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Fotografia: Adriano Ferreira Borges / Semibreve
Publicado a: 28/10/2023

Encontros entre som e imagem.

Semibreve’23 — Dia 2: mensageiros divinos e terrenos, um futuro inquieto

Fotografia: Adriano Ferreira Borges / Semibreve
Publicado a: 28/10/2023

Um veado. Mais precisamente os olhos de um veado que nos fitam a todos, sem excepeção. Final do filme concerto “GIFT” com música de Eiko Ishibashi e realização de Ryūsuke Hamaguchi, no Theatro Circo, no segundo dia do Semibreve. Proposta belíssima e arriscada. Sexta-feira à noite. A convocação para uma sessão de cinema musicada ou um concerto com um filme, a ordem é claramente arbitrária. O acto colectivo de contemplar um objecto estranho e que no seu término encerra mais dúvidas que certezas. Uma pequena cidade a 60 quilómetros de Tóquio, que vai sendo habitada por quem vai deixando a capital japonesa. As actividades associadas à vida do campo [cortar a lenha, a caça]. Um forte sentido de comunidade. Um sobressalto, quando uma empresa tem intenção de aí se instalar e consequentemente os impactos negativos que daí advém. Sempre num registo em que a música confere ritmo e intensidade à narrativa. O branco da neve que alarga o limite do ecrã e a percepção do que vai acontecendo. Sem detalhar, um misto entre um manifesto político contra o modus operandi das grandes empresas, a necessidade e urgência das comunidades se unirem e encontrarem mecanismos de resistência, a que se acrescenta uma narrativa fantasiosa e que remete para uma característica tão fortemente associada à cultura japonesa — a relação próxima e íntima entre os animais e os humanos. A temática, os impactos ambientais da acção humana, foi já motivo para a concretização dos mais diversos objectos artísticos. Afinal, será sempre a formulação — não interessa o que se faz, mas a forma como. O concerto/filme ou filme/concerto, também em si não constitui uma novidade. O que distingue “GIFT” é o cuidado e a minúcia com que ambos os autores colocaram na sua execução e colocam na sua apresentação. Não há um jogo de complementos. Ambas, música e imagem, fundem-se num único objecto. Os planos iniciais da chegada a uma terra mais ou menos inóspita, no meio de uma cordilheira. O branco e o recorrente uso do automóvel. O corte da lenha. A paisagem de contornos em cândida neve. A música suavemente entrecortada, de quando em vez, por objectos de sopro. Um momento marcante. As reminiscências de um passado numa sala mítica da cidade, a lembrar as sessões de cinema que frequentemente aí tinham lugar. As questões ambientais como preocupação tão real quanto contemporânea. As inquietações existenciais, a dimensão ínfima do ser humano e o papel que todos poderemos ter, colectivamente e individualmente, na alteração e definição de um percurso, independentemente das coordenadas, seja numa localidade remota do Japão ou também na longínqua, para outros tantos, cidade de Braga.



Partindo da interpretação contemporânea do livro Kohelet (Ecclesiastes). Uma leitura muito crítica da frase — ‘and there is no new thing under the sun.’ Mote para apresentação de Maya Shenfeld + Pedro Maia [primeiro concerto da noite]. Novamente a relação entre as questões ambientais e o papel do ser humano. Como a própria referiu em recente entrevista no Rimas e Batidas, o concerto, na parte sonora, segue uma estrutura previamente definida. Nas palavras de Maya Shenfeld: “O concerto abre com um drone longo, que funciona como uma espécie de ouverture, que convida os espectadores a aproximarem-se, a entrarem. A parte seguinte é mais noisy, com base nas gravações de campo. Como que a reforçar este sentimento de transitoriedade. A partir daqui como que ascendemos, num movimento que designámos como ‘Geist’. Dá-se a introdução do coro. Estamos que a flutuar. Dá-se uma espécie de clímax. A seguir um momento em que se assemelha a uma aventura. Como que empurrando o espectador. A seguir um lado mais sombrio, um pouco mais repetitivo, que termina, novamente, com um lado mais efémero com a introdução do coro juvenil, com quem foi muito interessante trabalhar. Dos 8 aos 20 anos, e embora soe um pouco piroso dizê-lo, são as ‘vozes do futuro’. Termino com um movimento repetitivo, como que um ‘grande coro’, que me dá o sentimento de esperança.”



Destaque, neste caso, para o campo de flexibilidade, de fronteiras maleáveis que ambos conseguem estabelecer. A verticalidade de uma estrutura musical previamente definida, que reforça a vertigem de uma descida às pedreiras de Estremoz. É nas imagens que Pedro Maia vai trabalhando o momento. O objecto ganha uma nova dimensão. Não tanto pelas imagens drone utilizadas ao início, mas pela introdução de tonalidades em vermelho, que adensam a sensação de quente e, até certo ponto, a ofegante materialidade da pedra. Um jogo entre pedreira e os arranha céus. Uma imagem-espelho que conforma uma realidade nada ficcionada — o impacto do homem sobre a natureza. O recurso a espelhos filmados, na mão da Maya, uma proximidade ao Sol. Ícaro? Por fim, uma luz incandescente disposta sob os pés e projectada sobre o público — o alvo. As imagens que se apagam e uma nuvem de fumo como que a conferir uma aura transcendental a todo o exercício. Como referiu Pedro Maia, em conversa a meio da tarde [Museu Nogueira da Silva], com uma premissa sempre subjacente: as imagens nunca servirão como auxiliar para a música, nunca serão ecrã; antes dois corpos, som e imagem, que se fudem num objecto unitário, conferindo-lhe uma estrutura e uma coerência narrativa. Nas imagens de Pedro Maia, e quanto estamos gratos por tão novo ter assistido ao Curtas de Vila do Conde, amplificou-se a música de Maya Shenfeld.

Beatrice Dillon é destaque mais do que justificado. Blackbox do gnration, em luzes ínfimas e que somente deixam antever a silhueta da música britânica. Num contexto bastante diferente da sua recente passagem por Lisboa [Noites de Verão 2022], mas onde ficaram bem patentes as marcas autorais de uma das artista mais estimulantes da actualidade. Electrónica entrecortada, exercícios não lineares, mas minuciosamente definidos numa direcção previamente estabelecida. Sem dúvida a requerer um esforço de escuta por parte de quem ouve. A exigência nunca peca por excesso. Ao final da tarde, Inês Malheiro e Nexcyia. A artista natural de Braga, agora residente no Porto, num exercício de sobreposição de diferentes vocalizações criadas pela própria, e que definiremos como um louvável exercício de work in progress. Nexcya num registo que aponta para as interligações de diferentes padrões electrónicos. Ambos no Auditório São Frutuoso.


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