disponível, nesse imenso delta, desenhando o ritmo da compensação. Um rio que desce como uma serpente. As margens que assistiram à mudança da exploração dos recursos, do algodão de então ao petróleo de agora. Os fluxos do rio confrontando os fluxos da industria, no ritmo da paisagem, para um acústica do espaço, todo um campo de reflexão de Margarida Mendes. Há ali escutado uma dimensional nota pedal de fundo — um drone industrial. Mas também entre isso interessa escutar o detalhe, a duração do rasto animal nas margens do rio. “Quanto tempo dura o som na areia?”, pergunta-se Margarida, em modo poético. “Como lidar com o insondável, com o que não podemos registar?”, volta a colocar em questão, num esquema que põe em ligação o corpo, o ambiente e a indústria. Onde há um rio que é uma camada viva, como o fluido corporal, sistema sensorial, pelo qual se sente a vibração — fáscia. A água que traz uma memória associada.
Também Giovanni Di Domenico, compositor e pianista que deu um transcendente concerto no final de tarde na Capela Imaculada do Seminário Menor, nos falava horas depois do vivido da ideia de John Cage com a descrição da música como rios e meandros, em fluxos divagantes que percorrem livre os estuários com o propósito de chegar à vastidão do oceano. Para Di Domenico — em discurso directo —, a sua música faz-se de uma busca pelo ritmo, pela construção ascendente que pretende alcançar uma quietude, um amplo espaço. Temos a ideia visual de uma assimptota, um patamar de descanso a que se chega com elaboração desse alcance. A música que se ouve na magistral capela, cuja modernidade da arquitectura leva à imperativa contemplação meditativa, assenta na complementaridade compensada. Di Domenico ao piano e ao teclado Rhodes, mão esquerda no teclado mecano-acústico, mão direita no teclado electromecânico. Dois corpos de música perpendiculares que recebem miméticas disposições de dedos em simultâneo. Duas vozes em uníssonos, em conduções circulares. Ouve-se a acústica do lugar como resposta constante, o fluxo e o refluxo, dos dedos que martelam. Há troca de sentido do toque nas teclas, anagramas das notas, movimentos dos dedos da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, qual pêndulo sobre o teclado. Uma música esteticamente minimal que se sente, na transcendência, maior, no liquido que vibra como o sistema sensorial que conduz a emoção. Termina, como depois soubemos escutar, na racionalidade explicada, no patamar de descanso onde fica a habitar a memória sublime do momento. Di Domenico que tem, na já bem considerável obra registada muito feita de diálogos com outros exploradores sónicos, dois discos a solo imperdíveis — Superlike e Succo Di Formiche, ambos de 2023. Aqui, neste magnifico lugar, houve um inédito absoluto e irrepetível “Nachleben”, peça tocada em suite de movimento contínuo, que permanecerá como um rito do ritmo, como se um pêndulo permanente fosse.
A noite trouxe de volta o palco do Theatro Circo ao Semibreve. Living Circle, segundo longa duração da pianista e compositora Shida Shahabi que se previa transposto para a sua estreia no festival. Shahabi no piano vertical e com órgão eléctrico adjacente. Era o dia dos pianistas virem com algo mais que o piano acústico, horizontal ou vertical que fosse. Em palco um violoncelo amparado e tocado por Linnea Olssen, e Hampus Norén nos samples texturais e teclado. Um concerto que teve um desfecho entusiasmante com “Deep Violet of Gold”, a tingir de cores tornadas apenas possíveis por esse espectro sonoro. Mas o concerto foi alinhando temas para além do seu segundo álbum, incluindo na segunda metade da prestação músicas compostas para outras filmografias alheias. A música de Shahabi é já em si cinematográfica, feita de longos, lentos, e demorados planos. Procurando um ritmo de descida que contempla a profundidade e a base da matéria de tonalidades graves. Shahabi toca o piano em constante surdina, meio emudecido, a retirar todo o brilho das notas cintilantes. Uma música sem brilho no sentido do timbre, feita de um marasmo que reside no arraste vertiginoso das cordas do violoncelo de Olssen e nas texturas disparadas por Nóren. O ritmo aqui nasce e habita no chão, é subgrave e arriscamos imaginar sentir que haverá frequências tocadas por eles e insondáveis por nós, talvez estejam aí justificados os monótonos momentos sentidos. Contudo, sentiu-se grata Shahabi, e expressou em palavras a presença “atenta e devocional” da plateia, dormente em boa medida ou embalada. Ambas válidas percepções da música rasante, assim como o jogo de luz que até dado momento trouxe algo mais nesse desenho ao palco.
