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Fotografia: Adriano Ferreira Borges / Semibreve
Publicado a: 27/10/2023

Está aberta mais uma temporada do festival de música electrónica e arte digital de Braga.

Semibreve’23 — Dia 1: Clarice Jensen, o chiaroscuro da fragilidade humana

Fotografia: Adriano Ferreira Borges / Semibreve
Publicado a: 27/10/2023

17 de Janeiro de 1913. Data pouco lembrada na história recente. “O paquete inglês Veronese tinha encalhado nas pedras do ‘Lenho’, junto à praia da Ponte Nova, a norte do porto de Leixões. (…) O barco a vapor com mais de 11 mil toneladas. Três dias e três noites para concluir as missões de salvamento. Mesmo com um ‘nevoeiro cerrado e um mar bravo”, como noticiou, à época, o Jornal de Notícias.

Um concerto, pelo menos quase todos, são espaço e tempo privilegiados para a imaginação. Recorrendo às memórias do recente visionamento do documentário sobre Luís Miguel Cintra, Verdade ou Consequência? de Sofia Marques, o teatro é princípio para a convocação de imagens individuais. Também na música.

Na abertura da edição deste ano do Semibreve, na Basílica do Bom Jesus, são muitas as reminiscências convocadas no concerto da violoncelista residente em Nova Ioque, Clarice Jensen. Violoncelo e pedais, em frente à representação do calvário de Cristo, vão preenchendo paulatinamente o sonhado colectivo. Uma massa sonora contínua, levada ao extremo em termos de duração, registo drone, texturado e entrecortado por sublimes e subtis camadas sonoras que vão não só conferindo diferentes direcções, mas que contribuem também para a construção de uma narrativa em tons de chiaroschuro. Cada uma das diferentes marcações compositivas acrescentam uma tonalidade nova, nunca dissonante ou disruptiva. A composição de excepcional qualidade confere solenidade ao acto. Afinal, é o primeiro concerto. É o primeiro no Semibreve’23, em Braga. Pela natureza do festival e da cidade tem indubitavelmente esta carga. 

Regressando, às pedras do ‘Lenho’, a 17 de Janeiro de 1913 e às três noites subsequentes de bruma e mar agitado, foi desta forma que nos sentimos mais próximos do recente disco Esthesis. Um exercício, como descreve a autora, “relacionado com a sinestesia grafema-cor”. Tons escuros, densos, esforço sobre-humano. Muitos salvaram-se, nem todos. “Um caminho possível para se conectar com o sublime”, como refere o texto de apresentação. A condição humana e os elementos naturais majestáticos. O estímulo para questões existenciais. O humano, um ponto ínfimo. O percurso e a escala do santuário amplificam. E Clarice Jensen, no seu exercício meticuloso e de resistência de cordas e electrónicas, vinca-o continuadamente. 

Céptico, muito aliás, sobre a capacidade da música, ou outra arte, para a transformação da natureza humana, mas pelo menos com a esperança que cada um destes instantes interligados contribuam para a sua reflexão. O mar escuro e chumbo, numa visão muito particular, de Jensen; as pedreiras de Estremoz de Maya Shenfeld e Pedro Maia; o Saab vermelho em movimento contínuo de Ryûsuke Hamaguchi e Eiko Ishibashi são concertos que confirmam e anteveem uma edição profundamente ancorada numa universalidade comum. Nas horas que nos circundam e dos acontecimentos que delas se extraem é sempre bom sinal encontrar pontos de fuga.

Sem escapismo.


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