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Fotografia: Adriano Ferreira Borges / Semibreve
Publicado a: 31/10/2023

Concertos de Thomas Ankersmit, Kassel Jaeger & Eléonore Huisse e Kali Malone na despedida da edição deste ano.

Semibreve’23 — Dia 4: ouvidos e mente, reprodutores sonoros

Fotografia: Adriano Ferreira Borges / Semibreve
Publicado a: 31/10/2023

Plano puro. Impossível deixar ao abandono o que se ouviu e viu, num concerto do mais sublime despojamento de Thomas Ankersmit. Em conversa com o músico, no final, relatou que o sintetizador modular é exactamente o mesmo com que se apresentou recentemente em Lisboa, [Damas . Maio de 2022], a propósito da abertura da loja e estúdio Patch Point. Nas palavras de Ankersmit — “Não tenho outro instrumento.” A simplicidade desarmante de quem assume os diferentes módulos analógicos como uma extensão natural da sua própria existência. Os pensamentos e sentimentos, as convulsões de um processo permanentemente questionado que conforma um discurso próprio. Marca autoral distinta e somente ao alcance de poucos, muitíssimo poucos. A consciência do espaço e com ele trabalhar para, em 45 minutos previamente definidos e explicitados pelo autor no início, se transformar num dos momentos altos da edição deste ano do Semibreve.

No Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho, em total ausência de luz artificial e com uma plateia submersa, parte dela deitada no chão ao fundo da sala, na procura de uma proximidade tão desejada quanto necessária e bem longe do incomodativo burburinho que prejudicou, e muito, a apresentação em Lisboa. A espacialização sonora intransigente, a modulação dos sons para estabelecer relações e planos concebidos no e ao mais ínfimo detalhe. Rigor que um sintetizador desenvolvido por Serge Tcherepnin em 1973, mesmo que esporadicamente tenha adoptado trilhos próprios, reforça a ideia inicial — Ankersmit insufla-lhe vida. Vida ao sintetizador e a quem assistiu. Encaixes talhados por mãos de artesão. Sequências sonoras em camadas espaciais tão finas quanto delicadas. Na estruturação adquire-se dimensão. Disrupções, tangentes ao silêncio, densidade em contraponto a erupções mais ou menos prolongadas. Som é espaço e espaço é som, nas suas múltiplas coordenadas. E o silêncio, matéria primordial. A pré-origem, se é possível alguma vez idealizá-la do universo, no exacto microssegundo antes do Big-Bang, encontra-se em Ankersmit e no seu sintetizador ou no sintetizador e no seu músico. Não é fastidioso afirmá-lo — são corpo unitário. O espectador é participante activo. É autor. Mergulhar em campo sem gravidade. Som claro e nítido que se metamorfoseia em silêncio. Ouvido activo de sons assimétricos. O ouvido é reprodutor sonoro. Um ligeiro movimento de cabeça e a onda sofre nova modelação.



As imagens de Eléonore Huisse, no concerto de Kassel Jaeger [Theatro Circo], vincam uma ideia da construção de múltiplos “ses”. Um campo aberto a todas as possibilidades. Os “ses” antónimos de hesitação. Os “ses” como interpretações que cada um estabelece através dos planos que se vão sucedendo. Sem pressas. Marcações distintas no tempo. Relações perspicazes. O mar em diversos ângulos e movimentos. O céu que se funde com este. Um comboio, ou a silhueta que desenhamos, atravessa o ecrã na horizontal. Novamente, a mesma imagem repetida na vertical. Não operam como complemento. Um concerto como trabalho que se desdobra em múltiplos objectos — o disco, Shifted In Dreams, o filme e, agora, a apresentação ao vivo. Rigor em contraponto e como sinal de resistência contra facilitismos. Aparentemente monótono, a impor paciência ao ouvinte. O mesmo aconteceu na recente apresentação de Jaeger em Lisboa [Ciclo de Concertos da Appleton Garagem | Julho de 2022 | Igreja de Santa Isabel]. Extensão dos limites sonoros até a um infinito próximo. O tempo que se arrasta. O tempo para novo entalhe sonoro. A improvisação. A marca autoral presente, nunca afirmada em prepotência.



No encerramento, um dos momentos mais aguardados — Kali Malone. Da sua biografia ressalta o facto de ter ido, muito jovem, estudar para Estocolmo no Royal College of Music. Mais recentemente as colaborações com Lucy Railton e Stephen O’Malley e respectiva edição em álbum — Does Spring Hide Its Joy. Marcas bem presentes na apresentação em Braga e que a afasta do primeiro concerto no nosso país, no OUT.FEST em 2019. Um contexto diferente, onde o recurso ao órgão não teve lugar. Sobretudo uma densidade sonora que somente a espaços tinha sido percetível no concerto do Barreiro. Uma fotografia a preto e branco como imagem única. Raízes e, entre elas, uma abertura para área em tons de negro. O foco na música, na manipulação sonora que Malone edificou. Camadas de som que se acumulam em movimentos circulares ascendentes. Uma progressão que culmina numa massa sonora de drones e próximo do universo noise. A marca de O’Malley bastante visível. Igualmente o violoncelo de Railton, a confirmar a excelência da autora britânica, sobretudo audível na parte derradeira do concerto, em que as cordas repetidamente e entrecortadas conduzem-nos para um final onde algumas das estruturas do Theatro Circo literalmente abanaram. Regressar à conversa “Re-Imagine Europe” do dia anterior e recordar o que uma das oradoras referiu: “Abrir ouvidos, para abrir mentes.”


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