Black como estreia mundial, privilégio do Theatro Circo, inscrita na edição deste Semibreve, servida por Kevin Richard Martin (também conhecido por The Bug) como “sentido memorial sonoro que pudesse convocar o espírito” do álbum Back To Black da fugaz, em vida, Amy Winehouse. Um espectro sonoro carregado, do principio ao fim, dolente e pesaroso, num ritmo também ele tão lento quanto o pretendido por KRM para o que estava anunciado e pretendido como um “tratado sobre a tragédia e perda, na falta de amor e desamparo na queda livre”. Vivido em plena execução de algo descrito como “feito em modo de câmara lenta e sombrio”. Total subscrição nossa das palavras lidas de antevisão. Mesa iluminada pelos comandos, brilho remanescente no Circo, cerimonial escutado de sofreguidão no ritmo-quase-sem-ritmo, dada a massiva e densa carga soturna, uma apologia ao silencio que nunca houve, esse sim em definitivo o lugar arrítmico. Daria para ser de outra maneira no propósito? Da requerida compensação vinda do ritmo resta-nos o retorno da ideia na experiência derradeira e quase aterradora vivida. Estamos vivos a elogiar uma mente criativa que já deu tudo e tanto na tão breve presença entre nós.
Fim de jornada auditiva reservando na escolha pessoal, entre as opções da programação do Semibreve no gnration, a dupla Iceboy Violet & Nueen. Entramos num portal para o ritmo enigmático, onde a existência do efeito pendular parece ficar comprometida. À medida que a performance da palavra dita e rappada, desafiante no ritmo, progride na dimensão dos disparos de roupagens esparsas do som ecoado, fica-se na borda de uma estranheza que atrai pelo enigma do que se escuta. You Said You’d Hold My Hand Through The Fire é o mote, o corpo performático encarnado na expressão vocal de Iceboy Violet. Violet poeta na urbanidade de Manchester, que traz a carga depressiva de um pós-industrialismo no sentir dolente e pessoal, que ouvimos em tempos idos de outros como Ian Curtis. Essa mesma cidade que continua a trazer na carga nas palavras imagens que ainda transportam a herança de carga cinzenta da revolução industrial. Violet que surge numa Manchester a socorrer-se de identidades mais distantes no espaço e mais próximas no tempo para si, partindo de guias como Madlib ou J Dilla para disso crescer em busca corajosa da sua identidade, poética e misteriosa, contrariando as normas binárias e outras imposições duais da sociedade. Este corpo de palavras escutadas traz muito de si. Violet depressa abandona o palco, que não é nem pretende que seja pedestal algum, vem prenunciar-se em deambulante acto no meio de nós. Os planos de palco ficam para a música que em grande medida se espraia na sala em texturas nebulosas e granulares, perfeitas para acomodar as palavras. O ritmo acompanha o movimento, são os meandros em curso da dupla, como o rio que divide em canais mais tarde no seu curso. Ouvimos a fragilidade humana numa confissão detalhada, da ascensão do encantamento à desilusão do falhanço, muito em volta do amor e do fogo das relações. Ouve-se “You said you’d hold my hand through the fire / Hold my hand with the tightest grip / Looked in my eyes, wrap the gauze around my wrists”, e nisto se procura amparo em algum dos presentes, sem olhar de frente, antes muito o chão, num processo reflexivo interior, purgado e exteriorizado. Como quem se tenta levantar, literalmente e fisicamente ali, do chão que pisamos para “Now ready to fight against what I fight against / I was skirting round the edge / But what’s love without risk / Yeah it hurt a little bit”. Terminam a prestação com “Kiss Me Again (6am in Helsinki)”, nesta noite em que o tarde se haveria de impor a uma hora mais cedo. Na noite em que, e como anunciado no texto de antevisão, da passagem feita de um exorcismo, haveria um final feliz. “We’re walking home I’m drinking you slow / I’m tipsy and the words burn my throat / You’re so pretty (Pretty, pretty) / Please kiss me, make me pretty too”, conta-nos Violet da sua história. Narrativa que adiante se revela de desfecho esperançoso quando ouvimos “A victorious tune / I’m so lucky, lucky, lucky / I could kiss you, make you lucky too / If that’s what you wanna do”. O palco volta a juntar Nueen, hábil agrimensor do ritmo, a Iceboy Violet honesto nas palavras, num abraço compensador e cúmplice, como esse mesmo que vemos na expressão visual da capa do álbum que os junta.
A noite de Semibreve no gnration tinha já começado em simultâneo, no multiusos, com o techno digital alicerçado numa electrónica analógica-modular de Van Der, que irrompeu no canto da sala de cima (blackbox) nos momentos permeáveis do som de Violet & Nueen. A noite que prosseguira com dupla escolha, entre os DJ sets de Saya no multiusos e/ou de Ziúr, que outros, que não nós, contaram com estamina e fruíram.